Atos 16.6-10

Auxílio Homilético

28/05/1995

Prédica: Atos 16.6-10
Leituras: Apocalipse 22.12-17,20 e João 17.20-26
Autora: Ivoni Richter Reimer
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 28/05/1995
Proclamar Libertação - Volume: XX


1. Pinceladas iniciais

A leitura do evangelho e da epístola para este 7o Domingo da Páscoa, juntamente com o texto de pregação, ajudam a apontar para o fio vermelho do conteúdo do culto: tornar conhecido o nome de Deus para que as pessoas que ouvem e crêem no evangelho participem ativamente do Reino. O texto de pregação deverá ser recheado com conteúdos abordados no próprio livro de Atos, pertinentes ao seu contexto. Histórias e experiências sempre são elucidativas. A pregação deverá vir acompanhada das histórias narradas por Lucas no decorrer de At 16-17, pois elas explicitam exatamente como o texto programático de At 16.6-10 se concretizou na Macedônia. Interessante... no conteúdo programático aparece o rosto de um homem macedônio, mas é exatamente na concreticidade do anúncio e da vivência do evangelho que tem muita história e vida de mulher! Isto não pode ficar de fora, pode?

2. Tradução

Atravessando a Frigia e a região da Galácia, tendo sido impedidos pelo Espírito Santo de pregar a Palavra na Ásia, indo em direção a Mísia, tentavam seguir caminho para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não os deixou (ir). Passando por Mísia, desceram a Trôade. E à noite apareceu um rosto (em sonho) a Paulo. Um homem macedônio estava parado e, rogando-lhe, dizia: 'Passando para a Macedônia, ajuda-nos!' Assim que viu o rosto, imediatamente procuramos partir para a Macedônia, conscientizando-nos de que Deus nos havia chamado para evangelizá-los.

3. Algumas considerações iniciais

Esta passagem de Atos é uma das mais importantes, usada para argumentar em favor do direcionamento da missão cristã, liderada por Paulo, rumo aos gentios. A missão cristã sai do solo palestinense e da Ásia e vai rumo à Europa (n. b.: a antiga Macedônia pertence hoje à Europa, mas não na época). Em todo caso, Paulo e seus companheiros começam a pisar chão totalmente estranho a partir de agora, retornando, é claro, repetidamente às suas origens.

Mas não é apenas agora que a missão cristã se depara e busca também pessoas de origem não-judaica. Temos o clássico exemplo de Cornélio (At 10), ainda em território palestinense. Seu “missionário”, porém, não é Paulo, mas Pedro.

É consenso afirmar que a partir de At 16 abrem-se os caminhos para Paulo concretizar aquilo que havia sido colocado programaticamente em 1.8: até os confins da terra e 9.15: para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel. Tudo estaria sendo guiado pela mão de Deus, conforme o seu plano. Devemos nos perguntar como deveria acontecer a evangelização entre os gentios. No livro de Atos há algumas máximas que indicam nesta direção. Cito algumas que me parecem fundamentais para o nosso (con)texto:

a) No contato com Cornélio, centurião romano em Cesaréia (situação semelhante teremos em 16.25ss.!), Pedro havia afirmado que Deus não faz acepção de pessoas, mas — e este é o grande mas que não deixa a adesão à fé cristã ficar inconsequente! — em toda nação, quem teme a Deus e pratica a justiça lhe é agradável (10.35).

b) No contato com Lídia, em Filipos, fica evidente que é necessário ter o coração aberto para entender a palavra de Deus e que esta Palavra não sai vazia, mas compromete para a solidariedade (16.14-15; 17.6-7).

c) No contato com o carcereiro de Filipos é colocado o pressuposto da fé no Senhor Jesus para alcançar a salvação (16.31).

d) Diante de Félix e de sua esposa Drusila, Paulo lhes falou acerca da fé em Jesus Cristo, pregando acerca da justiça, da temperança e do juízo vindouro, ao que Félix reagiu amedrontado, retirando-se (24.25).

e) Em todas essas máximas continua válida e é ratificada aquela que orienta as demais: É melhor obedecer a Deus do que aos homens (5.29).

4. Uma olhada mais de perto no nosso texto

No primeiro momento, o texto de At 16.6-10 pareceu-me meio estranho para uma pregação. Considerando-se, porém, detalhes do texto e o seu contexto, fica até bem interessante; o texto traz (pode trazer) à tona ou denunciar inclusive facetas da nossa própria situação como pessoas engajadas pelo evangelho e como Igreja neste nosso meio tão conturbado. Debatemo-nos tanto com tantos problemas, querendo fazer a coisa mais certa, não conseguindo, muitas vezes, nem mais prestar atenção aos sinais do Espirito que estão sendo colocados para que sejam vistos também por nós. Às vezes nos parecemos com aqueles missionários.

Vejamos o texto: temos aí um roteiro de viagem, conduzido pela teimosia do Espírito Santo (e de Jesus!). De um lado, essa força estranha quer direcionar os corpos que estão a serviço do evangelho a um determinado lugar; de outro lado, esses corpos estão atentos a tais impulsos, chamados. Mas, como não percebem bem qual o caminho agradável aos olhos do Espírito, andam para lá e para cá para ver se acertam o alvo. Parecem ovelhas perdidas, sem o seu pastor. Diante disso, a força de Deus se vale, então, de outro truquezinho: um sonho, uma visão! Visão/rosto (horama) é aquilo que é visto. Paulo vê um rosto, aquilo que é para ser visto, entendido, percebido. E isto à noite! Nem sempre podemos ver com clareza durante o dia. Carecemos também da noite para ver a profundidade do breu. Aquilo que normalmente só se avista de forma embaciada é visto agora de forma nítida. Para tanto, Paulo e seus companheiros careceram da ajuda, do socorro de Deus. Precisaram de um redirecionamento claro, para o qual estavam dispostos.

O que Paulo vê? Conforme o texto (v. 9), ele vê um homem macedônio. Este homem reflete a cara do chamado, tem algo a ver com a Macedônia, região ainda não evangelizada por esses missionários. No sonho, esse homem aparece parado, de pé, suplicando! Não é bem esta a postura de súplica que conhecemos, mas, sim, a de alguém curvado ou ajoelhado. Isto já é indício de outro contexto cultural. A súplica do homem macedônio não pôde ser percebida somente no seu gesto. Precisou fazer uso da palavra: Passando para a Macedônia, ajuda-nos!

Esse grito de socorro não significa apenas um pedido de ajuda. A palavra grega boeteo remete ao fato de que alguém deve apressar-se em oferecer auxílio a pessoas oprimidas (de quem vem o clamor), não pensar duas vezes após ter ouvido o grito de ajuda. Esta palavra era muito usada quando pessoas procuravam socorro bem concreto, como, por exemplo, nas curas de Jesus (Mc 9.22; Mt 15.25). É difícil saber em que o tal do homem macedônio estava pensando concretamente, quando externou seu pedido de socorro. É praticamente impossível. Não temos acesso ao que ele poderia ter externado. Mas temos a interpretação que foi dada ao seu clamor.

A interpretação do sonho. No v. 10, na narrativa, muda o sujeito dos acontecimentos. Não se trata mais apenas de Paulo e dos outros, mas de nós. Aqui o autor está incluído na história e permanece nela em algumas etapas. São os conhecidos relatos na 1a pessoa do plural, relatos de testemunha visual. Para o texto, importa ver que a interpretação do sonho não é algo particular, individual de Paulo, mas que trata-se de algo coletivo. Paulo teve a visão/sonho, mas a interpretação e a consequente ação foram feitas em conjunto. É um ato comunitário: no momento em que nos conscientizamos de que Deus nos chamava para evangelizá-los, imediatamente procuramos partir para a Macedônia. Assim, o pedido de socorro é paralelizado com a evangelização. A resposta ao clamor concreto será dada com a Boa Nova da salvação operada por Deus através de Jesus Cristo.

Este é o resumo do texto da pregação. Poder-se-ia discorrer, a partir disso, sobre o conteúdo da evangelização, sobre as diversas formas que Deus usa para nos fazer perceber o que ele quer de nós, sobre nossas cegueiras. Pelo próprio texto e a partir do seu contexto, sugiro que, na pregação, não apenas fiquemos falando sobre isso, mas que tomemos visível a situação dos missionários na Macedônia! Se a intervenção do Espírito teve de ser tão persistente e incisiva, se o pedido de socorro foi tão concreto — a quem esse homem macedônio, esse clamor estavam representando?

Mesmo que os missionários tivessem passado por cidades macedônicas como, por exemplo, Anfípolis (capital de um dos distritos), o primeiro contato e atuação missionários na Macedônia restringiram-se, pelo relato de Atos, às cidades de Filipos, Tessalônica e Beréia. Filipos era uma colônia romana, uma miniatura do poder de Roma em território ocupado; Tessalônica, a nobre capital de um dos distritos da Macedônia; Beréia era uma cidade insignificante, retirada da principal via de passagem (Via Egnatia) e considerada como local de refúgio. Filipos é que ganha maior destaque na narrativa (16.11-40); mas aparecem também Tessalônica (17.1-9) e Beréia (17.10-15). Há alguns pontos em comum na atuação nestas três diferentes cidades:

a) os missionários dirigem-se ao prédio sinagogal para pregar o evangelho ao povo judeu e simpatizantes da religião judaica;

b) há sempre adesão e rejeição à mensagem cristã de salvação (a diferença é que, em Filipos, os missionários são perseguidos por romanos, não por judeus como em Tessalônica e Beréia);

c) há sempre mulheres e homens participando ativamente (a diferença em Filipos é que primeiramente os missionários têm diante de si um grupo apenas de mulheres simpatizantes da religião judaica; o segundo grupo será um grupo gentílico-cristão — carcereiro romano);

d) os conflitos, mesmo tendo origem religiosa, envolvem sempre o poder ocupacional romano, pois também a religião era subordinada ao seu controle.

A porta de entrada para a Macedônia são mulheres... Onde estão os homens macedônios que pudessem estar representados no rosto visto em sonho por Paulo? Em todos os relatos, não me deparei com nenhum autóctone. Trata-se, ao contrário, de pessoas judias em diáspora; de pessoas simpatizantes da religião judaica, em processo migratório (como Lídia); de soldados romanos, transferidos de outros lugares. Como é que fica e qual seria a ponte entre aquele clamor concreto por socorro daquele homem macedônio e o processo evangelizatório desenvolvido pelos missionários? Parece que também já naquela época os missionários tinham dificuldades de começar um trabalho num ambiente totalmente estranho, com pessoas totalmente diferentes... Isto me lembra a IECLB, a situação de muitas de nossas comunidades.

Onde se pode verificar o conteúdo do clamor dentro do processo de evangelização realizado pelos missionários? É possível dizer, e em que sentido, que a resposta correspondeu ao pedido?

O pedido de socorro é o grito de alguém oprimido, que necessita urgentemente de ajuda. Digamos que o rosto e o clamor do homem macedônio representassem o clamor concreto das camadas oprimidas em termos sexuais, sociais, hierárquicos e religiosos dentro daquela Macedônia ocupada pelos romanos. E aí o texto, no decorrer da evangelização, vai nos fornecendo rostos, corpos, histórias... Temos, então, em primeiro lugar as mulheres: dentro da estrutura hierárquica patriarcal romana, tinham um valor proporcional às pessoas escravas, não plenamente dignificadas na sua condição de seres humanos, marginalizadas sempre sexualmente (a dupla opressão, sexual e social, expressa-se, por exemplo, na pessoa da escrava profetisa de At 16. 10ss.); o carcereiro e os guardas da prisão são o símbolo dos hierarquicamente oprimidos dentro da maquinaria do Estado romano: eles respondem com a própria vida, caso um prisioneiro fugir da prisão (não é à toa que ele preferia suicidar-se a enfrentar tortura e morte — 16.27); a opressão religiosa manifesta-se tanto para as pessoas judias como depois também para as cristãs, controladas, em sua expressão de fé, pelo poder romano, aliado a representantes das classes nobres.

O grito de socorro, interpretado como chamado de Deus para a evangelização na Macedônia, significa o apelo concreto de pessoas oprimidas que carecem de ajuda. Para os grupos acima arrolados, essa ajuda pode ser entendida concretamente como o anúncio do Cristo ressurreto, que venceu a morte e os poderes opressores e alienantes, que permanece vivo-presente nas experiências de morte e de vida de pessoas que não resignam diante dos dados da vida. Se percebermos bem, a maioria das histórias evangelísticas aqui narradas vem acompanhada pelo imprescindível ato sacramental do Batismo. Isto significa que todas essas pessoas sexual, social, hierárquica e religiosamente oprimidas são revestidas com o poder de Cristo e que participarão da comunhão universal de pessoas igualadas, conforme a fórmula batismal de Gl 3.27-28! Isto é um dado importante que necessariamente precisa ser contemplado, porque ele implica importantes transformações na estrutura e na qualidade de vida das pessoas e das comunidades envolvidas.

Além disso, e este é o segundo aspecto, a ajuda que as pessoas recebem através da Boa Nova não é algo que será usufruído somente por elas, não é algo utilitarista em benefício próprio. A ajuda concreta da evangelização é alimento divino que se mostrará humanamente, dado junto na bagagem da caminhada, para alentar e solidificar sinais de solidariedade (Lídia, 16.15; Jasom, 17.7), para despertar a prática da diaconia ao invés da tortura (carcereiro, 16.33) e salvar a vida de quem se encontra em perigo de vida (ações clandestinas, 17.14). Essa é a ajuda que compromete com o reino de Deus, que fará jorrar água na fonte da vida eterna! Esses são os sinais da resposta dada por Deus ao grito de socorro, resposta através do anúncio e da vivência da Boa Nova na Macedônia.

Repenso e me lembro: aqui está faltando alguém! Crianças, as que mais sofriam todas as espécies de discriminação, estão fora da perspectiva do texto. Por que isto? Infelizmente é muito simples: porque a perspectiva do autor está concentrada, do início ao fim de sua obra, em grandes personagens e aconteci mentos. O deixai vir a mim... é bem cedo abafado pela historiografia cristã. Não precisamos repetir isto, basta termos a sensibilidade de retornarmos sempre às origens jesuânicas. Numa perspectiva sócio-histórica e salvífica, crianças jamais estiveram ausentes da formulação (mesmo que não-expressa), da necessidade e do recebimento (ou não) de ajuda.

5. Amarrando realidades e necessidades de hoje com as de ontem

O texto nos convida a fazermos uma auto-análise. A nível pessoal, pastoral e comunitário: onde e em que estamos investindo nossas forças, nossas energias, nossa mensagem falada e vivida? Será que não estamos esbarrando com a negativa do Espírito Santo, e talvez nem nos apercebamos disso, seja por correria demais, por causa dos atendimentos às necessidades eclesiástico-estruturais, seja por querermos nós realizar um determinado projeto? Como fazemos a leitura dos sinais do Espírito?

O texto nos exorta a termos ouvidos e corpos dispostos a ouvir clamores de socorro. Talvez não sejamos privilegiados com sonhos divinamente dados, mas não sejam menosprezadas as visões que se nos apresentam ao nosso redor cotidianamente. Como interpretamos as mesmas? Somos capazes de relacionar esses clamores com o chamado de Deus para anunciarmos a Boa Nova a toda espécie de gente oprimida, vivenciando-a concretamente e tornando-a significativa para a vida dessa gente? Ou perguntamos primeiro pelas garantias de tal investimento, pela certeza do empreendimento; perguntamos se este ou aquele tipo de missão/evangelização é orgânico? O que nós temos, hoje, concretamente a oferecer e queremos oferecer em termos de Boa Nova às pessoas que sofrem das mais diferentes formas de opressão e que pedem por ajuda?

Busquem exemplos nas suas comunidades, nas suas cidades. Tragam-nos e refutam comunitariamente sobre eles: importa tornarmo-nos cada vez mais comunidades de pessoas igualadas, ouvintes e praticantes da Boa Nova, partícipes do reino de Deus. Não precisamos ir para longe para realizar isso; basta estarmos atentos/as ao que de fato acontece também bem perto de nós.

Na confissão de culpa, pessoas da comunidade também deveriam ser convidadas a formular orações em que coloquem sua situação de insensibilidade e impotência diante dos tantos clamores. Deveríamos comunitária e concretamente reconhecer também onde falhamos no anúncio da Boa Nova e do reino de Deus, onde somos temerosos/as demais para dar passos novos que possam estar indo cm direção de um chamado de Deus em meio às dores do mundo.

Na oração de intercessão deveríamos incluir pessoas/grupos próximos e distantes de nós que necessitam especificamente de socorro; igualmente intercedermos por nós mesmos/as, para que Deus nos dê o dom de perceber e interpretar sinais do Espírito no trabalho que estamos realizando.

Após a bênção, de mãos dadas, poderiam ser proferidas as seguintes palavras de envio revitalizador: Que este Deus que nos abençoa fortifique o que quer crescer, proteja o que quer viver e sustente o nosso caminhar. Amém.

Bibliografia para quem mencionar histórias de At 16-17 na pregação:

REIMER, Ivoni Richter. Reconstruir história de mulheres; reconsiderações sobre o trabalho e status de Lídia, em At 16. RIBLA 4 (1989) 36-48.
—. Uma escrava profetisa e missionários cristãos; experiência de libertação?; consideração sobre At 16.16-18. RIBLA 12 (1992) 89-102.


Autor(a): Ivoni Richter Reimer
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 7º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Atos / Capitulo: 16 / Versículo Inicial: 6 / Versículo Final: 10
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1994 / Volume: 20
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17691
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