Daniel 7.(1-12)13-14(15-28)

Auxílio Homilético

24/11/1991

Prédica: Daniel 7.(1-12)13-14(15-28)
Leituras: Apocalipse 1.4b-8 e João 18.33-37
Autor: Dario Schaeffer e Francisco Cetrullo Neto
Data Litúrgica: Último Domingo do Ano Eclesiástico / Cristo Rei
Data da Pregação: 24/11/1991
Proclamar Libertação - Volume: XVI


1. Introdução

O texto de Daniel 7 abre a segunda parte do livro. Na primeira parte (capítulos l a 6) são contadas histórias de pessoas que permaneceram fiéis à lei saindo vitoriosas. São contadas como exemplos de comportamento para os judeus que enfrentavam (muitos eram cooptados) o regime imperialista de Antíoco IV Epífanes.

A segunda parte do livro (capítulos 7 a 12) são visões de Daniel. Utilizando-se amplamente da alegoria, empregando a intervenção de seres sobrenaturais, recorrendo à ficção do sonho ou das visões, tais escritos, sob a capa de uma revelação dos tempos futuros, dão uma leitura dos tempos presentes. (Cf. C. Saulnier, pp. 64-65.)

Não há muita divergência dos diversos autores quanto à data de composição do livro de Daniel. Ele se situa no final do reinado de Antíoco IV Epífanes, que reinou de 175 a 164/163 a.C. A data mais aproximada do livro é em torno de 166-167.

O ambiente histórico pode ser melhor compreendido com uma leitura dos livros dos Macabeus (apócrifos para os protestantes, mas contidos na Bíblia de Jerusalém). Estes livros mostram-nos o esforço imperialista de helenização através do ginásio, da transformação do culto e dos costumes hebreus. O projeto de Antíoco IV Epífanes está sintetizado no decreto: O rei prescreveu, em seguida, a todo o reino, que todos formassem um só povo, renunciando cada qual a seus costumes particulares (l Macabeus 1.41-42). É um projeto para toda a oikoumene. Um projeto de dominação, diga-se.

2. ... Havia chegado o tempo do povo começar a reinar (7.22b)

Existe ainda esperança de que o povo chegue ao poder. Os compiladores e redatores, que são responsáveis pelo livro de Daniel, acreditavam nisto numa época muito difícil, em que os selêucidas, sob o comando de Antíoco IV Epífanes, fustigavam Israel. Esta esperança é extraída da época do exílio babilônico e concretizada na figura de Daniel, que dá a ela autoridade e legitimidade. Lembrem-se do exílio! Também ali a esperança fugia e a desesperança era grande (Sl 137). Mas os preceitos colocados pela esperança acabaram vencendo. O povo voltou a sua terra.

O apocalipse, como método, evita que a mensagem contida nele, fundamentalmente uma mensagem de esperança, seja banalizada e se torne populista e panfletária. Faz com que ela seja contextuai na história política do povo, incluindo três aspectos: o embate com povos e reis inimigos, a atuação de Javé como força libertadora e a utopia do reinado final do povo de Javé sobre outros povos (7.27). Tudo isto não como vontade de um grupo político, de uma tendência majoritária ou hegemônica, mas como vontade de Deus. O que legitima de modo absoluto o que é dito.

O apocalipse é a forma encontrada para ser ao mesmo tempo código de comu¬nicação com um povo que vivia no medo e na insegurança, e garantia de que a esperança da libertação não possa de maneira alguma ser dicotomizada da conjuntura política real e presente e eventualmente ser enviada à gelatinosidade e nebulosidade de uma salvação religiosa no céu.

O apocalipse e as visões são métodos usados para evitar exatamente o que hoje está sendo feito com eles. O apocalipse é usado para projetar a esperança cristã num espaço vazio, no nada. Desconfio que igrejas e grupos políticos fazem isto pelo fato de reconhecerem o potencial revolucionário da resistência, do conteúdo utópico, político, real. Para eles isto significa perigo. Por isto é preciso tomar as rédeas na mão e desviar o rumo.

É preciso libertar o apocalipse de mãos e bocas que o vilipendiam com intenções ocultas ao povo despolitizado, mas claras para quem vê por detrás das aparências.

Não sei se o mesmo método de apocalipses e visões pode ser usado hoje para transmitir ao povo esta força motriz da vida e da transformação que é a esperança. É preciso descobrir os códigos que hoje atingem o âmago daquilo que move o povo brasileiro na cidade e no campo. Este será o desafio da pregação, que não apenas quer repetir o que nos mostram os textos, mas que quer manter vivo o espírito da mensagem de Daniel.

3. ... Vi um ser parecido com um homem... (v. 13)

Um senhor pesadelo, este de Daniel. Monstros povoam sua vida e sua mente. Cada um deles maior do que o outro. O último é o mais forte e o mais cruel. Suas excrescências são capazes de lutar entre si e de serem novamente cruéis com o povo que oprimem em vez de governá-lo. São seres inumanos e desumanos, que representam a crueldade e o domínio despótico, que nada mais tem de humano, dos reis e imperadores que dominam o povo de Javé.

Em contraposição a este pesadelo, ele vê um ser parecido com um ser humano, que desce em meio às nuvens. Isto é, que não vem do espaço em que se originam as desumanidades, mas do espaço em que existe libertação e salvação. Este ser, agora não mais monstro, mas ser humano, representa finalmente a salvação e libertação do povo por ter o poder em lugar dos monstros, que são destruídos.

É a humanidade colocada como antítese ao que é desumano. Ao que transcende em maldade tudo o que o homem pode conceber, é contraposto o homem que transcende a fraqueza dos que sofrem a opressão monstruosa e desagregadora dos que dominam o Estado.

Na explicação das visões, especialmente no v. 27, fica muito claro que este ser, parecido com um homem, é o povo de Javé, isto é, o povo que até aí era oprimido pelos reis, dos quais falam as visões de Daniel. A interferência não acontece diretamente e em lugar da atuação do povo para libertá-lo. Mas ao povo são dados o poder, o reino e a glória para governar a si e ao mundo inteiro.

É uma nova concepção de Deus, de história, de atuação de povo. O sujeito não é Javé, mas o povo dele, no qual ele encarna sua glória. A história é construída não como acreditavam os povos pagãos, por forças míticas que usavam o povo, mas é construída pelo próprio povo, numa perspectiva de participação democrática.

Esta afirmação mundanamente política é completamente diferente das interpretações esotéricas e alienantes que são feitas das visões apocalípticas por forças religiosas interessadas em manter a dominação do povo. É certo que as visões e o apocalipse são instrumentos metodológicos de conteúdo claramente confrontante com a religiosidade pagã, ou mesmo israelita, cujo intuito era o de fazer com que o povo se tornasse súdito — não só externamente, mas também com a mente e a f é — de reis e de poderes, que visava quebrar a resistência interna de pessoas e organizações e com isto a destruição do povo. É uma clara crítica ao Estado, tanto do helenista como o próprio israelita, no momento em que é proclamado o poder eterno do povo e o seu reinado sem fim. Não há mais exaltações à pátria, ao reinado, ao Estado. Surge salvadora a visão utópica de que o povo — e sempre o povo oprimido, não somente o israelita —, o povo do altíssimo Deus governará.

Neste homem que vinha entre as nuvens vemos uma alusão direta a Jesus Cristo, mas muito mais ao sei humano da criação, homem e mulher, na sua tarefa original de administrar este mundo assim como Javé o quer. E dentro deste contexto pode-se ver uma predisposição para o que Cristo viria a ser para toda a humanidade. Daniel é um pressuposto, entre outros, para a compreensão de Jesus de Nazaré como o Cristo.

Ê o restabelecimento da promessa de que é o ser humano criado à imagem de Javé, isto é, que vive e age no Espírito de Javé, em sua justiça, seu amor, sua concepção de mundo, que é este ser humano, agora coletivizado no povo de Deus, que irá governar o mundo. Não apenas Israel ou Judá. Uma nova ordem planetária se estabelece com esta afirmação. A visão de Daniel extravasa os limites do Estado de Israel, do conceito de Estado em si, para colocar uma visão universal de governo do povo — poder-se-ia dizer, já de uma maneira atualizada, de todos os povos, raças e nações oprimidas do mundo. De iodos os trabalhadores do mundo. São eles que governarão.

Não é por nada que Daniel lenha continuado preocupado com o que viu e que tenha ficado pálido de susto. Até hoje a afirmação de que os trabalhadores devem ter o poder na mão enche de medo conte de colarinho branco. Não foi isto que aconteceu nas eleições presidenciais de 1989?

... O seu poder é eterno e seu reino não terá fim. (V. 14.) Governarão o mundo inteiro para sempre. (V. 27.)

Mas esta afirmação não assusta somente os detentores de colarinhos brancos. Também os que creem que os trabalhadores deverão governar o mundo começam a se sentir assustados quando vêem o que isto significa. Em primeiro lugar significa destruição de todos os outros poderes. Daniel tem a visão de que isto acontecerá. Não deixa de ser assustador, especialmente para um profeta que estava ligado à corte e de repente vê tudo aquilo que conhece ser destruído. O próprio povo provavelmente se assusta com uma tal revolução. Mas ela é irrecorrível e certa. É isto que nos anuncia a visão de Daniel.

Em segundo lugar fica o susto e a incerteza, pelo fato de que um povo sempre oprimido, sempre marginalizado e miserável não tem experiência de governo. Nisto reside uma esperança, mas também uma insegurança. Não passou esta insegurança também pela cabeça daqueles que fizeram campanha com a Frente Brasil Popular nas eleições de 1989?

Além disso surge uma outra realidade que parece contradizer a tudo que afirmei anteriormente. É o fato de que desde o ano passado um vendaval passou pelo mundo e arrasou impérios e governos que se diziam socialistas, em muitos países do leste europeu. A campanha que os porta-vozes do capitalismo empreenderam foi no sentido de dizer que o socialismo morreu e o capitalismo é vitorioso. Quem pensa um pouco sabe que isto não corresponde à realidade. Mas a nível popular a imagem de tudo que é socialista ficou muito arranhada. E para muitos finalmente o campo se aclarou, o inimigo já não existe, agora é possível construir um mundo bom.

Ora, o que será que aqueles que querem tanto a derrota do socialismo vão colocar no lugar do espaço criado agora? Nada mais e nada menos do que as propostas capitalistas da economia de mercado, da propriedade privada, da concorrência para a escolha dos melhores. Fala-se da vitória da democracia sobre a ditadura.

Mas vejamos que alternativa é esta. Nós já a vivemos desde que o Brasil existe, e por isto não é preciso repetir dados que todos conhecem a respeito dos números da fome, da desnutrição, do analfabetismo, da marginalização de todo um processo de desenvolvimento e outras coisas mais. É claro que tem gente que vive muito bem neste regime económico. Mas a grande maioria sofre e vegeta. A proposta colocada pelo atual governo brasileiro é a de modernizar esta situação. Não mudar, mas modernizar. Isto é, melhorar e aprimorar os métodos de exploração. A economia de mercado deverá ser adaptada às novas épocas e trazida mais para perto daquilo que os economistas neoliberais chamam de ideologia do mercado total. Isto significa a dominação do mercado capitalista sobre todas as áreas do viver humano, a dominação total de leis estabelecidas para fazerem funcionar a livre iniciativa, a concorrência, a propriedade privada, o domínio do capital sobre o ser humano.

É esta a alternativa que nos resta hoje, já que o socialismo, que seria uma alternativa a este monocordismo, não existe mais, na concepção de alguns. Triste possibilidade para a humanidade.

Se é o povo que vê nesta opção a vontade de Deus, que irá governar tudo e para sempre, este mundo estará enveredando num caminho muito triste e sem esperança. Mas o discurso dos que defendem a ideologia descrita acima usa muito o nome de Deus. Invoca seu nome a cada instante, pedindo que ele possibilite seus pla¬nos. E uma grande massa de povo trabalhador acredita na sinceridade deste discurso.

Mas é isto que Daniel viu parecido com um homem e que vai governar para sempre? As visões de Daniel são a legitimação dos poderes que governam oprimindo os povos? É evidente que não. Daniel tem que aprender, nas visões que Javé lhe dá, que uma nova grande força se alevanta, simples como um ser humano, mas muito mais forte do que todos os monstros que devoram e destroem a humanidade. São eles que serão destruídos, e o povo trabalhador governará, com a legitimação de Javé que sempre se colocou e sempre se colocará historicamente ao lado dos que sofrem.

Nisto reside a esperança contra todas as esperanças. Javé inverte de maneira inesperada a situação da humanidade. Estamos fracos agora, mas seremos fortes nesta esperança.

4. E conservei tudo isto em meu coração (v. 28)

Um objetivo a mais da literatura apocalíptica é registrar a violência desmesurada que o povo vem sofrendo: escrever pra que a memória não fosse varrida pelo vento. Escrever o que não se deve esquecer (Ap 1.19).

Escrever para que os fatos não se apaguem. Escrever para registrar às coisas e dar nome às coisas (...) Na Europa e nos Estados Unidos os críticos literários se interrogam, com assombro, de onde é que os escritores da América Latina vão tirar essa transbordante fantasia, como é que inventam mentiras desse tamanho (...) de imperadores que constroem cidadelas com cimento e sangue de louros (...) de tiranos modernos, capazes de torturar uma criança diante de seus pais, de furacões e terremotos que viram o mundo de cabeça para baixo (...) de paisagens demenciais onde a razão se extravia. E é bastante difícil explicar a esses intelectuais prudentes que essas coisas não são produto de nossa doentia imaginação. Estão escritas na história, podemos lê-las nos jornais do dia, ouvi-las pelas ruas, e, às vezes, sofrê-las na própria carne. Habitamos uma terra de grandiosos contrastes e nos cabe agir em um tempo de desmesurada violência... (Isabel Allende, Vamos a nombrar las cosas, citado por Hans de Wit, p. 29.)

O desafio maior, além de registrar os latos, me parece que seria reagir (ver exemplo de Judas Macabeu em l Macabeus, cap. 3). A literatura de Daniel teria sido a palavra de Deus e a palavra de ordem para o movimento organizado dos macabeus. Não seria este o nosso maior desafio? Tornar a palavra de Deus a inspiração para a luta uma vez que ela mesma nos garante a certeza da vitória e a conquista de uma sociedade justa e igualitária? (Conferir Ap 21.22 e Is 65.17-25.) Por isso não podemos calar. Neste último domingo do ano é preciso falar e viver a boa nova de libertação.
Fomos encarregados disto. É tarefa difícil. Assim como Daniel perturbado e pálido, também nós ficamos diante dos fatos que presenciamos diariamente. Ele fica assim por causa da consciência que de repente tem da enorme potencialidade do povo oprimido, que c descoberta por Javé e colocada para dentro da história da humanidade.

Quiçá um dia possamos ficar perturbados e pálidos diante do fato de o povo trabalhador ter assumido o poder e todos os outros poderes estarem destruídos.

Prédica:

Sugiro que o pregador siga os pontos deste auxílio homilético. Fica claro que não pode se restringir ao texto indicado, mas para compreendê-lo deverá ler o contexto das visões e contar à comunidade o contexto em que foi compilado o livro de Daniel. (Ler os livros de Macabeus.)

— A referência aos textos de leitura: Jo 18.33-37 (explicado corretamente — mundo = situação, conjuntura) e Ap 1.4b-8 devem poder ajudar a entender Daniel e nossa situação hoje, bem como a proposta colocada pelo texto.

Os textos não são unânimes. São visões diferentes do sujeito da história. As tendências teológicas não são iguais no universo da história da teologia. É preciso lembrar isto.

Este texto deveria, antes de ser pregado, ser estudado, em grupos de estudo bíblico ou comunidades de base. A pregação dominical deverá ser uma conclusão destes estudos.

Por isto sugiro como prédica que os próprios grupos que estudaram os tex¬tos apresentem seus resultados nas reuniões da comunidade e nos cultos.

5. Bibliografia

WIT, Hans de. Quem é o Deus que tem o poder de vos libertar das minhas mãos?, in: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n° 2, Ed. Vozes, Sinodal e Imprensa Metodista, 1988, págs. 29-47.
SAUNIER, C. A Revolta dos Macabeus, Ed. Paulinas, 1987.
ASSMANN, Hugo e HINKELAMMERT, Franz J. A Idolatria do Mercado; En¬saio sobre economia e teologia, Coleção Teologia e Libertação, Vozes, 1989.
RAD, Gerhard von. Theologie dês Alten Testaments, Bd. II, Chr. Kaiser Verlag, München.
ZIMMERLI, Walter. Die Weltlichkeit des Alten Testaments, Kleine Vandenhoeck Reihe, Vandenhoeck und Ruprecht, Gõttingen, 1971.

 


Autor(a): Dario Schaeffer e Francisco Cetrullo Neto
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Último Domingo do Ano Eclesiástico - Cristo Rei

Testamento: Antigo / Livro: Daniel / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 13 / Versículo Final: 14
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1990 / Volume: 16
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13886
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