DEUS NA MARGINALIDADE

Relato de Caminhada com a Bíblia

01/12/1990

Este texto não pretende ser uma abordagem teórica sobre o tema Deus na marginalidade. É um relatório que fala sobre experiências num projeto com meninos e meninas que são obrigados a viverem na rua. Num projeto onde mulheres/ mães lutam com tudo em favor destas crianças. Num projeto em que todas estão descobrindo um Deus da vida e da esperança: o Deus das excluídas, dos marginalizados.

O projeto Reconciliação do Menor existe desde 1986 e promove um trabalho com crianças de rua na periferia de São Paulo. O primeiro objetivo deste proje¬to é prevenir a ida das meninas e dos meninos para a rua em busca de sustento, de sobrevivência. Neste sentido, oferecemos uma formação profissional para adolescentes que gera uma renda. Além disso, trabalhamos com crianças de qualquer idade que estão na rua e estão precisando de um acompanhamento. Não queremos uma prática assistencialista. O nosso objetivo é transformar uma realidade de marginalização. Nossa ação se dá num contexto sócio-econômico muito concreto, começando com a família, a favela, o trabalho. A base do nosso trabalho são as mulheres/ mães da própria favela que garantem a infra-estrutura do projeto, assumindo as responsabilidades e decisões. Com elas acreditamos na possibilidade de construir relações mais justas e fraternas no bairro onde vivem.

É destas mulheres/mães, da sua luta, sua fé que trataremos neste artigo. É o cotidiano delas: enfrentando a crueldade da sociedade, resistindo a ela, transformando-a.

Seguimos os passos do povo da Bíblia: também excluídos e marginalizados, mas aceitos por Deus. Assim como a Bíblia mostra Deus atuando na história dos hebreus marginalizados, acreditamos que ele é força e esperança para nós hoje.

Este texto é uma produção coletiva. É o pensar das mulheres do projeto, acrescido de uma reflexão bíblico-teológica. Dividimos o mesmo em duas partes: num primeiro momento vamos escutar a conversa das colaboradoras do projeto sobre Deus. A partir desta conversa vamos refletir um pouco sobre algumas características da fé em Deus. Do Deus que age na marginalidade e que atua fazendo-nos entender o processo de libertação. Depois, queremos analisar a importância de Deus neste processo.

1. Para início de conversa...

Sueli veio há pouco tempo para o nosso bairro. Através de pessoas amigas, ela ficou sabendo de um lugarzinho entre duas barracas onde daria para arrumar alguma coisa para morar. Com ela está o filho, Rosalvo, com 3 anos de idade, mais ninguém. O marido foi embora, não sei com quem... Ela trabalha como doméstica, e conseguiu depois de muito tempo juntar um dinheirinho para o material de construção. Muitos vizinhos ajudaram. Na primeira chuva caíram as paredes recém-levantadas. Começaram de novo. Numa noite, alguém levou o telhado... A construção ficou mais um mês parada... Até conseguir outra vez o dinheiro para o material que faltava.

Agora já passaram alguns meses. Sueli trabalha durante o dia todo. Rosalvo fica com a gente (no projeto). Nas últimas semanas, ela teve que ficar em casa por causa de doença (doença de Chagas). Nestas semanas não ganhava nada. Ontem encontrei-a vendendo roupas dela e do filho para conseguir um pouco de dinheiro para comprar leite e pão...

E aí?

Onde está Deus na marginalidade? O Deus glorificado na miséria? O Deus onipotente na decepção? Como aparece Deus na vida de Sueli e Rosalvo?

Como identificar o Eterno frente à morte cotidiana? Quem proclama o Reino de justiça no meio da violência e exploração?

Deus na marginalidade é uma contradição. O sofrimento questiona a existência de um Deus que colocou a justiça e o amor na sua bandeira. A justiça que deve vir acompanhada de vida e paz, o amor que restaura a vida, que a transforma. A miséria desafia o conceito de um Deus onipotente e de uma teologia da glória.

2. Deus, quem é você?

Numa conversa com as colaboradoras do projeto perguntamos: quem é Deus? O que ele significa para nós?

Veva: Deus é saúde e força, né?

Sueli: Deus é lindo e puro. É muitas coisas. Eu sinto que ele dá muita força, amor e felicidade. Apenas que a gente não é capaz de sentir ele todo o tempo.

Cássia: Eu acho que sem Deus não somos nada. Pra gente ter saúde, felicidade, paz, a gente tem que pedir a Deus para isso. Se não, não adianta nada. Tem que ter Deus primeiro no coração.

Nas respostas das companheiras Deus representa um forte ponto de referência. Certamente a primeira impressão é de um Deus ideal. Um Deus distante da realidade. Um Deus diluído na abstração do BOM. Por outro lado, é um Deus apresentado com as cores do desejo. Desejo de um mundo onde haja amor, justiça, saúde, felicidade. Só Deus pode dar forças para construir o mundo desejado.

A fé em Deus é um movimento de orientação e procura intensa dos valores e estados que se resumem no BOM. Muitas vezes, se faz necessário o resgate do Deus histórico. Resgate do Deus presente nos fatos da vida.

Sem dúvida, a caminhada de fé na comunidade marginalizada não é linear e sim contraditória.

Veva: A gente sente raiva e revolta. Às vezes penso que Deus não existe. Ninguém sabe na hora do desespero sentar e pedir a Deus para que dê forças, né?

Sueli: Eu gostaria que o mundo fosse paz e amor. Que não tivesse violência, nem desentendimento entre as pessoas. Como Deus se colocou no mundo, gostaria que tudo fosse assim, mas não tem como. Não todos que sentem Deus no dia-a-dia...

Qual é a expressão de amor na injustiça e agressão? Com que voz fala Deus na injustiça e violência?

A comunidade marginalizada vive constantemente as consequências da violência e agressão. A violência endurece. Descaracteriza o humano. É difícil ter fé no meio da violência. Deus resgata o humano perdido nos escombros da violência. Por isso a fé da marginalizada, do oprimido não é uma simples fuga. Significa superar a humilhação cotidiana. Deus devolve a dignidade dos seus filhos e filhas marginalizados. Dá capacidade para lutar às pessoas que sofrem no posto de saúde, na escola, no ônibus, no emprego. A valorização da pessoa, a recuperação da identidade de seres criados por Deus, portanto merecedores de vida, é a base de tantos passos para a libertação.

3. O pobre não tem nada, o rico tudo tem...

Cida: Deus está com a gente. A pobreza não é ruim. Não precisamos passar vergonha porque estamos pobres. Só falta a união entre a gente.

Veva: Outros pensam que são melhores que a gente, mas não é assim. Eles são iguais que a gente e não têm mais direitos.

É no grupo, na organização, na união de todas que acontece o milagre do novo nascer. As que estavam (estão) à margem descobrem-se gente. Constatam sua dignidade. As oprimidas começam a ganhar consciência das causas do seu empobreci mento. O mundo está dividido: o pobre não tem nada, o rico tem tudo. O pobre está excluído, e só o rico tem vez. Isso não combina com a vontade de Deus. Como mudar isso?

Maria Elena: Eles (os ricos) dormem pensando em ganhar mais, ter mais do que eles já têm. Mesmo que eles não sabem o que vão fazer com tudo isso.

Veva: É mais fácil para um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.

Elena: É um outro Deus que eles têm, porque só pensam em ganhar.

O despertar da consciência se dá na constatação de uma realidade muito dura onde uma minoria detém o poder econômico, político e os privilégios sociais. Esta minoria exclui a maioria da população... Joga-os à margem no sofrimento, na humilhação e na dor.

O mérito da fé vivida na marginalidade possibilita-lhes identificar a presença do pecado e da graça na sociedade. Ajuda-lhes na percepção da presença do peca do, da injustiça, opressão, negação de participação do povo. Ao mesmo tempo que os leva a criar relações mais justas, participadas, fraternas. E é assim que o Deus dos/das marginalizados/as se revela em plenitude. Como no êxodo (Êx 3), ou de o clamor dos escravos israelitas foi ouvido por Deus e este moveu uma ação, motivando a caminhada libertadora.

Quais são os clamores que se ouvem hoje?

Veva: Capaz que os nossos filhos morrem lá no posto mesmo...

Elena: O médico só atende quem tem dinheiro.

Veva: É uma humilhação que a gente passa no posto.

Sueli: Eu acho que cada um de nós, pobres, tem que lutar para chegar aonde a gente quer chegar. Deus nos fez todos iguais, nós vamos chegar lá. Ele dá forças e faz a gente lutar para conseguir uma vida sem os sofrimentos que passamos. Só que a gente deve fazer a nossa parte para que Deus possa nos ajudar. Às vezes a gente chega num ponto que não aguenta mais. Mas vamos continuar.

Veva: Não pode parar e sentar. Tem que pedir a Deus e lutar para conseguir.

4. Vencendo a passividade

Vera: Eu já fiquei muito doente. Já passei quase um ano na cama. Tinha reumatismo no sangue. Quase morri. Então, a minha mãe fez uma promessa em Aparecida: quando ela melhorar, ela vai lá a pé para ajoelhar. Depois melhorei. Eu tenho muita fé em Deus.

A descoberta do Deus libertador, que inverte os valores da sociedade que discrimina, não se dá de uma vez. Há séculos de submissão que influem na absorção da fé cotidiana. A mudança se faz no caminho. É no caminho que ocorrem as contradições e as conquistas. Nada absoluto. Mas muito, muito dinâmico, sem negar o conflito.

Nas palavras das companheiras do projeto constatamos esta situação (Veva, Elena, Sueli, etc.): se em alguns momentos Deus fica distante da nossa realidade sofrida, da vida concreta. Se a fé aparece individualista, passiva... Em outros, principalmente na caminhada conjunta, Deus se revela esperança. É um conceber coletivo de Deus que opta pelo empobrecidos. Faz deles os privilegiados do Reino. Aí, toda ação organizada, a luta das oprimidas, o compromisso dos aliados dos pobres são portadoras da causa de Deus no mundo e geradoras dos bens do Reino vividos e proclamados por Jesus. Que bens são esses? São a justiça, a superação das discriminações, as novas relações de poder, de trabalho, de amor, etc.

No nosso projeto o momento decisivo da nossa caminhada para a libertação foi a nossa UNIÃO. Foi descobrir pistas de organização. Nós juntamos as forças. As pessoas mesmas da favela assumiram as responsabilidades. Assim, sentiram o trabalho crescer. Os primeiros sinais do Reino. A situação mudou pelo próprio esforço grupal:

Veva: Juntos podemos enfrentar o sofrimento. Podemos dizer que nós temos direitos e que queremos respeito. Antes nunca pensava poder fazer isso que estou fazendo como educadora. Agora, quando vou lá, me sinto forte, esqueço a humilhação. E é tão gostoso trabalhar com as crianças!

Cássia: Deus me dá muita força para poder trabalhar com as crianças. Dá coragem para continuar e melhorar o trabalho. E todo o mundo está vendo como está crescendo. Sueli: Peço a Deus que dê forças para todas as colaboradoras para continuar nesta luta. Tantas crianças estão passando fome, mas nós estamos juntas. As pessoas sozinhas não têm coragem para fazer nada. Deus atua em nós. De repente acontece uma coisa: estamos em trinta e todas ajudam e trabalham. De repente mudamos uma coisa para melhorar.

Estamos cientes das contradições que vivemos. Ainda experimentamos o efeito de uma fé alienante que nos foi transmitida antes, por tanto tempo... Mas descobrimos outras possibilidades quando juntamos as forças... Fomos analisando nossa realidade. Experimentando o poder transformador de Deus, que escuta o clamor dos pobres e capacita-os para mudar as coisas... reivindicar seus direitos como pessoas dignas de respeito. Os passos no trabalho do projeto unificaram o grupo, conscientizaram das necessidades e dia após dia vêm capacitando cada pessoa para a superação das limitações e dificuldades.

5. Bíblia: a companheira indispensável

A Bíblia se fez uma companheira indispensável nesta caminhada. Redescobrimo-nos nela: olhamos a história do povo de Deus, sua luta e resistência e compreendemos nossa própria história e resistência. Vejam só um exemplo:

Numa reunião estudamos Êxodo 1.8,22. O novo rei do Egito manteve os hebreus em dura servidão. E ainda exigiu que se matassem os meninos hebreus recém-nascidos. Como este texto ajudou-nos a compreender o nosso hoje? E como ajudou-nos a organizar a nossa ação?

Vera: Hoje em primeiro lugar está um desnível social e econômico enorme.

Anita: Hoje também tem escravidão. Acho que muita gente está sendo obrigada a fazer certas coisas. E ganham muito pouco dinheiro.

Um problema especial é o das crianças. O faraó teve medo das crianças. O povo hebreu cresceu muito. Por isso mandou matar os meninos recém-nascidos.

Cida: O faraó quer matar os meninos e deixar as meninas. Com o tempo, elas vão crescendo e poderão derrotá-lo. Muitas podem ficar fortes para derrotá-lo e matálo.

Cássia: As crianças são a esperança de mudar a opressão. São a esperança paia o futuro. Até o faraó teve medo delas.

Graça: Um problema muito grande hoje é que o governo não dá chances para as nossas crianças de ter uma boa educação. Elas precisam de uma educação paia que quando se tornem adultas possam defender-se. Ver o que é certo e errado O governo as quer nas mãos dele. Ele tem medo das crianças porque com educa cão poderiam dar contra ele, vamos dizer assim. Isso é uma das coisas prioritárias que as crianças têm que ter: educação. Tem tantas crianças que têm 14 anos e são analfabetas, ou não passam nem pela primeira série...

Anita: Hoje se mata as crianças. Elas morrem de fome.

Terezinha: Fome e saúde, né? Esta semana revisamos as crianças e vimos em tantas feridas no corpo inteiro. As crianças não têm um mínimo de defesa no organismo. Então, elas estão em toda parte com tumores, feridas. Isso se dá pela desnutrição, não têm uma alimentação boa. Hoje eles não mandam matar as crianças como mandaram as parteiras. Mas só de tirar o leite das crianças...

Eni: O problema do emprego também. O pai não tem emprego. Como ele vai dai condições aos filhos com uma boa alimentação? Tendo também um salário mínimo, que é um salário de fome... Isso é também uma maneira de matar. Uma maneira indireta, mas que está matando as nossas crianças.

Cida: Ou alguém que sofre um acidente no trabalho. Fica encostado. Fica 90 dias sem receber. Como vai sobreviver?

Importantes para a nossa reflexão são as parteiras: como elas, como mulheres, enfrentaram o poder e a opressão do faraó? Com este passo elas encaminharam a libertação do povo hebreu?

Eni: Elas deram um jeito de atuar contra a lei do faraó. Hoje, são as mães que lutam, que vão para os movimentos populares e conseguem se conscientizar que se deve lutar pelo seus direitos. A única arma que nós temos é a luta (organizada). O pessoal precisa reagir, não ficar acomodado e aceitar o que o governo faz.

Veva: As mulheres estão na frente no nosso projeto. Quem está mais envolvido são as mulheres, como naquela época as parteiras. Elas que estão querendo salvar a vida destas crianças.

Terezinha: As parteiras fizeram isso: porque temiam a Deus e depois tiveram coragem para mentir e enganar o faraó.

Eni: Deus ajuda a partir do momento que você começa a amar estas crianças e assume o compromisso. E também a coragem de deixar a sua casa, o seu marido para cuidar das crianças e enfrentar os problemas. Vera: Deus atua na união. Na união aprendemos a partilhar e crescemos juntas.

Compreender a Bíblia é também conhecer a gente. Os homens, as mulheres, as crianças do texto sagrado também eram marginalizados. Deus opta pelo excluídos do mundo instituído. Do mundo determinado pelo poder e pelo dinheiro. O centro da sua ação é a libertação dos marginalizados da terra.

Nada melhor que um grupo de mulheres e crianças vendo a sua realidade a partir da situação/reação das mulheres hebréias e egípcias.

O texto das parteiras aglutina em torno de si informações precisas sobre a situação da mulher e da criança. O Império teme o útero das mulheres porque precisa ações que restrinjam e controlem as utopias e alternativas libertadoras. O Estado se pressupõe dono do trabalho, dono do corpo que trabalha e dono dos processos de trabalho e corpo. Na resistência das parteiras o Estado não encontra somente um obstáculo. Mais do que questionar uma ordem, a resistência dessas mulheres coloca em suspenso todas as pressuposições do Estado usurpador. (Nancy Cardoso. Revista Tempo e Presença. CEDI.) As companheiras do projeto perceberam o jogo do Império capitalista. O Império que determina as regras da nossa sociedade. O Império que também mata e manda matar. Que exclui. Houve identificação com o texto bíblico. Ao mesmo tempo que na reflexão reafirmaram a sua luta e participação no projeto.

6. Conclusão

Como propomos inicialmente, este relatório é a tentativa de resgatar a experiência das mulheres que atuam no nosso projeto, mesclado com uma reflexão bíblico-teológica.

Não esgotamos a experiência da reflexão/ação vividas por elas. Apresentamos apenas alguns sinais do Deus encarnado na vida da comunidade marginalizada. Do Deus que se revela nas contradições e se afirma nas atitudes libertadoras.

Compreendemos que a nossa luta evangélica é de mudar as estruturas que oprimem para que haja espaço para todas as pessoas excluídas respirarem.

Sem dúvida, esta foi uma experiência que ajudou-nos a refletir sobre nossa prática. Oxalá sirva para motivar outras iniciativas de ação solidária com o povo sofrido, marginalizado.

Participaram na produção deste texto: Maria Aparecida, Cássia, Maria Elena, Genoveva de Jesus Souza, Maria Sueli, Terezinha Borges Orlando, Eni, Vera Barbosa, Anita, Dirk Oesselmann, Genilma Boehler.

7. Bibliografia

BOFF. Leonardo. Do lugar do Pobre. 2a edição. Ed. Vozes. Petrópolis. 1984.
CARDOSO. Nancy. Na resistência das Parteiras. Revista Tempo e Presença. CEDI, no. 248. Ano 11. Dez/89. SP.

Dirk Oesselmann
 


Autor(a): Dirk Oesselmann
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1990 / Volume: 16
Natureza do Texto: Artigo
ID: 13870
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1Coríntios 3.16
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