Equidade de gênero

18/10/2013

Equidade de gênero

Prof. Dr. Felipe Koch Buttelli1

Justiça e igualdade são duas realidades que estão intimamente ligadas. Ambas se relacionam, de modo que: onde há igualdade, há justiça. Um exemplo bastante claro disso é a imagem da deusa romana chamada Iustitia. Dizem que ela é a equivalente romana da deusa grega diké. A diferença mais clara entre as duas é que a deusa Iustitia usa uma venda nos olhos, que não lhe permite enxergar para quem a justiça está sendo feita. De acordo com a mitologia, ela só dá o seu veredito quando a balança se encontra perfeitamente equilibrada. Essa imagem que vem da mitologia romana e que está presente na nossa compreensão de direito no contexto ocidental, mostra-nos duas coisas interessantes: a primeira é que a justiça só é feita quando há equilíbrio, ou seja, igualdade na balança. A segunda é que a deusa mitológica mantém sempre seus olhos vendados, não querendo saber para quem está fazendo justiça, seja para pessoa rica ou pobre, negra ou branca, homem ou mulher. A justiça tem por princípio a igualdade.

Igualdade sempre foi um conceito caro para a fé cristã. Mais do que uma concepção, ela fez parte do ministério de Jesus e de seus discípulos e discípulas. Isto é algo realmente digno de menção, uma vez que o contexto judaico no qual Jesus e os discípulos e as discípulas viviam era fortemente patriarcal e os espaços e funções que cabiam a mulheres e homens eram diferenciados. Jesus teve, nesse sentido, uma postura bastante revolucionária para sua época. O Evangelho de Marcos 15.40-41, por exemplo, menciona como diversas mulheres “acompanhavam e serviam” a Jesus em seu ministério, tal qual homens o faziam. Em Lucas 8.1-3 lemos como mulheres acompanhavam Jesus e os “doze”, prestando “assistência com seus bens”, ou seja, muitas mulheres financiavam e auxiliavam no ministério de Jesus. Em João 8.1-11, onde é narrada a história da mulher pega em adultério, Jesus a protege. O critério adotado por Ele preza pela igualdade de todos os seres humanos diante de Deus e não pela desigualdade de um sistema legal patriarcal: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire a primeira pedra”. O critério da igualdade também é recordado pelo apóstolo Paulo na carta aos Gálatas 3.28: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. A igualdade enquanto modo de vida cristã, relacionada a todos os aspectos da vida em comunidade, é mencionada nos Atos dos Apóstolos 2.44: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum”. Isso nos leva a identificar que tanto a prática de Jesus quanto a vida de discípulas e discípulos apontam para um senso de justiça nas relações entre as pessoas, na qual a igualdade é critério fundamental e determinante.

Na sociedade ocidental, o exercício de relações igualitárias sempre esteve em risco e ameaçado por guerras, absolutismos e imperialismos que estabeleciam regimes de superioridade entre seres humanos. Neste percurso histórico, houve a construção de modelos específicos de família e de padrões de relacionamentos entre mulheres e homens. As mulheres acabaram sendo enclausuradas em papéis específicos que não lhes permitiam exercer certas tarefas na sociedade, bem como fazer-se presente em alguns espaços públicos. Houve uma progressiva dicotomização entre homem e mulher, isto é, esta estava destinada unicamente ao espaço doméstico, à função de cuidado da família e a algumas profissões que eram consideradas femininas.

Precisamos ser autocríticos e reconhecer que a Igreja contribuiu e ainda contribui profundamente para a construção desses papéis de gênero. Através de uma linguagem que sempre priorizou uma visão masculina de Deus, a Igreja acabou divinizando a ordem patriarcal, isto é, criando a ideia de que Deus é apenas pai, em uma sociedade que toma a figura paterna como central para a organização social. É necessária a diversificação das metáforas e uma linguagem que considere outras características de Deus, como amigo, filho, mãe, etc. para desconstruirmos um argumento religioso que sustente o patriarcado. A Igreja também fez uso da liturgia e da interpretação bíblica, principalmente no espaço do culto, para simbolicamente assegurar que a ordem social androcêntrica se perpetuasse. Isso ocorreu através da divisão dos espaços na comunidade e das tarefas que homens e mulheres executam, por exemplo. Outro modo de sustentar uma sociedade androcêntrica é o uso da autoridade ministerial, como prioritariamente masculina. Na IECLB já se ordena mulheres há 30 anos, mas ainda há resistência a ministras mulheres em alguns contextos, justamente por não se conceber que o poder simbólico atribuído ao ministério, sobretudo pastoral, possa ser estendido às mulheres. As comunidades cristãs, de modo geral, também compartilham de algumas posturas que existem na sociedade como um todo e acabam instigando a reprodução de padrões de comportamento específicos. A mulher que fosse diferente, solteira ou divorciada, por exemplo, e que não correspondesse ao perfil que sobre ela era projetado, de esposa e mãe, sofria preconceito, era considerada desviada.

Desde a Revolução Francesa, em 1789, que tinha por lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” há um intenso trabalho de construção de igualdade de gênero. Neste processo, homens e mulheres questionaram várias ideias correntes e precisaram desconstruir uma falsa noção de superioridade masculina. Para se alcançar uma sociedade mais igualitária, também no que diz respeito a relações de gênero, era necessário assegurar a dignidade de cada pessoa, com seu valor intrínseco, que é inquestionável. Deste esforço surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. De modo semelhante ao texto de Gálatas, ela reconhece no 2º artigo que “Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.” Ou seja, mulheres e homens têm o direito de não serem tratados de modo desigual. Esses direitos humanos, promulgados pela Organização das Nações Unidas em 1948, dos quais o Brasil é signatário, foram cristalizados também na nossa Constituição Federal. A chamada Constituição Cidadã de 1988 reconhece no artigo 5º, Inciso I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Podemos, então, perguntar-nos: se a igualdade de gênero é tão amplamente reconhecida, por que precisamos continuar falando sobre isso ainda hoje? Historicamente, mulheres têm, no Brasil, maior índice de desemprego do que homens, sobretudo as mulheres negras. Ou seja, gênero e etnia sempre se entrecruzaram na construção da desigualdade brasileira. As mulheres há tempos recebem menor salário do que homens para as mesmas funções e também permanecem mais na informalidade, sendo as negras mais vulneráveis ainda. As desigualdades, no entanto, não existem apenas no mercado de trabalho e na renda: quanto à representatividade política, mulheres ainda são minoria, mesmo que esta situação esteja mudando. A equidade representativa também é desafio para a IECLB. Para sermos uma igreja mais igualitária, precisamos promover sempre mais o acesso de mulheres a posições de poder.

A igualdade de gênero é, portanto, fundamental para a efetivação de uma sociedade justa. Não se trata somente de concebermos a igualdade como um princípio ou de a compreendermos como um aspecto central para a nossa ordenação social, uma vez que está assegurada na nossa Constituição; trata-se de reconhecermos a igualdade como vocação cristã, convite de Deus, prática de Jesus e modo de vida da comunidade primitiva. Construir a igualdade e justiça de gênero é o nosso compromisso evangélico no mundo e a missão a que Deus nos chama.

Proposta de estudo

Após a devida introdução ao assunto feita através da leitura, tempestade de ideias e explicação do texto, sugere-se dividir o grupo em grupos menores para, a partir do texto lido, refletirem sobre as seguintes questões:

Grupo 1: Igualdade e justiça

• O que entendemos por igualdade e por justiça?
• Qual a relação entre elas?
• Pessoas diferentes necessitam todas da mesma coisa?
• Justiça significa tratar todas as pessoas da mesma forma?
• Onde deve haver igualdade para que haja justiça?

Grupo 2: Relação de gênero na sociedade

• Existe um padrão de comportamento masculino ou feminino?
• Em seu contexto social, homens e mulheres têm as mesmas oportunidades? Sim ou não? Por quê?
• No mercado de trabalho, quais cargos/profissões as mulheres ocupam e quais cargos/profissões os homens ocupam?
• Há igualdade nos salários?

Grupo 3: Relação de gênero na família

• Qual o papel da mulher e do homem em nossas casas?
• Como o marido trata a esposa? Como a esposa trata o marido?
• Que exemplo pais e mães dão a suas filhas e aos seus filhos sobre a relação entre marido e mulher?
• De que forma reforçamos padrões de masculinidade e feminilidade na família? Como poderíamos promover questionamentos e mudanças de conceitos e pré-conceitos?

Grupo 4: Relação de gênero em nossa comunidade

• Há equilíbrio de gênero no desempenho de funções e tarefas em nossa comunidade?
• Homens e mulheres estão igualitariamente engajados e engajadas nas mais diversas atividades da vida comunitária?
• Quem são as lideranças de nossa comunidade?
• Quem participa da assembleia da comunidade? O homem, a mulher ou o casal? Por quê?

1. Dr. Felipe Koch Buttelli; doutorado em Teologia Sistemática, mestrado em Teologia Prática, bacharel em Teologia. Professor. São José/SC

2. Proposta elaborada por:

Adriane lorenz Cassen; bacharel em Teologia. Pastora. Ijuí/RS.

Beatriz Regina Haacke: bacharel em Teologia. Candidata ao Ministério Pastoral. Carazinho/RS,

Sonja Hendrich jauregui: bacharel em Teologia. Pastora. Carazinho/RS.

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Autor(a): Felipe Gustavo Koch Buttelli
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Estudos de Gênero / Ano: 2013
Natureza do Texto: Artigo
ID: 25315
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