Ezequiel 34.1-2,(3-9) 10-16,31

Auxílio Homilético

03/05/1981

Prédica: Ezequiel 34.1-2,(3-9) 10-16,31
Autor: Erhard S. Gerstenberger
Data: Dia do Trabalho e Misericordias Domini
Proclamar Libertação - Volume: VI


I – Prefácio

Francamente, primeiro me assustei com o Ai dos pastores (v.2): Mas logo descobri: não somos nós, funcionários eclesiais, os que estão sendo acusados, frontalmente, pela mensagem de Ezequiel. Muito antes, são os dirigentes políticos e, quem sabe, económicos. Pois as nossas posições sociais e as nossas rendas não são tão elevadas assim. Fazemos parte, isto sim, da classe média para cima, ou seja, pertencemos aos 20% da população que regem o país. Estamos, no entanto, na faixa inferior dessa elite. Se bem que esta se apascente a si mesma consumindo atualmente, no Brasil, perto de 70 da riqueza nacional, deixando os outros 80 5 da população compartilhar entre si os 30 dos bens que restam, não nos encontramos na primeira fila dessa alcateia. Antes, ficamos na sua retaguarda, alimentando-nos das migalhas que caem da mesa dos ricos, quer dizer, de 5 até 8 salários mínimos, mais habitação. Tem gente muito mais rica e muito mais influente do que nós...

II - Pastores predatórios

Quem está sendo repreendido em Ez 34, então, são os pastores de Israel. E não resta dúvida nenhuma de que pastor era, no Oriente Médio Antigo, um título exclusivamente real, isto é, governamental. Os reis da Babilônia se orgulhavam de serem bons pastores para com os seus súditos. Da mesma forma, embora não usando o título pastor, o AT fala nos deveres dos reis de Israel (cf. Sl 72). O título pastor por sua vez frequentemente indica a soberania de Javé sobre o seu povo (cf. Is 40.9-11; Sl 80.1). Às vezes, no entanto, as testemunhas deixam transparecer que também o rei israelita, na sua função de vice-regente de Javé, podia «r chamado de pastor (cf. l Rs 22.17; Is 44.28). A designação mais forte, neste mesmo sentido, era a de filho de Deus (cf. 2 Sm 7.14; Sl 2.6s; 89.26). Parece bem claro, portanto, que função e título de pastor pertenciam, no AT, exclusivamente a Javé e ao seu governante em Israel. Não se referiam à classe sacerdotal ou profética.

Resta, no entanto, uma dúvida: de quem fala EZ 34, concretamente? Quais os reis ou governos denunciados? Tentemos localizar o texto historicamente. Chama atenção, à primeira vista, que EZ 34 não é um capítulo homogêneo. Basta notar a irritante repetição nos vv.7-8 e a brusca mudança da temática no v.17. Mesmo assim, podemos constatar: já o núcleo original do discurso reflete a situação exílica. Passaram-se uns 12 até 25 anos da primeira deportação de 597 a.C. (cf. Ez 33.21; 40.1; 2 Rs 24.12-16). A deportação definitiva acontecera em 587 a.C. -uma data que também já pertencia ao passado. Contra quem Ezequiel estava profetizando, a esta altura dos acontecimentos?

Será que o profeta visava— num tipo de retrospectiva e globalmente — todos os reis de Israel, já que somente um deles, Joaquim, ainda sobrevivia no cativeiro, nesta época (2 Rs 24.12)? Em geral, os comentaristas tomam esta posição, insistindo que Ezequiel queria, de maneira, digamos, deuteronomística, culpar os governos do passado pela miséria do presente e assim preparar a sua mensagem de salvação. Parece-me muito incerto que o próprio Ezequiel tenha pensado nessa linha. Entre outras, as razões seguintes contradizem tal interpretação: a) Um profeta qualquer normalmente não prega contra os mortos mas sim contra os seus contemporâneos (cf. a repreensão bem atualizada do v.10). b) O título de pastor, hesitantemente usado para os reis de Israel, aplica-se com ênfase a um dirigente estrangeiro que age a serviço de Javé (cf. Is 44,28). c) A promessa de um único rei messiânico (v.23) parece se justapor a um regime pluriforme de príncipes e generais estrangeiros, d) A salvação por Javé (vv.11-16) aparentemente deve corrigir diretamente as falhas e os pecados daqueles 'que neste momento histórico exploram o povo santo, e) Justamente esses crimes, embora formulados numa linguagem simbólica e estereotípica (vv.3-6), podem refletir arbitrariedades de tiranos alheios. O Os textos bem parecidos de Jr 23.1-6 e 11.16-17 igualmente pressupõem situações exílicas de opressão.

Seja como for, Ez 34 trata em primeiro lugar da corrupção e perversão do poder político vigente na época. Ficando dentro da analogia pastoril, o profeta denuncia o egoísmo e a brutalidade dos poderosos (vv.3-6). Desrespeitam eles totalmente as suas incumbências divinas de guiar e promover o povo. Interessante a ênfase especial (como em todo o Oriente Médio Antigo) nas providências para com os fracos. O v.4 realmente contém uma descrição clássica, um catálogo ético, dos deveres reais. Esses usurpadores, porém, consideram o povo a sua propriedade particular, a ser consumida por eles (v.3). Assim os israelitas se tornam desamparados (vv.5-6).

Temos que constatar: qualquer poder político, em qualquer época, está sujeito à mesma tentação de explorar e devorar o povo ao qual deveria prestar serviço. Tal perversão do poder não é uma invenção do homem moderno, se bem que a partir da era industrial os meios de repressão e exploração humana tenham aumentado significativamente. Mudou-se também o seu caráter: o domínio de poucos sobre as massas submissas tornou-se mais anónimo do que nunca. Apesar de toda a pregação cristã, e apesar das melhores garantias democráticas bem como das mais honestas revoluções socialistas persiste essa exploração do homem pelo homem. Em todos os países surgem constantemente vários e variáveis regentes políticos que se interessam, em primeiro lugar, pelo saneamento das suas próprias contas. O que um homem como Hugo Abreu (op. cit.) — do qual não se pode dizer que tenha sido um radical - relata a título de corrupção no Brasil é violento. Exemplos mais extremos ainda são aqueles ditadores que vivem gloriosamente das suas centenas de milhões de dólares roubados de seus respectivos povos, p. ex., o senhor Somoza, da Nicarágua, e o senhor Pahlevi, do Irã. Da mesma forma, embora em proporção menor, muita gente entra na política com a finalidade de ganhar dinheiro para si mesmo e a sua parentela. A situação se agravou na época moderna, na medida em que a vida política passou a ser condicionada pela economia. Em consequência, muitos governos se transformaram em instrumentos dóceis das grandes empresas. Não faltaram, nos últimos anos, os graves escândalos a nível nacional e internacional, envolvendo, via de regra, empresas multinacionais e vultos políticos bem respeitáveis. Enquanto isso, o povo humilde sofre as mais cruéis privações, e uma propaganda sutil insinua que a miséria não se deve à avidez da elite governante, mas a forças anónimas e incontroláveis.

Seria necessário meditar, a esta altura, sobre casos concretos de abuso do poder. Convém lembrar, p. ex., os milhões de camponeses que perdem as suas terras, e visualizar uma família só: ela chega à grande cidade, sem recursos e sem chances, lixo humano. Podemos pensar também nas massas de trabalhadores industriais, na sua luta por sobrevivência e melhoramento das condições de vida. Se uma greve tem êxito, de certo a inflação cobrará do operário o que ganhou. Ou, para mencionar alguns nomes individuais dentre os que sofreram opressão e exploração, basta apontar os dois chefes indígenas assassinados há pouco tempo, Angelo Pereira Xavier na Bahia, e Angelo Cretan no Paraná. Eles resistiram demais à cobiça dos donos brancos. Outras vítimas de uma força organizada de repressão: José Carlos e Luiz Carlos Ferreira Couto, de Engenho Porto na Baixada Fluminense, sequestrados e fuzilados por policiais no dia 31 de março de 1980. E assim por diante...

III - A exoneração dos opressores

Uma coisa é estranha: à denúncia feita em Ez 34 não segue um julgamento de peso igual (cf. v. 10). Ou o profeta não estava muito interessado no destino dos opressores, ou ele não podia arriscar pronunciamentos subversivos. Comparando vereditos violentos contra os líderes de Israel, nos demais livros proféticos (cf. Os 5; Am 4.1-3; 8.4-10; Mq 3.9-12; Is 7. 17-25; Jr 22.18s etc.), o aviso aos pastores em Ez 34.10 parece bem temperado ou até tímido. Mesmo assim, é suficiente para estimular a nossa reflexão. O que pode e deve acontecer, quando os poderosos abusam dos seus privilégios? O texto simplesmente diz: Deus não tolera indefinidamente o arbítrio dos governantes. Eles têm que ser substituídos. Javé retira deles sua autorização. Mas como?

A nossa própria situação no mundo de hoje suscita a pergunta a respeito dos meios e fins de uma mudança política. Certamente, modificaram-se muitos elementos e pressuposições da conjuntura social, desde a época de Ezequiel. Quando é que termina, ao nosso ver, o mandato de um governo? Quando perde um governo, irrevogavelmente, a sua legitimação? Hoje fala-se muito em revolução ou evolução social, sendo ambas de origem humana. O problema, então, é que o homem se tornou muito mais parceiro, colaborador de Deus do que antes. O homem assumiu, através dos séculos, cada vez mais responsabilidade quanto à sua própria história e seu destino final. Ezequiel ainda podia falar exclusivamente da atuação de Javé. Hoje, na verdade, temos que contar com a autoria humana, com a autonomia e até a auto-suficiência do homem, na área sócio-política. Por isso: como termina o governo de tiranos e exploradores?

Qual a posição cristã? Muitos estão convencidos de que apenas uma revolução pode melhorar a situação. Muitas ideologias, da esquerda e da direita, pregam a mudança violenta. Atrás dessa atitude se esconde o triste fato de que proprietários e donos de povos e indústrias raramente abrem mão da sua prática exploradora. A história de Cuba, Nicarágua, São Domin-go, Haiti, El Salvador e de outros países da América Latina oferece exemplos gritantes - e gratuitamente. Os oprimidos se levantaram quando não aguentavam mais a opressão. E sempre aconteceu que alguns cristãos, compelidos por sua consciência cristã, participaram da luta sangrenta. Há situações, nas quais isto é perfeitamente legítimo.

Mas os cristãos não agem e reagem - nem na vida política - como marionetes de uma doutrina ou ideologia. Sabem muito bem avaliar a realida¬de do momento. Sabem que as realidades divergem. Justiça e paz às vezes são alcançáveis através de uma longa caminhada de conscientização e desenvolvimento social. Não falo assim para acalmar os sofredores nem para confortar as consciências inquietas da classe média ou dos pastores. O caminho da evolução é mais duro do que a revolução sangrenta. Mas cabe aos cristãos testar, com paciência e sacrifícios, a viabilidade dessa avenida. Incluo nesta afirmação as diversas tentativas de aberturas sócio-econômicas que se vivenciam na América Latina. Seriamente, não acredito muito em seu sucesso. Pois, ao que me parece, elas têm pouquíssimas chances de efetuar as reformas radicais necessárias para trazer de volta condições de vida mais ou menos dignas. Mesmo assim, tenho certeza de que cristãos não podem desacreditar ou rejeitar, de antemão, tais tentativas. Somos obrigados, diante de Deus, a buscar e encorajar desenvolvimentos pacíficos que nem por isso deixem de ser radicais. Na verdade, a viabilidade de uma evolução tranquila se julga justamente pela capacidade de alcançar verdadeiras reformas em prol do povo, a saber, nas áreas da agricultura, distribuição da renda, administração, saúde, educação, etc.

Pensando especificamente no dia do trabalho e na situação dos operários, cabe-nos buscar, como cristãos e membros de uma igreja, um novo entendimento com essa classe. O ressurgimento de movimentos que conscientizam a massa trabalhadora é um bom sinal da atuação de Deus em nosso tempo. Tais movimentos se manifestam mais claramente nas greves. Ê aqui que podemos começar com nossa reflexão. A greve, normalmente, não é uma medida revolucionária mais conciliatória. Com tal prática, os trabalhadores possivelmente se conformam, desde o início, com o sistema de consumo. Exigem maior participação nos lucros, no planejamento e na tomada de decisões. Tudo bem. Mas se ficamos com essas exigências de melhoramento superficial, não mexendo com as estruturas injustas e suicidas da nossa economia, as reformas profundas e tão necessárias não têm chance nenhuma de serem realizadas. O movimento trabalhista, como nenhum outro, tem que visar uma renovação total da sociedade. Somente os operários, que vivenciam á humilhação humana vivendo dentro do inferno industrial, têm condições de desenvolver conceitos adequados sobre a sociedade justa que queremos construir. Pelo menos devemos admitir: sem a colaboração da classe operária não se constrói nada em nossos dias. Ela tem que atentar bem para os objetivos finais do desenvolvimento humano, para que não sejam egoístas e exclusivistas. Então, a luta justa da classe deveria implicar o empenho sério de reconstruir a sociedade, de reformular os valores básicos (cf., p. ex., o conceito obsoleto e incrivelmente individualista da propriedade particular, a mentalidade elitista da classe média, as leis de segurança nacional, etc.) e assim abrir caminho para o Reino de Deus. Nesta tarefa histórica os operários precisam da solidariedade de cristãos e igrejas.

IV - Venha o teu reino

Estamos chegando agora, obedecendo à sequência do texto, à fundamentação da mudança sócio-política e à definição da sua finalidade (vv. 11-26). Por que Deus se preocupa com o bem-estar do seu povo? Por que não se limita à cura d'almas? Por que a nossa pregação tem que incluir o anúncio da libertação real e imediata dos homens oprimidos? Resposta: porque Deus é um Deus da criação integral e indivisível. Ele tem, por assim dizer, um compromisso com o homem de carne e sangue; com as estruturas da sociedade humana. Salvação, portanto, visa a recuperação do homem todo e da sociedade toda. Salvação, neste sentido, é um acontecimento eminentemente real e espiritual. Nem a escatologia do NT pôde diluir essa realidade do Reino de Deus. A afirmação de Jesus meu Reino não provém deste mundo (Jo 18.36) quer indicar, dentro do sistema teológico de João, a procedência e qualidade alheias da soberania de Cristo. Mas nem por isso nega a realidade e atualidade desse Reino, como se evidencia na ênfase que recebe a vida eterna presente no próprio Evangelho de João (cf. Jo 5.24; 6.35; 11.25). Se a presença maciça do Reino vale para João, o evangelista mais exotérico e transcendental, quanto mais vale para os outros teólogos do NT. Além disso, não podemos esquecer que os primeiros cristãos liam, contínua e intensivamente, o AT, e já com isso eram protegidos de uma fuga da realidade.

Está certo, no entanto, que o Reino de Deus tem sido imaginado de maneira diferente pelos fiéis das diversas épocas, ao longo da história. De certo modo, as concepções dependem da cultura, dos valores, da estrutura social vigentes. O nosso texto se baseia claramente no âmbito monárquico do Antigo Oriente. Provém, além disso, da experiência que Israel teve no passado com os seus próprios reis. Porém, já se nota a quebra dessas estruturas. O domínio estrangeiro se sobrepusera. Mas os pastores mandados por Javé também não serviram. Espera-se agora um único e novo rei Davi (v.23). Será que com isso Ezequiel fica dentro das expectativas dinásticas que marcaram tantos séculos da história de Israel?

Acho que não. Pois Ez 34 dá muita ênfase à autoridade governamental de Javé (vv.11-16). O próprio Deus vai assumir, já que seus mandatários falharam. É altamente significativo que ele se tenha proposto cumprir as incumbências originais dos governantes. Quer dizer: primeiro Deus desfaz os maus efeitos dos governos exploradores (vv. 11-13), conduzindo o seu povo de volta à terra prometida (vv. 13-15). Lá ele mesmo vai estabelecer o reino bondoso e justo da sua vontade (vv. 16; 25-30), É importantíssimo o fato de que os vv. 4 e 16 se correspondem. Eles contêm, como se fossem um apanhado jurídico, o programa de um bom pastor, a saber: buscar os perdidos; reconduzir os marginalizados; curar os feridos; fortalecer os fracos (a sequência é do v. 16; no v.4 a ordem é inversa). Se essa correspondência é válida podemos fechar a série de diretrizes com a frase positiva e emendada, conforme a Septuaginta e outras versões (contra Almeida e o Texto Masorético): O que é bom e forte eu guardarei. (v. 16) O fim do versículo, os apascentarei em justiça, é um bom resumo dessa intenção divina. A tarefa principal do bom príncipe, portanto, era a de reabilitar e reintegrar os injustiçados e desprivilegiados numa sociedade bem equilibrada (cf. Sl 72.4,12-14; Is 61.1-3; prólogo do código de Hamurabi; etc.). Depois da exoneração dos opressores — comunica o nosso texto, contrariando as afirmações do autor dos vv. 17-19 — não há mais luta de classe, mas sim, desenvolvimento pacífico do Reino de Deus.

O que causa estranheza, é que o próprio J ave, tendo tomado posse, simplesmente mantém a ordem tradicional. Não há indício de reformas fundamentais no seu Reino, conforme Ez 34 (mas cf. Is ll.l-9;Jr 31.31-34; Ez 36.24-29). A esta logo se junta outra dúvida. Será que a mera transferência do poder para Deus, isto é, o estabelecimento de uma teocracia, resolveria os problemas de justiça e paz entre os homens? Creio que não, porque não existe, na terra, um domínio, direto e puro das alturas. Até a teocracia judaica da época pós-exílica, com todos os esforços manifestos de organizar um povo santo e impecável, sofria a mediação de uma classe de funcionários eclesiais. Naturalmente, essas pessoas, por mais espirituais que se dissessem, tinham as suas determinadas ideias, interesses e precon-ceitos. Isso tudo influenciava o seu uso do poder. Mais tarde, seriam acusados por Jesus de explorar o povo e trair a incumbência que tinham de serem bons pastores (cf. Mt 23.1-36; Jo 10.1-18). Temos que admitir: a afirmação de que Deus mesmo, unilateral e exclusivamente, assume o controle de um governo é fala teológica. Ela é parcialmente justificada, mas ao mesmo tempo tende a disfarçar a realidade. Deus sempre tem o seu pessoal na terra. Não atua diretamente das alturas, mas através de homens e estruturas sociais.

Essa observação deveria levar-nos a uma profunda reflexão sobre o Reino de Deus na nossa época. Limitemo-nos aqui à colocação de uma tese: o Reino de Deus se realiza, hoje em dia, dentro e por meio de estruturas sócio-econômicas existentes. Cabe aos cristãos a identificação, o acompanhamento e a colaboração na obra divina realizada na terra. Vejo os perigos desta afirmação. Mas temos que insistir na realidade do Reino, a qualquer custo. Assim podemos constatar: cada vitória humana é sinal — e, mais ainda — é semente e presença do Reino. Um ministro honesto faz transparecer o Reino. Um inquérito policial bem sucedido, com consequente punição dos culpados verdadeiros, uma palavra corajosa contra as arbitrariedades dos poderosos, uma lei certa e justa (e o Brasil possui algumas leis maravilhosas, verdadeiros mensageiros do Reino de Deus), um arrependimento de um opressor, um sacrifício de alguém que lutava em prol dos miseráveis - isso tudo já é prova abundante da presença do Reino. Além disso, lembremos: o imenso sofrimento das massas igualmente é sinal da sua pre¬sença, pois o nosso Deus é um Deus sofredor.

Não basta, portanto, pensarmos e lutarmos, apenas visando a exoneração dos malditos governos e multinacionais que exploram e devoram as populações deste mundo. Temos que procurar imaginar e realizar — ainda que fragmentariamente - essa justiça melhor que é o alvo de toda a história humana. Sim, o Reino não vai se realizar na sua plenitude durante a nossa vida, nem nas próximas gerações. Ele está fora de nosso alcance, sendo obra do próprio Deus. Nem podemos contar com um progresso ascendente e calculável rumo ao Reino. Mas isso não invalida o fato de que a temente do Reino já está crescendo entre nós. É verdade, trata-se de um crescimento irregular e espontâneo. O Reino já sofreu muitos reveses, mas nunca foi extinto. Pois Deus mesmo já assumiu, em Cristo e até antes de Cristo e fora do Cristianismo, o poder político neste mundo, através de homens e instituições mais ou menos dispostos ao serviço da justiça e da paz.

V - Rumo à prédica

Ez 34 contém uma mensagem nitidamente política que não podemos espiritualizar. Conseqüentemente, temos a enfrentar todos os preconceitos cristãos contra tal pregação realista e materialista. Vejo os seguintes passos possíveis para a prédica:

1. Deus se preocupa com o homem integrai e com a sociedade humana na sua totalidade. Ele não é um Deus de almas desfalcadas. A nossa vida é uma vida corporal e espiritual; ambos os aspectos são inseparáveis.

2. O Reino de Deus está presente, pois Deus está atuando dentro da sua criação e da sociedade humana. Temos que estudar e reconhecer os sinais materiais e espirituais do Reino.

3. Cada sociedade humana deve necessariamente ser organizada e liderada de tal maneira que inclusive os mais fracos tenham uma chance de vive¬rem de modo digno. Justamente o destino dos marginalizados é medida suprema para uma avaliação da nossa sociedade.

4. Aplicando este critério devemos constatar: a civilização ocidental e chamada cristã já está condenada por Deus, apesar dos indubitáveis progressos, especialmente nos campos da ciência e tecnologia. Os marginalizados constituem uma vasta maioria da população. Eles estão sendo explorados como nunca antes na história.

5. O próprio Deus não suporta mais esta situação de opressão. Ele quer lutar em prol dos miseráveis, e quer que a sua Igreja assuma essa tarefa.

6. A luta em prol dos fracos implica uma transformação profunda da nossa sociedade. Pois Deus não quer esmolas e caridade, mas justiça para os seus sofredores. As classes média e alta entre nós têm que descer e se tornar solidárias com os pobres.

7. Na solidarização com os miseráveis da nossa época se realiza um pouquinho do Reino de Deus. Nós, cristãos e comunidades, certamente não somos os donos do Reino, mas somos instrumentos e trabalhadores dentro do Reino.

VI – Epílogo

Finalmente, pergunto: ficou claro, através das reflexões feitas em torno de Ez 34, que nós, cristãos e pastores eclesiais, não podemos fugir, de jeito nenhum, das denúncias levantadas por Ezequiel? Diante da voz profética não há sossego. A igreja, tradicionalmente, tem servido os exploradores e opressores do povo. As instituições eclesiais e comunitárias ainda hoje se prestam muito melhor para este fim do que para o serviço ao rebanho perdido. E, mesmo não carregando a responsabilidade principal pelo estado de exploração dos pobres, o clero menor e maior certamente se tem filiado com mais facilidades às estruturas opressivas de governantes corruptos (cf. R. Alves). Então, por onde seguiremos nós...?

VII – Bibliografia

- ABREU, H. O outro lado do poder. 2.ed. Rio de Janeiro, 1979.
- ALVES, R. Protestantismo e repressão. São Paulo, 1979.
- GERSTENBERGER, E. / SCHRAGE, W. Por que sofrer? São Leopoldo, 1979.
- GUNNEWEG, A. H. J. / SCHMITHALS, W. Herrschaft. Stuttgart, 1980.
- PIXLEI, J. Reino de Dios. Buenos Aires, 1977.
- ZIMMERLI, W. Ezechiel, In: Biblischer Kommentar AT. Vol. l e 2. Neukirchen-Vluyn, 1969.


Autor(a): Erhard S. Gerstenberger
Âmbito: IECLB
Testamento: Antigo / Livro: Ezequiel / Capitulo: 34 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 16
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1980 / Volume: 6
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13972
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