Filantropia e superação das desigualdades - Reflexões

11/05/2009

Para quem conhece pouco o assunto, como eu, necessário se faz dizer que o Governo concede a instituições o certificado de filantropia, mediante renúncia fiscal. Uma instituição filantrópica não recolhe aos cofres públicos a parte patronal de seus funcionários, como ocorre nas empresas privadas. Em contrapartida, de tais instituições o Governo exige que 20% de todos os recursos gerados pela instituição filantrópica sejam aplicados em forma de bolsas a pessoas que não têm condições de financiar seus estudos numa escola comunitária. Isso também vale para a Saúde e a Assistência Social. Há critérios estabelecidos para que determinado estudante seja agraciado com essa possibilidade. Por exemplo, conforme regras atuais, para cada nove alunos pagantes, o décimo deve receber gratuidade total. Este e outros critérios estão em discussão no Congresso Nacional.

Embora não acolhida pelo Senado, a Medida Provisória 446, editada pelo Executivo Federal, continua gerando grande debate. Ela pretendia regulamentar a questão da Filantropia, oferecendo uma nova redação a um conjunto de regras e leis muito fragmentadas sobre este tema relevante para instituições escolares, de saúde e de assistência que não estão sob o controle direto do Estado.

Com as reflexões abaixo não me atrevo a entrar nas questões legais. Não tenho competência para tal. Contudo, somos todos sabedores de que a educação, a saúde e a assistência social, entre outras, são de responsabilidade do Estado, conforme capítulo II dos Direitos Sociais, da Constituição Federal. Através de políticas públicas, os governos nas três instâncias (federal, estadual e municipal) executam ações que deveriam superar as desigualdades geradas pelo mercado. Logo, alegro-me que o Governo Federal, com o qual me identifico de forma crítica, de modo especial nas ações sociais e na política externa, tem feito enorme esforço para sinalizar minimamente vida abundante para todas as pessoas, com ênfase nas multidões empobrecidas. Que todos tenham vida abundante é uma exigência evangélica (João 10, 10) e constitucional.

Contudo, historicamente o Estado brasileiro não cumpriu com as suas responsabilidades. A sua ausência ao lado dos fracos é um fato que se deve deplorar, apesar de alguns avanços. Diante de tal quadro, precisa ser reafirmado que a contribuição à educação, à assistência e à saúde realizada por instituições comunitárias não fere o caráter público das Políticas Públicas, antes as amplia. A parceria entre Governo com suas Políticas Públicas e instituições filantrópicas é saudável para o povo. Desta forma organiza-se a solidariedade, gerando serviços que, se fossem estatais, custariam mais à sociedade.

Sob os argumentos legais e técnicos, suspeito que existam outras razões de fundo, não explicitadas pelas mudanças dos critérios para a concessão do certificado de filantropia. Suspeito, modestamente, que está implícita uma discussão polarizada entre estatização e privatização. Há setores estatizantes na esquerda que querem ver o Estado em tudo, de modo especial nas áreas da educação, saúde e assistência social. Experiências históricas nos mostram o fracasso de tal estatização. Ela acabou em totalitarismo, sufocou a sociedade. Evidente que há países onde esses setores estão nas mãos do Estado democrático, sem incorrer em totalitarismo.

No outro pólo temos uma visão não menos problemática, marcada pelo neoliberalismo, que gerou a crise mundial que vivemos. De fato, o Estado precisa regulamentar o mercado.

Tal discussão nos remete para debates que envolvem o Orçamento Participativo. Algumas orientações teóricas destacavam a necessidade de “civilizar” o Estado. Em outras palavras, a democracia se exercita num espaço público não-estatal, em que a sociedade civil se faz presente em forma de lutas que desembocam na esfera estatal por meio da representação indireta. A discussão, portanto, nos remete tanto contra a estatização, quanto contra a privatização neoliberal exacerbada, a qual nos levou ao caos recessivo global do momento.

Também temos que reconhecer que dirigentes de escolas comunitárias, a maioria confessionais, especialmente de classe média e de classe média alta, não entenderam que o certificado de filantropia é investimento público na sua sustentação, que gera possibilidades de trazer ao seu meio crianças e jovens de poucos recursos materiais. A presença de empobrecidos neste meio pode ajudar a vencer as dores da apartação social, tão fortemente instalada em nossa sociedade de desiguais. Ressalvo que a direção da Rede Sinodal de Educação sempre alertou para este fato. Mas a compreensão privatizante de certos setores da educação e o pré-conceito por parte de setores estatizantes congelaram os caminhos para compreensões distintas do encaminhado até agora sobre filantropia.

Evidente que este ponto de vista se firma na necessidade de um controle público e social a respeito de instituições com certificado de filantropia. Contudo, as instituições comunitárias que desempenham funções públicas não devem pagar pela “filantropia” dos mercadores da saúde, da educação e da assistência social.

Aqui cabe denunciar que setores da mídia estão fazendo das exceções as regras. Em outras palavras, a maioria que cumpre as regras da filantropia é apresentada como ladrões dos cofres públicos. Quem tem algum discernimento sobre o assunto deve se manifestar contra tais generalizações absurdas.

Descongelar posições polarizadas abre caminho para a busca de critérios de parcerias entre instituições educacionais, assistenciais e de saúde, que prestam serviço regulamentado pelo Estado, mas de caráter público não-estatal, e as Políticas Públicas. A filantropia, nos rigores da lei, não só compensa a ausência do Estado e de governos, como também pluraliza formas de ação na formação de uma sociedade democrática. Há muita vida entre estatização e privatização.

Embora de caráter confessional, mas abertas a todas as pessoas indistintamente, as escolas da Rede Sinodal de Educação alcançam mais de 40 mil alunos, que vão da Escola de Educação Infantil à Pós-Graduação de alta qualidade acadêmica. Indiscutível também é a Educação Popular patrocinada pelo trabalho entre povos indígenas através do Conselho de Missão entre Índios (COMIN) e do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor – CAPA.

Além disso, é necessário dizer que igrejas e suas instituições benemerentes atuaram em determinados setores bem antes de Governos. Um pequeno exemplo nos trará muita luz. As comunidades evangélico-luteranas, que se desenvolveram no século XIX no contexto da imigração alemã, criaram escolas para as suas crianças, quando Estado e governo nada ou pouco faziam por elas e pela juventude. Tais exemplos do passado, e tantos outros do presente, das mais variadas instituições eclesiásticas, religiosas e da sociedade civil, credibilizam quem busca critérios justos para a filantropia.

Também temos que reconhecer que as instituições de origem religiosa não podem se utilizar de recursos públicos, advindos de renúncia fiscal, para aumentar o seu rebanho. O Estado é laico. E assim deve continuar. O fim é a saúde, a educação e a assistência voltadas aos que precisam desses recursos, independente de credo religioso, postura política, condição de gênero ou étnica. Evidente que uma instituição religiosa pode explicitar os valores decorrentes de seu credo e missão, mas tem que fazê-lo oportunizando a expressão das convicções de seus funcionários e das pessoas que são alvos de sua ação educacional, assistencial e de saúde. Ostentar a condição de filantrópica requer uma vivência ampla de democracia. Mas isto também vale para o Estado e Governos que têm a responsabilidade das Políticas Públicas.

Portanto, a filantropia, sob controle público e social, é um valioso instrumento para “civilizar” o Estado, com o objetivo de superar minimamente as desigualdades sociais, as quais são frutos, ainda, de um sistema educacional que reproduz o status quo. Não podemos ignorar o fato lamentável de que os grandes e pequenos corruptos de nosso país sentaram nos bancos escolares das escolas públicas, comunitárias e privadas. A educação escolarizada não é, pois, o vilão da história, também não é a salvadora do mundo. Superar essas visões impede polarizações que congelam posições no debate da filantropia. Mas isto é um outro capítulo.

Prof. Oneide Bobsin, Reitor das Faculdades EST

* Texto encaminhado aos/às Senhores/as Deputados/as Federais de todo o Brasil e aos/às Senhores/as Deputados/as Estaduais do Rio Grande do Sul.


Autor(a): Oneide Bobsin
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Natureza do Texto: Artigo
ID: 6876
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