Filemon 8-21

Auxílio homilético

19/09/2004

Prédica: Filemon 8-21
Leituras: Salmo 19.7-13a e Lucas 14.25-33
Autor: Verner Hoefelmann
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/9/2004
Proclamar Libertação - Volume: XXIX
Tema:

1. O contexto

A carta a Filemom, que na seqüência dos escritos paulinos ocupa o último lugar, é a mais breve e a mais pessoal das cartas do apóstolo Paulo. Seria ela, por isso, um documento sem muita importância? Uma leitura superficial do texto poderia indicar que sim. Nenhum grande tema da teologia paulina é aqui elaborado. Nada se fala sobre a escravidão do pecado e da lei. Nenhuma palavra é dita sobre justificação por graça e fé, cruz ou ressurreição. Nenhuma alusão se faz à força do Espírito, que em Cristo liberta da lei, do pecado e da morte.

Mas a primeira impressão engana. A carta não possui teologia doutrinária, mas está carregada de teologia prática – teologia aplicada ao concreto da existência humana. Ela enfoca um tema explosivo e de vital importância para a sociedade romana: o sistema da escravidão. Dele dependia, basicamente, o glorioso Império Romano. A produção de riquezas, nascida da exploração do trabalho escravo, caracterizava toda a formação econômica, social, política e cultural da sociedade romana.

Calcula-se que um terço dos habitantes do Império estava submetido a alguma forma de escravidão. Os escravos constituíam a principal força de trabalho nas médias e grandes propriedades rurais. Eles serviam o Estado na construção e conservação de obras públicas, como estradas, pontes e aquedutos. Eles formavam boa parte da mão-de-obra nas oficinas artesanais e empreendimentos comerciais e industriais dos centros urbanos. Eles exauriam suas forças nas minas e pedreiras, onde trabalhavam, em especial, dissidentes políticos de menor categoria social, presos por dívidas, criminosos das classes baixas ou escravos recapturados. Alguns trabalhavam como médicos, administradores, secretários, músicos, pedagogos, arquitetos, construtores, artistas e mordomos. Outros conquistavam a confiança de seus patrões, a ponto de cuidar de seus negócios. Outros ainda divertiam o populacho e os nobres romanos em lutas contra feras e em batalhas mortais de gladiadores.

O maior contingente de escravos provinha das guerras de conquista, ocasião em que multidões de prisioneiros eram vendidos, isoladamente e separados de suas famílias, como escravos nos mercados escravistas. Embora alguns autores queiram suavizar as condições da escravidão, elas eram as mais deploráveis possíveis. É claro que um escravo significava um investimento do qual era preciso cuidar. Ele custava não apenas o seu preço, mas também a alimentação, a roupa, o cuidado, o treinamento e a vigilância para que não fugisse. Para estimular a produtividade, alguns podiam ser emancipados em ocasiões especiais, por decreto imperial, concessão ou testamento dos senhores. Outros eram promovidos a capatazes, com alguma compensação financeira. Estes podiam reunir um pecúlio suficiente para comprar a sua liberdade.

Mas a sorte da maioria era diferente. Freqüentemente eram libertados apenas no final de sua vida útil, embora as leis obrigassem os senhores a proverem certos serviços a seus libertos, especialmente nas cidades, para evitar o acúmulo de mendigos ou ladrões entre eles. Durante a vida útil, sua condição não era nada invejável. Simplesmente se negava aos escravos a condição humana. Eles não eram vistos como pessoas, e sim como instrumentos de trabalho. Ao lado das ferramentas mudas (enxadas, arados) e semimudas (animais), eles formavam as “ferramentas falantes” de trabalho, como dizia Aristóteles. Como coisas, estavam totalmente sujeitos à vontade do dono, que tinha um domínio quase absoluto sobre seus corpos. Ainda que pudessem procriar filhos para a escravidão, não podiam constituir família. Não tinham dia de descanso nem jornada de trabalho definida. Apenas no âmbito do judaísmo havia algumas leis de proteção a escravos (Êx 21.1-11).

Os castigos a escravos rebeldes e fugitivos eram impiedosos: açoites, torturas, amputações e morte. A rebelião de escravos liderada pelo gladiador Espártaco, que entre 73 e 70 antes de Cristo desafiou a ordem romana e infernizou suas legiões, culminou com a crucificação de seis mil escravos ao longo da Via Ápia, que ligava Roma a Cápua. Ossários que guardam restos de escravos urbanos, em geral melhor tratados, mostram, em muitos casos, mesmo vinte séculos depois, as marcas de suas condições de vida: alimentação precária, deformações físicas em virtude de trabalhos forçados, mortes prematuras. Raramente um escravo ultrapassava os 35 anos de vida.

Nascidas numa sociedade escravocrata, muito cedo as primeiras comunidades cristãs se defrontaram com o problema. Se no início ele parecia distante, logo instalou-se no seio das próprias comunidades. Como escreveu Paulo, Deus escolheu alguns sábios, poderosos e de nobre nascimento, mas principalmente as coisas humildes, as desprezadas e aquelas que não são para fazer parte do corpo de Cristo (1 Co 1.26-29). Que diria a mensagem do Evangelho para senhores e escravos congregados numa mesma comunidade? O Novo Testamento não oferece uma única resposta para esta pergunta. Os códigos domésticos que orientam as relações entre os pares nas grandes famílias contentam-se em humanizar as relações entre senhores e escravos, apelando para a responsabilidade de ambos em relação a Cristo e a Deus (Ef 6.5-9). Paulo havia dito que o batismo representa um revestir-se de Cristo, de modo que todos, judeus e gregos, homem e mulher, escravos e libertos, são contemplados com a mesma dignidade, pois todos são um em Cristo (Gl 3.27-28). Mas o que significa isto no concreto das relações humanas? A carta a Filemom nos oferece uma resposta.

Não é possível reconstruir todas as circunstâncias da carta, mas o essencial se pode saber. Filemom é um dos líderes de uma igreja doméstica (Fm 2), que se reúne provavelmente em Colossos. Pelo menos é o que sugerem os sete nomes comuns às duas cartas (Fm 1-2,23-24; Cl 4.9-17). Além de líder cristão, Filemom é dono de escravos, um dos quais se chama Onésimo. O mais provável é que ele seja um escravo doméstico do âmbito urbano. Filemom poderia ser então um comerciante, mais ou menos abastado, que teria enviado seu escravo a Éfeso, provável local de redação da carta, para realizar certos negócios.

Nada indica que o escravo tenha fugido, como se diz freqüentemente. Ele encontra Paulo na prisão (Fm 9-10), mas não está preso, pois o apóstolo pode enviá-lo de volta (Fm 12). Por que um escravo fugitivo se aproximaria de uma prisão, correndo o risco de ser capturado e exposto à morte? O mais provável é que ele dispunha de um salvo-conduto de seu dono. Movimenta-se, por isso, com liberdade, de modo que pode aproximar-se de um amigo preso de seu senhor. É possível que tenha gerido mal os negócios e perdido dinheiro. Não quer fugir porque teme ser encontrado e condenado. O prazo do salvo-conduto está por vencer, e ele teme retornar a Colossos para enfrentar as represálias de seu patrão. Recorre então a Paulo, amigo de seu senhor, para que interceda por ele.

Outra possibilidade é que Onésimo tivesse sido um escravo aprendiz de artesão, pouco apto para o ofício (Fm 11), que por isso ocasionou perdas e prejuízos a seu senhor (Fm 18). Colossos era conhecida por suas oficinas artesanais e pela produção têxtil, ramo ao qual também o apóstolo pertencia (At 18.3). Filemom teria então decidido entregar o escravo à própria sorte, dando-lhe um salvo-conduto para que fosse tentar a sorte em outro lugar. Fracassado e faminto, encontra-se com a equipe missionária de Paulo em Éfeso e pede a sua ajuda.

Seja como for, certo é que senhor e escravo estão longe um do outro e que Onésimo busca ajuda junto a Paulo na prisão. O apóstolo está preso, esperando julgamento, mas tem certas regalias, pois pode receber visitas e serviços de colaboradores e amigos. Após convertê-lo à fé em Cristo (v. 10), Paulo envia Onésimo de volta a Filemom, juntamente com uma carta na qual formula seu apelo.

Antes de entrarmos em nossa perícope, duas observações sobre o contexto literário. Primeira: Enquanto os demais versículos se dirigem apenas a Filemom, curiosamente a moldura (v. 1-3 e 22-25) envolve várias pessoas. Numa carta tão curta, nada menos do que onze pessoas são citadas pelo nome, além dos membros anônimos da comunidade doméstica. Isto tem seu significado: mesmo contendo um assunto particular, a carta não é sigilosa, mas aberta e pública. O caso diz respeito a Filemom, mas também à comunidade, tanto aquela que recebe a carta como aquela de onde a carta é escrita. Paulo e Timóteo, autores da carta, assumem publicamente sua postura. Filemom é convidado a proceder da mesma forma, responsabilizando-se por sua resposta diante das comunidades envolvidas. Segunda: Antes de expressar sua posição e seu pedido, Paulo expõe a boa reputação de Filemom (Fm 4-7). Com sua fé e seu amor, ele tem reanimado o coração (literalmente, as entranhas) dos santos, alegrado e confortado o próprio apóstolo. Cria-se assim uma expectativa para que Filemom corresponda ao apelo e à própria imagem que se formou dele. Mas qual foi o apelo de Paulo?

2. O texto

Os v. 8-21, que formulam o pedido de Paulo com a devida argumentação, constituem o cerne da carta. Mostra-se aqui que Paulo não é indiferente à situação da escravidão, como muitas vezes se supôs. Paulo não decide enviar Onésimo de volta a seu dono porque o assunto é irrelevante, mas justamente porque é de suma importância. A carta representa um teste para o Evangelho e um desafio a Filemom: Paulo quer que ele receba Onésimo de volta, não mais como escravo, mas como adelfón agapetón/irmão amado (v. 16) e koinonón/ companheiro/associado (v. 17). Paulo não formula a solicitação como uma ordem, e sim em nome da agape/do amor (v. 8-9), para que a bondade de Filemom não seja como que por obrigação, mas de livre vontade (v. 14). Estão formulados aí o teste e o desafio: será Filemom capaz de demonstrar que o amor cristão supera a dominação da escravatura, as oposições sociais, e cria uma comunidade fraterna baseada na igualdade e na solidariedade?

Pode-se ver que toda a carta foi cuidadosamente formulada em vista desse desafio: Deus é nosso Pai comum (v. 3). Por isso várias vezes as pessoas são chamadas de irmãos e irmãs (v. 1, 2, 7 [no grego], 16, 20). Todos os títulos que acompanham as pessoas mencionadas na carta denotam uma relação de parceria: synergós/colaborador (v. 1, 23), systratiótes/companheiro de lutas (v. 2), koinonós/companheiro (v. 17). Em nenhuma parte, Filemom é chamado de kyrios/senhor, designação típica para os donos de escravos. Apenas Cristo recebe ao longo da carta o título de Senhor (v. 3, 5, 16, 20, 25), a quem se deve obediência absoluta. Filemom é um cristão exemplar, conhecido por sua fé e seu amor, amado por todos os que freqüentam a comunidade (v. 4-7). Se o amor cristão é capaz de tornar-se eficaz e transformar-se em solidariedade concreta, isto haverá de mostrar-se no caso de Filemom.

No primeiro bloco da perícope (v. 8-14), o apóstolo se pronuncia sobre o modo como decide abordar Filemom. Com base em sua autoridade apostólica, ele teria parresia/liberdade para ordenar o que Filemom deve fazer (v. 8). Mas ele renuncia a esse direito e não faz uso de sua autoridade. Ao invés de ordenar, ele prefere usar sua liberdade para interceder pelo escravo diá ten agápe/em nome do amor (v. 9), para que a decisão de Onésimo seja katá hekoúsion/por livre vontade e não por anánke/obrigação (v. 14).

Está posto aí o grande tema da carta. Ela aborda a diferença entre o caminho da lei e o caminho do Evangelho. Caso ordenasse a Filemom o que este deveria fazer, Paulo estaria optando pelo caminho da lei. Talvez Filemom tivesse obedecido por obrigação, constrangimento ou respeito à pessoa de Paulo, que então teria ajudado a resolver um problema individual. Mas nada mais significativo teria acontecido. Filemom teria agido não por convicção e liberdade interior, mas por coação e pressão externa. Esta é, para Paulo, a deficiência da lei. Ela não consegue produzir verdadeira transformação. Ela não consegue gerar solidariedade autêntica, porque está baseada na dominação. Ela não consegue despertar misericórdia (= um coração sensível e solidário para com a miséria alheia), porque busca modificar as coisas pela imposição e obediência. Somente a decisão nascida na liberdade é plenamente madura e capaz de gerar transformação duradoura.

Por isso Paulo escolhe o caminho do Evangelho. A boa nova de Jesus Cristo, segundo Paulo, inaugura um novo mundo animado pelo Espírito, que nasce da fé, tem por fundamento a liberdade e se concretiza através do amor. “O Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2 Co 3.17). Cristo nos libertou para a liberdade, para nos servirmos uns aos outros pelo amor (Gl 5.1,13). O amor não pode nascer da imposição, mas apenas da liberdade. Primeiros frutos da liberdade são a libertação do egoísmo e a capacitação para o amor. Por isso, no novo mundo que nasce da liberdade, já não há lugar para a dominação e a sujeição, e sim para a solidariedade e o serviço mútuo, em que cada um procura o bem do outro e faz suas as necessidades do outro.

O apelo ao Evangelho e ao amor não isenta o apóstolo de argumentar em favor de sua proposta. São vários os argumentos. Primeiro: é significativo que em nenhum lugar Paulo se designa de apóstolo. Denomina-se (ou alude à condição) de prisioneiro de Cristo (v. 1, 9, 10, 13, 23), velho (v. 9) e companheiro (v.17). Ao renunciar à sua autoridade apostólica sobre Filemom, Paulo enuncia um primeiro motivo para que também Filemom renuncie à sua autoridade e a seus direitos sobre Onésimo. Segundo: Assume o escravo como um filho, gerado para a fé na prisão (v. 10). Como poderia Filemom tratar como escravo um filho de Paulo? Terceiro: Paulo diz que como escravo Onésimo fora inútil. A utilidade de um escravo é uma falsa utilidade. Portanto, a escravidão não tem uma razão verdadeira para existir. Apenas como irmão é que Onésimo terá utilidade (v. 11). Quarto: Paulo identifica-se de tal maneira com o escravo, que o envia de volta como se fosse ele mesmo (minhas próprias entranhas) que estivesse retornando (v. 12; cf. v. 17). Quinto: Paulo renuncia ao intento de conservar Onésimo consigo, para que este o servisse (diakonéo) em lugar de Filemom (v. 13). Implicitamente o apóstolo equipara, assim, senhor e escravo na questão da diaconia, que na sociedade romana era serviço prestado por escravos. No v. 14, finalmente, Paulo esclarece o motivo de toda a argumentação: Filemom deve decidir por convicção própria, ou seja, deve agir convencido pelo próprio Evangelho, e não por obrigação, que se submete a uma pressão externa. Mas o que Paulo espera de Filemom?

Este é o assunto do segundo bloco (v. 15-21). Paulo introduz sua proposta dizendo que talvez Onésimo tenha sido afastado temporariamente de Filemom para que este o possuísse para sempre (v. 15), só que não mais como escravo. Como já fora dito antes, quando Filemom considerava Onésimo sua propriedade, este na verdade lhe era inútil e não lhe pertencia. Sua verdadeira utilidade vai revelar-se quando Filemom souber renunciar a seu senhorio e acolhê-lo como irmão amado, quer na carne, quer no Senhor (v. 16).

Aqui está, em síntese, a proposta de Paulo. Ele entende que, no seio da comunidade, a fé e o amor em Jesus Cristo superam o sistema escravista. A relação senhor-escravo jamais conseguirá expressar, em sua plenitude, a comunhão cristã, pois esta se fundamenta na livre adesão e na liberdade, jamais numa relação de dominação e sujeição. A relação de parceria e comunhão (koinonós), se é que ela existe entre Paulo e Filemom, deve abarcar necessariamente também Onésimo, pois não há mais diferença entre o apóstolo e aquele que se tornou seu filho na fé (v. 17). A proclamação de Gl 3.27-28 reclama aqui a sua aplicação concreta. A comunhão entre Filemom e Onésimo, para ser completa, precisa abarcar tanto a fraternidade na fé (irmão no Senhor) como a fraternidade nas relações sociais concretas (irmão na carne). Isto é o que o poder do Evangelho produz: neutraliza as relações baseadas na dominação e sujeição e cria um novo tipo de relacionamento baseado no amor, no serviço e na colaboração mútua entre seres humanos livres e iguais.

No bloco final (v. 18-21), Paulo procura remover qualquer obstáculo que, porventura, tenha restado para que Filemom possa posicionar-se em coerência com o Evangelho. Caso Onésimo tenha prejudicado Filemom em algum aspecto, Paulo está disposto a assumir a dívida. Ele confirma sua disposição com uma espécie de promissória, assinada de próprio punho, sem evocar a dívida que o próprio Filemom tem em relação a Paulo. Esta dívida certamente se refere à vida na fé, que tão bons frutos tem rendido a tantas pessoas (v. 4-7). Antes de encaminhar o final da carta, Paulo ainda escreve que está convicto da obediência de Filemom (v. 21). Não há contradição entre essa expectativa de obediência e a renúncia ao exercício da autoridade aludida nos v. 8 e 9, porque se trata de uma obediência que decorre da fé (Rm 1.5) e não da imposição da lei. Finalmente, Paulo expressa uma última certeza: Filemom fará ainda mais do que lhe está sendo solicitado. É provável que o apóstolo esteja se referindo aqui ao que fora aludido no v. 13, ou seja, que Onésimo seria cedido para o serviço missionário junto a Paulo.

Qual terá sido a resposta de Filemom? A carta aos Colossenses, escrita alguns anos mais tarde, possui evidências de que a proposta e a expectativa de Paulo encontraram uma boa acolhida junto a Filemom. Onésimo não apenas se tornou um irmão amado, no Senhor e na carne, mas também um colaborador da missão paulina (Cl 4.7-9).

3. Meditação a caminho da prédica

Além de ser destinada a Filemom, a carta em questão também foi endereçada a Áfia, a Arquipo e a toda a igreja que se reúne na casa de Filemom. Vários irmãos de Éfeso, provável local da redação, aproveitaram para enviar saudações à comunidade reunida em Colossos, mostrando, com isso, que estão igualmente informados sobre seu conteúdo. Isto tem o seu significado: Paulo escreveu essa carta não apenas para resolver um problema específico surgido entre um senhor escravista e um de seus escravos, mas para testar a eficácia do amor cristão praticado nas comunidades.

O assunto é particular e deve ser decidido por Filemom, mas a resposta é do interesse das comunidades envolvidas. No momento em que a carta foi acolhida no cânone, a questão também passou a interessar todas as comunidades que orientam sua fé e conduta nas palavras do Novo Testamento. O apóstolo quer verificar se a fé que atua pelo amor é capaz de romper com as relações de dominação e submissão que marcam a coexistência entre senhor e escravo, criando um novo tipo de relacionamento, baseado na igualdade, na fraternidade e na solidariedade. Esta é a primeira grande questão da carta, que deve ser tematizada na prédica.

Comblin pergunta se Paulo não estaria superestimando a força do amor como resposta ao problema da escravatura. Sempre haverá alguns Filemons na Igreja, diz ele, que se deixam inspirar totalmente pelo amor, mas estes são exceções. A grande maioria dos cristãos oscila entre a liberdade e a submissão à lei, entre o amor e o temor, razão pela qual seria uma ilusão, uma fuga da realidade, contar com o amor como uma resposta para o problema social da escravidão.

A pergunta é pertinente, e a história só confirma a restrição levantada. Se isso é verdade em relação a cristãos que agem expressamente em nome da fé, muito mais verdade será em relação a pessoas que agem sem qualquer princípio humanitário. Mas Paulo não é um idealista que anda nas nuvens. Ele tem uma visão muito realista do ser humano, que age a partir de suas próprias forças. Este não faz o bem que prefere, mas o mal que não quer (Rm 7.15-25). Se, apesar disso, ele confia no amor como força transformadora, é porque este amor não está no ser humano, mas procede de Deus. A transformação que o Evangelho realiza não é resultado de força humana, mas fruto do poder de Deus. Por isso importa que o ser humano se coloque diante de mãos vazias e aceite receber de graça tudo o que Deus tem a oferecer. A partir de si mesmo, não haverá nenhum Filemom; a partir de Deus, qualquer pessoa pode ser transformada num Filemom.

Junto com essa visão de Evangelho como poder de Deus, Paulo desenvolve uma nova visão de comunidade. Esta é a segunda questão que poderia ser abordada na prédica. O apóstolo não possui uma proposta para o sistema escravista como tal. Ele pretende superá-lo com a formação de comunidades. Qualquer pessoa que nela seja incorporada, homem ou mulher, judeu ou grego, escravo ou livre, passa a ter a mesma dignidade, em virtude da qual as eventuais diferenças já não contam (Gl 3.27-28). A comunidade se transforma assim num núcleo experimental onde se ensaia e se exercita uma sociedade nova e onde se busca a superação das barreiras que separam os seres humanos e impedem a sua plena comunhão. Por isso Paulo fica tão indignado com a ceia do Senhor celebrada em Corinto, que nada mais faz do que reproduzir e cimentar a estratificação social que impera na sociedade
(1 Co 11.17-34).

Paulo certamente tem razão ao insistir que a verdadeira superação do sistema escravista (e de qualquer sistema social que gere privilegiados e excluídos) só é possível numa sociedade radicalmente nova, baseada na liberdade, na igualdade e na reciprocidade de serviços. O caminho da lei tem as desvantagens que Paulo denuncia: procura o bem pela imposição, limita apenas a opressão sem pretender suprimi-la, admite uma forma limitada de dominação. Mas, dentro de seus limites, ela também pode melhorar a situação das pessoas, razão pela qual os cristãos também haverão de empenhar-se, no âmbito público, para que as leis sejam postas a serviço de todos os seres humanos, e não apenas de minorias privilegiadas.

E, finalmente, uma terceira questão merece ser enfocada: o assunto da carta poderia parecer anacrônico, mas isso não confere. É verdade que as leis abolicionistas do século XIX proclamaram o fim da escravidão, este flagelo que, à semelhança do Império Romano, marcou a história colonial brasileira e suas primeiras décadas como nação independente. Mas alguns assuntos, mal resolvidos, afetam até hoje a consciência cristã em prejuízo das populações negras arrancadas da África, que marcaram a face da escravidão em nosso país.

a – Protagonista da abolição não foi a Igreja nem foram cristãos inconformados com o destino cruel dos escravos, e sim a marcha da economia mundial, impulsionada pelo capitalismo emergente. Fora alguns profetas solitários, que ergueram a voz contra a discriminação dos negros e a exploração de seu trabalho escravo, a Igreja permaneceu calada durante quase quatro séculos. Pior do que isso, emprestou sua voz para legitimar e justificar o regime da escravidão, em sórdida aliança e cumplicidade com os senhores de engenho. Antônio Vieira, em sua geografia teológica, comparava a África ao inferno, onde reina o cativeiro do corpo e da alma, o Brasil ao purgatório, onde reina apenas o cativeiro do corpo, muito menos grave que o da alma, e o céu ao lugar onde reinará a liberdade eterna. Os negros, concluía, devem migrar por esses três lugares para alcançar a salvação. Vieira gostava de pregar sobre os códigos domésticos. Mas por que nunca descobriu a mensagem da carta de Paulo a Filemom?

b – Parece simples e até prepotente apontar os erros da Igreja no passado. Mas o que faz a Igreja e qual a posição mediana dos cristãos que se encontram diariamente com os descendentes desses escravos? O Brasil possui a segunda maior população negra do mundo, abaixo apenas da Nigéria. Como vivem esses negros? Vivem humilhados pela discriminação e pelo preconceito racial. Um negro pobre é preterido ao branco pobre, quando em igualdade de condições procura trabalho ou deve ser promovido. Ele é o principal alvo dos salários mais baixos, o primeiro suspeito nas batidas policiais, o primeiro a ser demitido em caso de greve. É ele quem mora no bairro mais pobre e no lugar mais insalubre. Por que os negros vivem assim? A abolição lhes deu todas as liberdades dos cidadãos, mas não lhes forneceu recursos para usar realmente esses direitos. A terra conseguida para os imigrantes europeus lhes foi negada, e eles foram empurrados para as periferias urbanas. Os antigos donos não podem mais submetê-los à dominação direta, mas podem explorar o seu trabalho da mesma forma por meio da necessidade econômica. Aliás, os antigos romanos já haviam descoberto que, para não arriscar “capital próprio”, era preferível entregar certos trabalhos insalubres a pessoas livres. Como se posiciona a Igreja e como reagem os cristãos diante disso? O que se dirá no futuro sobre a Igreja dos séculos XX e XXI, que continua assistindo impassivelmente a exploração do trabalho alheio numa espécie de escravidão sob risco próprio?

4. Subsídios litúrgicos

Intróito – Vocês foram batizados para ficar unidos com Cristo e assim se vestiram com a pessoa do próprio Cristo. Desse modo não há diferença entre judeus e não-judeus, entre escravos e livres, entre homens e mulheres: todos vocês são um só por estar unidos com Cristo Jesus (Gl 3.27-28).

Confissão de pecados – Senhor, nosso Deus: teu Filho Jesus Cristo nos ensinou a chamar-te de nosso Pai. Queria assim que aprendêssemos a tratar-nos uns aos outros como irmãos e irmãs. Mas nós quebramos diariamente esta fraternidade. Tratamos os outros como concorrentes e adversários. Buscamos distância daqueles que são diferentes. Discriminamos aqueles que não partilham de nossas idéias e nossas convicções políticas ou que não pertencem à nossa categoria social. Rompemos facilmente a comunhão com aqueles que estão perto de nós e evitamos integrar-nos com aqueles que estão distantes. Nosso círculo de amigos e companheiros vai se tornando, aos poucos, cada vez menor. E nós nos damos conta de quão mesquinhos somos. Perdoa o nosso pecado. Renova-nos com a força de teu Espírito Santo, para que ele nos liberte de nós mesmos e nos mostre a riqueza da comunhão, da fraternidade e da solidariedade. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.

Palavra de graça – Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado (1 Jo 1.5-7).

Oração de coleta – Abençoa, Senhor, os lábios daqueles que testemunham tua palavra e os ouvidos daqueles que a acolhem. Convence-nos com o poder do teu Evangelho para que nossa fé seja fortalecida, nosso amor se torne eficaz e nossa esperança nos anime a caminhar em direção ao teu Reino, enquanto aguardamos a sua vinda. Por Jesus Cristo, amém.

Bibliografia

COMBLIN, José. Epístola aos Colossenses e epístola a Filêmon. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1986.
MÍGUEZ, Néstor O. Escravos no Império Romano: O caso de Onésimo. In: RIBLA 28. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1997, p. 90-98.
REIMER, Ivoni R. Eficácia da fé na superação de desigualdades. Estudo exegético sobre a carta de Paulo a Filêmon, Ápia e Arquipo. In: RIBLA 28. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1997, p. 67-82.

Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Verner Hoefelmann
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 16º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Filemom / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 8 / Versículo Final: 21
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2003 / Volume: 29
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 8897
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