Gênesis 18.20-21 (22) 23-32

Auxílio Homilético

13/08/1995

Prédica: Gênesis 18.20-21 (22) 23-32
Leituras: Colossenses 2.6-15 e Lucas 11.1-13
Autor: Carlos A. Dreher
Data Litúrgica: 10º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/08/1995
Proclamar Libertação - Volume: XX


1. O texto

A proposta para a pregação no 10º. Domingo após Pentecostes omite os vv. 16-19, que parecem ser fundamentais para a compreensão da perícope, além de apresentar como opcional o v. 22. Não por último, encerra o bloco no v. 32, quando, de fato, o v. 33 parece ser o conclusivo. Não vejo argumentos satisfatórios para o recorte, e proponho que se leia todo o conjunto de Gn 18.16-33 como base para a pregação, apoiado fundamentalmente em C. Westermann.

Ponto de partida para uma leitura única de Gn 18.16-33 é a interpretação de que é o Senhor quem procura Abraão para ponderar sobre uma difícil questão: destruir ou não a cidade de Sodoma (e Gomorra), e não, como poderia parecer pela tradição a que nos acostumamos, de que é Abraão quem procura o Senhor para interceder em favor da cidade que abriga seu sobrinho Ló.

Como se pode verificar nos vv. 20-21, a decisão de destruir a cidade ainda não foi tomada. Deus ouviu o clamor contra Sodoma e Gomorra e tem conhecimento de que seu pecado se tem agravado (v. 20). Mas ainda pretende descer, para conferir a acusação (v. 21). Estamos, pois, ainda em meio ao processo contra as cidades.

É neste contexto que se verifica a importância dos vv. 17-19 para a compreensão da perícope. Diante do processo instaurado, o Senhor busca em Abraão um interlocutor com o qual possa clarear o veredito. E por que Abraão? A explicação está nos vv. 18-19: Deus mesmo o escolheu para ser uma grande e poderosa nação, e para que nele sejam benditas (ou malditas) todas as nações da terra (inclusive Sodoma). Além desta retomada de Gn 12.1-3, ainda se coloca a escolha de Deus para que Abraão e, depois dele, seus filhos sejam os guardiães do caminho do Senhor, que consiste na prática da justiça e do direito. Como, então, ocultar de Abraão o que está por acontecer (v. 17)?

É neste contexto que o v. 22 se torna importante, especialmente em sua segunda parte. E aí é fundamental observar um pouco de crítica textual. De acordo com a Bíblia Hebraica, a versão de Almeida traduz corretamente o v. 22b, com a formulação: porém Abraão permaneceu ainda na presença do Senhor. Contudo, esta formulação representa uma alteração dos copistas, que, em seu piedoso zelo, não conseguiram admitir o original, que dizia: porém o Senhor permaneceu ainda na presença de Abraão.

Acontece que a afirmação permanecer na presença de alguém também pode significar permanecer serviçalmente diante de alguém, servir, prestar culto a alguém. Isto de maneira nenhuma poderia ser admitido pelos copistas em relação ao Senhor, diante de Abraão. Apenas o inverso seria possível.

Contudo, a lógica do texto é exatamente esta: as três pessoas que estiveram visitando Abraão (18.1-15) se põem a caminho de Sodoma; dentre elas, o Senhor ainda permanece para conversar com Abraão sobre as ponderações que faz acerca da possível destruição da cidade (18.17-21). Não se trata, pois, de uma atitude de adoração da parte do Senhor. Trata-se de uma confidência, de uma conversa particular entre o Senhor e seu escolhido, a fim de clarear uma posição.

E não deixa de ser bonita essa atitude de Deus: parar para conversar com Abraão. Alegra-me encontrar um Deus que tenha tempo para parar e bater um papinho. E, especialmente, um Deus disposto a dialogar sobre seus planos com as pessoas que nele confiam.

A partir desses argumentos, não há por que não considerar os vv. 17-32 como uma unidade. Resta-nos perguntar se se pode abrir mão dos vv. 16 e 33.

De fato, tanto o v. 16 quanto o v. 33 se apresentam como elementos de ligação redacional com o contexto, respectivamente anterior e posterior, a saber, a visita dos três homens a Abraão, para anunciar-lhe o nascimento de Isaque (18.1-15), e a visita dos dois anjos a Ló, com o subsequente livramento deste último e de suas duas filhas da destruição da cidade (19.1-19).

Ambas as narrativas são independentes, apesar de o diálogo em nosso texto se referir explicitamente a Sodoma, o que poderia levar a pensar numa interdependência de 18.17-32 e 19. Contudo, o cap. 19 pertence claramente a um ciclo de sagas em torno de Ló, ao passo que 18.17-32 nem sequer o menciona. O que se passa é que uma antiga narrativa acerca da destruição de Sodoma (e Gomorra) é aqui utilizada para abordar a temática da justiça divina, que é o conteúdo central de nossa perícope.

Uma vez, porém, que Sodoma é claramente mencionada também em 18.20-22, tomo o v. 16 como introdução a nosso texto e, como tal, claramente como parte integrante dele. O v. 33, por sua vez, encerra o diálogo, reafirmando que é o Senhor quem se dispõe a conversar com Abraão.

A partir daí, proponho que se tome Gn 18.16-33 como um todo para a pregação. Neste caso, porém, há que abdicar da interpretação costumeira, que vê na perícope uma intercessão de Abraão em lavor de Sodoma. Não é isto que está em jogo na passagem. Se é o Senhor quem toma a iniciativa do diálogo (vv. 17-21), então o questionamento de Abraão nos vv. 23-32 tem outro objetivo. E aí me parece que a questão central é a justiça de Deus, ligada à angustiante pergunta pelo destino de justos e injustos. Destruirás o justo com o ímpio? (V. 23b.) Longe de ti o fazeres tal cousa, matares o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio; longe de ti. Não fará justiça o Juiz de toda a terra? (V. 25.) Não! Na justiça de Deus o inocente jamais terá o mesmo destino do culpado. O Senhor não permitirá que o castigo pela culpa de muitos recaia sobre os justos, ainda que tão poucos. Ao contrário, a justiça de poucos será capaz de alterar os desígnios de Deus. Até mesmo a existência de apenas dez justos, o menor número coletivo possível para a comunidade judaica, poderá levar o Senhor a salvar a cidade.

Bondade demais? Não. Apenas o prenúncio de que, pela justiça de um só, Deus será capaz de poupar toda a humanidade.

A análise desenvolvida até aqui permite observar uma clara estrutura do texto em duas partes, amarradas entre si através do v. 22. O v. 16 funciona como introdução; o v. 33 como fechamento da cena. É interessante que apenas estes três versículos indicam movimento dos personagens. As duas partes por eles emolduradas se apresentam uma vez como monólogo, outra como diálogo. Assim, podemos esboçar a estrutura da perícope da seguinte maneira:

v. 16: Deus observa Sodoma; Abraão o acompanha.

vv. 17-21: Deus pondera e coloca a questão diante de Abraão:
        vv. 17-19: Deus define Abraão como seu confidente;
        vv. 20-21: Deus expõe a Abraão a questão de Sodoma.

v. 22: Deus permanece diante de Abraão, a fim de ouvi-lo.

vv. 23-32: Abraão e Deus dialogam acerca do destino de Sodoma:
          vv. 23-26: Será justo destruir o justo com o ímpio? 
          Colocação do problema, com a hipótese 50;
            a negativa de Deus.

vv. 27-32: Recolocação do problema com as hipóteses 45, 40, 30,
           20 e 10; a cada hipótese, nova negativa de Deus.

v. 33: Deus se retira; Abraão volta para casa.

2. O contexto histórico

Apesar de reportar-se à tradição dos patriarcas, ao apresentar Abraão como protagonista na sua segunda parte, e apesar de referir-se à cidade de Sodoma (e Gomorra) como ré no processo, dificilmente o texto será antigo. Observando o contexto histórico dos patriarcas, a partir de outros textos mais antigos, percebe-se que sua relação com as cidades não é positiva. As cidades sempre aparecem como opressoras em relação a eles. Vale mencionar a própria história de Ló em Gn 19. Mas também seu sequestro em Gn 14, além da ameaça às matriarcas, sempre ocorrida em ambiente citadino (Gn 12.10ss.; 20.1ss.; 26.1ss.). A partir daí, a possibilidade da existência de justos em meio à cidade não parece corresponder àquele período.

Westermann aponta com razão para três ambientes, todos eles pós-exílicos, nos quais a temática da justiça de Deus, ligada à angustiante pergunta pelo destino de justos em meio a injustos, é discutida. Em primeiro lugar, a preocupação fervorosa com a justiça divina, que quer evitar que o destino de justo e ímpio seja igual (v.25), tem seu lugar nos Provérbios. Ali, a insistência de que o destino do ímpio tenha que ser negativo, o do justo, positivo, se apresenta em provérbios de origem pós-exílica.

Em segundo lugar, Gn 18 nos coloca nas proximidades do Livro de Jó, onde a questão toma proporções angustiantes: o justo sofre, apesar da contestação dos amigos de Jó, que ainda vêem a justiça divina de maneira dualista: castigo para os ímpios, felicidade para os justos. Gn 18 busca, com toda a intensidade, combater a possível compreensão de que o agir histórico de Deus possa ser injusto, permitindo que os bons sofram o mesmo castigo que os maus.

Em terceiro lugar, Westermann aponta para a proximidade de nosso texto com Ez 14.12-20: se Deus se propõe a destruir uma terra, por causa de sua maldade, e em seu meio estiverem os justos Noé, Daniel e Jó, então estes três serão salvos, mas a destruição será levada a cabo. Na mesma direção apontam também os caps. 3 e 4 do Livro de Jonas, nos quais se discute a destruição de Nínive ou o afastamento do castigo, em vista do arrependimento da população.

A pergunta pelo governo de Deus na história das nações e pelo exercício de sua justiça em meio a elas tornou-se candente depois de 587 a.C., ou seja, depois de Israel deixar de existir como Estado. Integrados numa província de um grande reino ou dispersos no mundo de então, a partir do exílio, como sobreviveriam os filhos de Abraão? Em meio a nações ímpias, haveria salvação para aqueles a quem fora atribuída a guarda do caminho do Senhor, a prática do direito e da justiça (v. 18)? Parece ser esta a questão que Gn 18.16-32 pretende responder.

3. O texto em pormenores

3.1. A ponderação de Deus (vv. 16-21)

3.1.1. Os clamores contra a cidade

Estamos numa época em que o povo de Deus se encontra disperso. Não existe mais uma unidade territorial e nacional chamada Israel. Esta foi destruída. Agora há apenas judeus dispersos. Certamente muitos vivem em pequenas comunidades. Mas são comunidades dispersas, em meio a pessoas de etnia, cultura e crença distintas. E muitas dessas comunidades dispersas se localizam em meio a cidades, cidades do Império.

Não interessa aqui saber qual o império. Talvez seja o persa, talvez seja o helenístico. Interessa que é o império, com tudo o que ele e suas cidades representam. E a pior qualidade de qualquer império é a injustiça que impõe à maioria de seus súditos. É a injustiça que sofrem os filhos e as filhas de Deus, especialmente em meio às suas cidades.

O v. 20 nos fala do clamor de duas cidades. Na verdade, a tradução dê Almeida não é boa. Não se trata do clamor das cidades, mas, sim, do clamor contra elas. E a palavra utilizada em hebraico é termo técnico para o clamor dos injustiçados. É o grito de socorro daquela pessoa que foi prejudicada em seu direito, através da violência. É este o clamor que se multiplica e agrava o pecado de Sodoma e Gomorra, de Susa e de Alexandria, de São Paulo e de Johanesburgo.

O clamor contra as cidades aumenta. Compõe-se dos gritos dos justos e das justas, de judeus e judias, mas também de seus primos e primas, como Ló e suas filhas. São gritos de todas as criaturas de Deus, que sofrem sob o pecado das cidades. São gritos angustiados, sofridos; também são apenas gemidos, gritos calados de quem nem sequer consegue gritar.

Mas os ouvidos de Deus são sensíveis. Escutam tudo, especialmente gritos e gemidos. Não há um que lhe escape. E vão se tornando tantos e tantos, a ponto de ensurdecer. E aí não é mais possível ignorá-los. E a ira sagrada de Deus se inflama. Seu zelo por justiça propõe-se a acabar com isto.

3.1.2. Que fazer com a cidade injusta?

Mas à ira sagrada de Deus contrapõe-se aquela sua infinita bondade, que sempre o faz ficar em dúvida. Jonas que o diga. Afinal, Deus manda anunciar a destruição da cidade culpada, mas depois se arrepende, diante da conversão da ré. E não é esta a única vez em que Deus se arrepende. Seu amor por sua criação, mesmo a decaída, sempre o leva a sopesar a ira.

Nada de precipitações! Apesar dos muitos gritos e gemidos, apesar das denúncias de pecado agravado, é preciso verificar a veracidade das acusações. E Deus propõe-se a descer, a fim de ver com os próprios olhos se a prática da cidade corresponde ao clamor que ouve. Pode ser que não seja assim. Os ouvidos podem enganar-se. É preciso juntar-lhes os olhos. A justiça não pode depender apenas do ouvido. E preciso ver, para julgar e agir.

Além do mais, para ter certeza de um veredito justo, antes de cometer qualquer engano, não seria melhor tomar conselho?

3.1.3. Deus se aconselha com o justo

Ocultarei a Abraão o que estou para fazer? Deus reflete consigo mesmo. O momento é grave. Há que tomar uma decisão. O processo já está instaurado. Vai descer e verificar a situação. Não há ainda um veredito, tampouco uma pena prevista. Abraão precisa ser colocado a par do que se passa.

Não consigo ver no texto qualquer menção a uma determinação de Deus em destruir a cidade. Não há ainda uma decisão a respeito. Mesmo que no diálogo seguinte Abraão aponte para a possibilidade de destruição, ainda não a encontro na ponderação de Deus. A preocupação divina se concentra no processo. E é este processo que não quer ocultar a Abraão. E o busca como parceiro de reflexão.

Por que Abraão? Por que um simples mortal, seminômade, meio perdido nas imensidões da estepe? Por que este marginal do império, saído de Ur dos Caldeus, migrante pelas terras inóspitas da Palestina?

Porque este Abraão é o escolhido de Deus, para que seja uma grande e poderosa nação, em quem serão benditas (ou malditas) todas as nações da terra. Porque Deus o escolheu, e a seus filhos depois dele, para que guardem o caminho do Senhor, que consiste na prática da justiça e do direito.

E por que Deus o terá escolhido? Seria demais pensar que o escolheu exatamente por ser um desgarrado, um marginal do império, um migrante cons¬tante, que sofre constantemente a marginalização e a violência das cidades, que lhe tomam a mulher no Egito ou na Filistia, que lhe sequestram o sobrinho, que não lhe dão espaço e o obrigam a migrar mais uma vez? Não é este o protótipo do justo que clama contra a violência da cidade, mesmo quando seu silêncio nem permite perceber seus gemidos? Não é este o justo em vias de desaparecer, sem terra, sem filhos, sem lugar, sem descendência? Não é este o justo que teima em crer num Deus que não é o Deus do império?

Sim, porque apesar de tudo, apesar da sorte adversa, este Abraão creu, e isso lhe foi imputado para justiça (Gn 15.6).

E é por isso que Deus pára diante da cidade, ao lado de Abraão. Ali reflete. Pondera sobre o processo contra a cidade e sobre a prática de sua justiça. E decide dialogar com o justo. Decide toma-lo como parceiro no tribunal. Um justo compartilhará com ele a decisão.

3.2. Quantos justos salvam uma cidade? (vv. 22-33)

3.2.1. Deus dialoga com seus justos

Reflexão feita, decisão tomada. Enquanto seus dois companheiros seguem viagem em direção a Sodoma, o Senhor permanece diante de Abraão, a fim de ouvir sua posição em relação ao processo. Não me parece ser importante perguntar quem são os outros dois personagens. A redação final, com certeza, está aí se preocupando em resolver um impasse dado pela coordenação de três narrativas distintas. Ficam três as pessoas em visita a Abraão (Gn 18.1-15); serão só duas na visita a Ló (Gn 19.1ss.); uma apenas na conversa com Abraão, em nosso texto.

Na primeira narrativa, o Senhor se identificava com as três personagens; na última se fala apenas de dois mensageiros seus. Para entrelaçar as narrativas, o redator tenta resolver alguns problemas reduzindo o número 3 para 2+1: dois seguem para Sodoma, um, o Senhor, permanece, diante de Abraão.

E é essa postura dialogai da parte de Deus que realmente interessa, porque é tanto mais surpreendente. Este Deus de Abraão não é só um Deus que ouve clamores, vê aflições, desce para conferir e libertar seu povo. Também não é apenas um Deus que decide sozinho e faz de seres humanos, como p. ex. os profetas, seus porta-vozes. E tudo isso e ainda mais: é também um Deus que se deixa aconselhar por seres humanos. E isso não ocorre só aqui. Há outras notícias sobre o conselho de Javé, no qual as decisões são tomadas coletivamente (cf. l Rs 22.19-23; Jr 23.18; Is 6.8-13). Deus se deixa aconselhar pelos seus justos, mulheres e homens. E por isso que permanece diante de Abraão.

E Abraão aconselha. Provocativamente, a princípio. Questiona, coloca Deus diante de seus próprios critérios. Torna-se ousado, depois. Regateia, chegando até ao limite. Poder-se-ia dizer que fica atrevido na sua insistência. Mas não. Sua atitude é a de um confidente. Aconselha o amigo que pediu conselho. E o faz, porque — incrível! — Deus confia nele! Sim, não é apenas Abraão que confia em Deus. O próprio Deus confia no justo. E o diálogo que se segue, é um diálogo entre amigos.

3.2.2. Uma questão angustiante

Abraão está assustado com a questão que o amigo Deus lhe propõe. Sabe de sua ira sagrada. Sabe que ele não suporta a injustiça e o pecado. A julgar por aí, acabará condenando a cidade à destruição. Mas, pensa Abraão, e os justos em meio à cidade? Terão eles o mesmo destino dos maus? Será justo permitir que aquelas pequenas comunidades de inocentes pereçam juntamente com seus detratores? E não será assim que Deus acabará cometendo uma injustiça? É preciso evitar que isso ocorra. É preciso ajudar Deus a ser justo!

É o afã pela justiça de Deus que leva Abraão a interferir. Sim, é claro que também se preocupa com o destino dos eventuais justos cm meio à cidade. Não quer que eles pereçam. Mas, mais do que tudo, não quer que Deus cometa uma injustiça; não quer que possam sequer imaginar que Deus possa ser injusto.

Destruirás o justo com o ímpio? Longe de ti matares o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio... Não fará justiça o Juiz de toda a terra? — A insistência no questionamento revela a angústia de Abraão. Gasta palavras e mais palavras para evitar que a injustiça possa vencer. Todo o cuidado é pouco. Há muita gente inocente em meio a essas cidades. Sim, são más. Mas destruí-las de todo é acabar também com os inocentes.

Abraão não contesta o direito de Deus em destruir a cidade. Mas tal destruição só seria justa, se apenas os ímpios fossem atingidos pelo castigo. Jamais haveria justiça, se os justos também perecessem. Já lhes bastava a violência que sofrem da parte dos ímpios. Por que ainda sofreriam mais sob o castigo de Deus?

Não, acabar com a cidade não é a solução. Se houver, porventura 50 justos na cidade, destruirás ainda assim, e não pouparás o lugar por amor dos 50 justos que nela se encontram?

Para Abraão, a existência de um grupo de justos em seu meio salva a cidade pecadora. E Deus lhe escuta o conselho.

3.2.3. Os justos injustiçados salvam a cidade pecadora

Não, Deus não destruirá a cidade, se encontrar 50 pessoas justas em seu meio. Por amor a estas pessoas, ele poupará a cidade.

Não deixa de ser estranha a decisão. Afinal, poupando a cidade por amor aos 50 justos, Deus acabará poupando também os ímpios. E, poupando os ímpios, Deus os estará perdoando.

Mas é exatamente o que o texto propõe. Deus perdoa. A cidade não será destruída. Os 50 justos a salvam. E isto pelo simples fato de existirem.

Não há uma única palavra a respeito de arrependimento da parte dos ímpios, como o conhecemos, p. ex., do livro de Jonas. Nada. Se forem poupados, isto ocorrerá exclusivamente pelo amor de Deus aos justos. Mas isto também deixa claro que não é por amor aos ímpios que a cidade é poupada. Por eles ela seria fatalmente destruída.

Só há uma conclusão a tirar: o amor de Deus pelos justos salva a cidade. Esta é a única chance para os ímpios. Enquanto houver 50 justos em seu meio, eles serão poupados.

O restante do diálogo entre Abraão e Deus, vv. 27-32, não difere no fundamental. Percebido o amor de Deus por 50 justos, Abraão resolve levar a questão até o fim. Atreve-se a perguntar mais e mais, mesmo sendo apenas cinza e pó (v. 27), mesmo sabendo que o Senhor pode irritar-se com sua insistência (vv. 30,32), mesmo se dando conta de seu atrevimento (v. 31). E se forem só 45? E se forem apenas 40? E se forem somente 30? e 20? e 10?

E em cada nova pergunta Abraão é movido por duas questões. Por um lado, quer ter certeza de que a justiça de Deus é justa. Não quer deixar qualquer dúvida a respeito. Por outro, quer que o justo na cidade experimente a justiça de Deus. Quer garantir que o inocente não pereça com o culpado.

E sempre a resposta de Deus é a mesma. Mesmo por amor de apenas 10, a cidade será poupada. Enquanto houver um sopro de esperança, não sobrevirá o castigo derradeiro. O amor de Deus ao justo é infinitamente maior que a sua ira sagrada contra o perverso.

O diálogo termina com o número 10. E é justo que se pergunte por que Abraão não prossegue em seu zelo pela justiça divina. Uma explicação plausível é a de que, para o pensamento israelita, o menor grupo é composto por 10 pessoas. Abaixo de 10 não existe mais um coletivo. Aí há apenas indivíduos, tais como Ló, sua mulher e suas filhas (Gn 19). E quando o grupo de pessoas justas for menor do que 10, o quadro se altera. Ainda há salvação para os justos. Mas já não há perspectiva para a cidade. O seu fim está decretado.

Por isso, o diálogo pode terminar aí mesmo. Abraão tem certeza da justiça de Deus e, com ela, tem também certeza de que o destino dos justos será diferente do dos ímpios, seja qual for o seu número. Deus jamais destruirá o inocente juntamente com o culpado. E, assim, quando o Senhor se retira, Abraão volta para casa.

4. Pensando na pregação

Ao longo do estudo do texto, alguns aspectos me foram chamando marcadamente a atenção. Sei que é impossível abordar todos eles numa pregação dominical. Mas, com certeza, um estudo bíblico com mais fôlego permitiria uma série de reflexões a um grupo.

Não ouso definir o caminho da pregação, uma vez que, penso eu, a realidade da comunidade reunida deverá colocar os acentos. Por isso, indico apenas estes aspectos, buscando refletir sobre eles um pouco mais, sem pretender influenciar a decisão do/da pregador/a.

4.1. Deus procura conselho

Estou profundamente impressionado com esta qualidade divina, percebida no texto. Deus procura Abraão para conversar. Esta imagem de Deus não é muito difundida em nossa teologia. É comum afirmar o contrário: a gente deve procurar Deus.

Mais impressionante ainda é que Deus procura Abraão para pedir conselho, para compartilhar com ele suas dúvidas sobre o processo de Sodoma. É simpática a ideia de que Deus tem dúvidas. Fica mais próximo da pessoa humana. Lembra muito o Novo Testamento. E aí me ocorre especialmente a imagem daquele Jesus que se deixa corrigir pela mulher cananeia (Mt 15.21-28; Mc 7.24-30).

4.2. A meticulosa justiça de Deus

O zelo de Deus pela justiça não é novidade. É fio vermelho que percorre Ioda a Escritura. Nova é a meticulosidade com que conduz o processo contra a cidade pecadora. Não lhe basta ouvir. Desce para ver, antes de tomar qualquer decisão. Mais, conversa a respeito com seu confidente.

Por um lado, esta imagem diminui a ideia de onisciência divina. Ao mesmo tempo, porém, dá uma lição de direito a quem está acostumado a julgar. E preciso investigar cuidadosamente, antes de proferir um veredito. E preciso ponderar longamente, antes de executar a pena. E preciso tomar conselho, antes de decisões sem retorno.

4.3. O pecado da cidade

Muitas vezes, ao longo do estudo, vi-me a refletir sobre pastoral urbana. Não tenho novas propostas ou soluções. Mas fiquei a me perguntar pela pecaminosidade das cidades. Não é este um aspecto candente na discussão sobre a Igreja urbana?

Como ser o pequeno grupo dos justos em meio às Sodomas modernas? Nossas cidades estão cheias de clamores que sobem aos céus. Tantos gritos de socorro, tantos gemidos inaudíveis se fazem presente nos meninos e nas meninas de rua, nos famintos, nos/nas desempregados/as, nos/nas mal-assalariados/as. Todos e todas são vítimas desses inescrupulosos centros de atração citadinos, que iludem os justos com suas vãs promessas.

Haverá como salvar as cidades, sem escolher o caminho dos inocentes?

4.4. O justo como interlocutor de Deus

Ao tomar conselho, Deus não escolhe qualquer pessoa. Escolhe aquele que creu, e isto lhe foi imputado para justiça. Abraão é o protótipo do justo em meio à cidade, ainda que nos seja apresentado como seminômade pastor de ovelhas. Está na estepe, porque não tem lugar na cidade. Já saiu de Ur, e está a vagar por entre os centros de poder de seu tempo. Evita a cidade, porque a teme. Sabe de seus perigos.

É este o Abraão a quem Deus escolhe como parceiro na ponderação sobre a justiça. Um Abraão que já sofreu a violência da cidade. E, não obstante, não aproveita a ocasião para vingar-se dela. Ao contrário, protege-a, porque sabe que em seu meio se abrigam outros pobres e inocentes justos.

Não serão estes justos, localizados nas periferias das cidades pecadoras, os reais interlocutores de Deus hoje?

4.5. O amor de Deus aos justos salva a cidade

Diferentemente de Nínive, como o conhecemos do Livro de Jonas, nada há que fale a favor dos ímpios de Sodoma. Não há arrependimento, não há conversão. Sua condenação já está dada. O único resto de esperança para aquela cidade é que não tenha liquidado ainda totalmente com os justos em seu meio. Só o amor de Deus por esses justos é capaz de evitar a catástrofe.

Que será das cidades modernas, quando acabarem de exterminar os pobres que habitam em seu meio?

4.6. O justo que salvou a todos

O diálogo de Deus com Abraão termina com o número 10. E certamente para o pensamento israelita tal número representava o limite coletivo imaginável.

Para nós, contudo, o número limite é um, na pessoa de Jesus Cristo. Um justo apenas, crucificado fora da cidade, porque queriam mantê-la pura, salvou a humanidade inteira. Seu sacrifício deveria ter bastado para que o pecado da cidade deixasse de existir. Mas isto ainda não aconteceu.

Resta a esperança de acreditar que, enquanto os justos remanescentes não se curvarem ao poder perverso da cidade e permanecerem fiéis guardiães do caminho do Senhor, que consiste na prática do direito e da justiça, a catástrofe poderá ser evitada.

Parece ser a esta perseverança que as leituras previstas para o 10º. Domingo após Pentecostes nos convidam (Cl 2.6-15; Lc 11.1-13).

5. Bibliografia

RAD, Gerhard von. Das erste Buch Mose; Kap.12,10-25,18. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1952. (Das Alte Testament Deutsch, 3).
WESTERMANN, Claus. Genesis 12-36. Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1981. (Biblischer Kommentar Altes Testament, 1/2).


Autor(a): Carlos A. Dreher
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 10º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 18 / Versículo Inicial: 20 / Versículo Final: 32
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1994 / Volume: 20
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17724
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