Gênesis 2.7-17

Auxílio Homilético

01/05/2016

 

Prédica: Gênesis 2.7-17
Leituras: Marcos 2.23-28 e 1 Tessalonicenses 2.3-12
Autoria: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa ( Dia do Trabalho)
Data da Pregação: 01/05/2016
Proclamar Libertação - Volume: XL

 

 

Trabalho humanizado numa terra humana

 

 

1. Introdução

O tema do trabalho é a chave para a leitura sinótica desses três textos que, por si só, não têm muito a ver um com o outro. Lendo-os em separado, certamente não chegaríamos a estabelecer vínculos entre eles. Sobretudo o texto da pregação é extremamente rico em diferentes possibilidades de abordagem. Os textos de leitura e a ocasião do Dia do Trabalho indicam o caminho deste auxílio homilético: o foco no trabalho.

O trabalho no texto de prédica é, fundamentalmente, a criação de Deus. Ao ser humano resta o mandato de cultivar e guardar essa boa criação paradisíaca, uma atividade leve, quase um hobby, como cuidar de um jardim, que ainda não tem nada da concepção de castigo implícita “no suor do teu rosto comerás o teu pão”. Ainda tem muito do “trabalhar para viver e não viver para trabalhar”. Lembra-me a colocação de Santiago Guarani, dizendo que tem pena dos brancos porque se matam trabalhando e têm muitas preocupações ao invés de prestar atenção nas coisas essenciais da vida e confiar na criação que alimenta essa geração e, em sendo bem cuidada, também as próximas. Na leitura de Marcos, tematiza-se o conflito entre a boa lei do descanso e a sua aplicação inflexível, quando se trata de superar necessidades imprevistas ou ocasionais. Com os tessalonicenses Paulo discute uma possibilidade de divisão do trabalho: pelo senso da época, ele e seus colaboradores poderiam exigir ser sustentados pelos destinatários da pregação do evangelho; entretanto, ao lado, ainda trabalham produtivamente para o próprio sustento.

A associação desses três textos fornece-nos os três itens para a pregação: o trabalho criativo de Deus (gratidão e louvor), o direito (e não a obrigação ritual) ao descanso, a divisão do trabalho.

2. Considerações exegéticas

O texto da prédica faz parte da narrativa mítica da criação oriunda da tradição oral agropastoril de Israel no período tribal, tendo sido registrada por escrito provavelmente no período do rei Salomão. A narrativa tem o cheiro da terra. A terra é o organismo vivo que fornece a matéria-prima para formar os humanos e fazer brotar toda sorte de árvores, inclusive a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal.

Duas palavras, adam e adamah, merecem atenção especial. A tradução do Almeida Revista e Atualizada peca por imprecisão quando se vale de diferentes termos para a mesma palavra adamah. Às vezes, utiliza a palavra solo, outra vez pó da terra. A NTLH em sua versão não tem fidelidade terminológica e assim encobre relações intrínsecas entre a terra, humanos, animais e árvores. A Edição Pastoral traduz por “argila do solo”. Nenhuma utiliza a palavra húmus.

A terra da qual Deus formou o humano não é qualquer tipo de solo; é terra agricultável, terra de plantio, aqueles 12 a 15cm de solo fértil e vivo que chamamos de húmus. Um punhado desse húmus contém bilhões de microbiologia viva. Os humanos, portanto, são partes dessa camada de húmus, animados pelo sopro de Deus. O vínculo linguístico aqui é fundamental. Assim como Adam tem uma relação imediata com a adamah, os humanos têm uma relação direta com o húmus. Para permanecer humano, essa relação não pode ser perturbada e muito menos interrompida. O humano é o próprio húmus que anda, que sente, que pensa e que ama. O vínculo com o sopro de Deus atribui-lhe a função de elo de ligação entre Deus e terra. Esse vínculo de terra e sopro divino constitui a humanidade. Quando Deus busca de volta o sopro de vida concedido, o humano volta a ser húmus. “Terra à terra, cinza às cinzas, pó ao pó. Da terra foste formado, à terra tornarás”... Tanto me parece belo quanto consolador estar integrado no ciclo da vida dessa forma, estando animado pelo sopro divino.

Em Gênesis 2.19, também os animais são formados do mesmo material que os humanos. Assim, os indígenas entendem que o nosso vínculo com os animais é a humanidade e não a animalidade. Em Eclesiastes 3, surpreendemo-nos com a seguinte afirmação: Porque o que sucede aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais, porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão. Quem sabe que o fôlego de vida dos fi lhos do homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a terra (v. 19-21)?

Ou seja, toda a vida humana, vegetal (brotam da terra) e animal tem o seu vínculo existencial com a terra. A ameaça ou agressão a qualquer manifestação da vida também fere a terra. A terra abre a sua boca para receber o sangue de indígenas, escravos, Abéis de todos os tempos, declarados não pessoas, invisibilizados (Gn 4.11). Aliás, essa ligação intrínseca entre terra e as criaturas permeia praticamente todas as mitologias indígenas.

O trabalho criativo é de Deus. Aos humanos resta cultivar e guardar. Para que os humanos não pensem de si mais do que devem, nada há do que descobriram, inventaram ou ainda venham a descobrir que já não tivesse sido criado antes. No v. 15, a palavra hebraica traduzida por cultivar é abad (trabalhar). Esse é, portanto, o trabalho humano: cultivar e guardar como bons mordomos da criação de Deus.

3. Meditação

Por que Deus proibiu comer da árvore do conhecimento do bem e do mal? Será que Deus é contra que os seres humanos busquem ampliar o seu conhecimento? A sedução da serpente responde essa pergunta em parte: “sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal” (v. 5). Provérbios 3.13-18 justamente declara feliz a pessoa que acha sabedoria e adquire conhecimento.

De outro lado, cabe a pergunta: é lícito fazer tudo o que estamos em condições de fazer? Esta pergunta é controvertida, pois, no seu período de maior poder, a igreja procurou controlar a ciência e impedir seus avanços. Mais adiante, o modernismo lambuzou-se com uma ciência que não admitia qualquer indício de pergunta pela ética, pois logo a repudiava como censura indevida (qualquer semelhança com as reações da nossa mídia privatizada não é mera coincidência!). Só que nenhuma ciência é neutra e muito menos ingênua. Com raras e honrosas exceções, está a serviço de seus financiadores.

Por exemplo: os ideólogos da “revolução verde” na agricultura sabiam exatamente a que interesses corporativos multinacionais estavam servindo, a saber, à indústria química e mecânica da lavoura. Não apenas conquistaram espaços comerciais, mas também ganharam professores universitários que, em lugar de agrônomos, passaram a formar vendedores de adubos e defensivos químicos, tratando a terra como um mero substrato arenoso que serve de base para as plantas. Tudo em nome da facilitação do trabalho no campo e da produção de mais alimento para um mundo faminto. Entretanto, depois de poucas décadas, você ouve falar de processos de desertifi cação nas áreas exauridas por esse modelo? Hoje repete-se a mesma cantilena com os transgênicos. A rede da vida é como uma teia de aranha. Se você puxa um fio, mexe na rede toda, pois tudo é interdependente. Somos capazes de administrar esse conhecimento?

Em Gênesis 3.7, depois de terem comido da árvore do conhecimento do bem e do mal, “abriram-se, então, os olhos de ambos...”, ou seja, o efeito do conhecimento tornou-se realidade. A seguinte percepção de sua nudez tem menos a ver com sexualidade e mais a ver com o sentimento de se ter exposto a um conhecimento que não se sentiam aptos a administrar. Atualizando: estamos em condições de avaliar adequadamente para nós, para as futuras gerações, para o planeta Terra os efeitos da aceleração do crescimento, da ideia de que é possível crescer – produzir e consumir – ilimitadamente num planeta limitado, do esgotamento dos recursos fósseis, do aquecimento global, da manipulação genética, da operação com células tronco, da lenta e progressiva extinção de espécies e redução da biodiversidade, das frações de aumento na temperatura do mar, da cibernética...? O progresso tecnológico, sobretudo o eletrônico e informático, dos últimos anos reforçou nos humanos o orgulho de poder tudo. Paulo, apóstolo, diria: Tudo nos é lícito, mas nem tudo convém. Estamos em condições de definir o que convém e o que não convém? Os cientistas nem mesmo se entendem quanto às causas do aquecimento global: se são antropogênicas ou devidas a grandes ciclos cósmicos. Não há uma resposta inequívoca. Essa é a nossa nudez até os dias de hoje.

O trabalho de Deus é criativo. O trabalho humano é apenas de transformação do que foi criado. Não custa lembrar a famosa descoberta de Lavoisier no século 18: Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

Ao longo da história, o trabalho foi um espaço de realização humana, mas também de sujeição e exploração. No exílio babilônico, formula-se o primeiro relato da criação, organizando as obras de Deus pelos dias da semana e acentuando o descanso no shabbat. Se Deus descansou, os seres humanos também têm direito ao descanso.

Esse certamente foi um grande ganho civilizatório, não apenas para oportunizar a recuperação da força de trabalho, mas também como uma confissão de fé: a manutenção da criação de Deus não depende do nosso trabalho. A criação de Deus é tão bem feita, que ela pode muito bem viver sem a intervenção do trabalho humano. Por isso trabalhar durante o shabbat chegou a ser considerado uma blasfêmia, ou seja, uma forma de negar a autossuficiência da criação de Deus. É nessa lógica que os fariseus manifestam a sua estranheza quanto à colheita das espigas durante um shabbat.

Por outro lado, a nossa sociedade de produção e consumo inventou o trabalho de 24 horas em turnos; o comércio quer avançar a qualquer custo no dia de descanso, pois quer mais oportunidades de venda. No início do milênio, as igrejas alemãs opuseram-se veementemente a esse verdadeiro assalto ao dia de descanso com o slogan: sem dia de descanso, teremos apenas dias de trabalho. Ou seja, a crítica implícita era que se estava voltando para uma espécie de escravidão moderna que obriga pessoas a trabalhar e produzir e constrange pessoas a consumir para que o sistema sobreviva. O comércio entendeu que estava rivalizando com a igreja pelo mesmo público, pois não consegue mais pensar em outra categoria senão a da concorrência.

Ao longo da história, também sempre houve uma relação tensa entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. De um lado, trabalho verdadeiro é o trabalho manual, produtivo de bens materiais, o trabalho pesado, corporal, que faz a gente suar a camisa. Dessa perspectiva, o trabalho intelectual nem mesmo pode ser chamado de trabalho; fica mais no nível do passatempo sem nenhum esforço ou cansaço físico, sem o famoso “suor do rosto”. Certa vez, ao viajar para o Vale da Serra Azul/MT para visitas a membros e culto ao domingo, passei pela roça do Romalino, que estava colhendo arroz. Quando veio na direção do fusca da paróquia, parou e perguntou: “Passeando, pastor?”. Eu retruquei: “É, se tu tiveres passeando na tua colhedeira, eu também estou passeando com o fusca da paróquia!”.

Por outro lado, em termos de remuneração, o trabalho intelectual, incluindo aí as artes e os esportes, sempre foi mais valorizado do que o trabalho manual e corporal. Inclui-se aí o salário pastoral, que para muitas famílias do interior agrícola é bem alto. Nessa mesma comunidade, certa vez, encontrei um caminhão carregado de arroz com a ponta de eixo quebrada. Membros da comunidade estavam transferindo a carga para outro caminhão. Eu me atraquei junto, era jovem, tinha vigor... Durante a atividade, propus que, nos períodos de preparação da terra e de colheita, eu trabalhasse de saqueiro, na manutenção das máquinas, na aragem da terra... Ninguém topou! Será que não acreditaram? Será que não me concediam que eu aguentaria? Será que em sua opinião esse trabalho não era digno o suficiente para um pastor? Anos mais tarde, noutra paróquia, repartindo um pastorado com a família pastoral Gaede, em Erval Seco/RS, fizemos interessantes experiências na combinação de trabalho pastoral e trabalho na terra. O nosso slogan era: queremos tornar-nos mais próximos e parecidos com agricultores, para  que as famílias agricultoras se tornem mais próximas e parecidas com famílias pastorais. Queríamos intervir na cultura do trabalho, dignificando o trabalho na terra e tirando do trabalho pastoral a pecha de ser um exercício diversionista, além de repartir a responsabilidade por ele com todos os cristãos e cristãs batizados daquela paróquia.

4. Imagens para a prédica

O trabalho humanizado numa terra humana dá-se no seguinte horizonte:

Quando chegamos, a terra já estava aqui. Quando todos partirmos, a terra seguirá aqui também. O pó de tudo o que existe está aqui, tudo retorna à terra e a terra sobreviverá por muito tempo quando nós também voltarmos a ser pó.

Se pegarmos a terra… podem pegar, não é sujeira. A terra tem muitos segredos a revelar. Em cada centímetro cúbico há milhões de micro-organismos, trabalhadores anônimos, que são responsáveis por mantê-la viva, fértil. Os adubos químicos matam parte desses micro-organismos; já o adubo orgânico é apenas o retorno à terra daquilo que um dia já foi terra.

Vejam agora essas sementes; cada uma tem seu próprio rosto. Como as sementes chegaram até nós? Por séculos e séculos, lavradores colheram e replantaram, escolheram e cuidaram da terra, das plantas e das sementes. É preciso reproduzir esse ciclo. Transformações sutis foram acontecendo ao longo dos séculos e séculos, com uma complexidade que está além de nossa capacidade de compreensão. Os transgênicos interrompem esse processo natural. Devemos rezar pelos cultivadores das sementes crioulas, pois são eles que garantirão o futuro de nosso alimento.

Somos 70% água, água em movimento. A que agora está em nosso corpo logo poderá estar naquele córrego, numa nuvem ou irrigando uma plantação. Poluir a água é poluir o nosso corpo; não há separação. Tudo está em tudo. A substância que nos forma é a que está na terra e que vem até nós com o alimento e a água. Introduzir veneno em qualquer etapa desse ciclo significa envenenar o sistema do qual nós – assim como nossos filhos e filhas, netos e netas – fazemos parte.

5. Subsídios litúrgicos

Oração de coleta

Santo Deus, Criador Todo-Amoroso! A tudo criaste com perfeição, concedendo a nós humanos o privilégio de cultivar e preservar o teu jardim. Pedimos que nos assistas com o teu Santo Espírito para que orientemos o nosso trabalho no sentido de aproveitar o que nos colocas à disposição e de cuidar para que também as futuras gerações possam viver em paz. Isso te pedimos em nome de Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo reina de eternidade a eternidade. Amém.

Bibliografia

O texto das imagens para a prédica procede da seguinte fonte: AYER, Maurício. Que alimentamos, quando nos alimentamos. Disponível em:   Acesso em: 04 jun. 2015.
 


 


 


Autor(a): Hans Alfred Trein
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 6º Domingo da Páscoa
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 2 / Versículo Inicial: 7 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2015 / Volume: 40
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 35183
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