Gênesis 4.1-16

Auxílio homilético

05/09/1982

Prédica: Gênesis 4.1-16
Autor: Günter Wolff
Data Litúrgica: 13º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 05/09/1982
Proclamar Libertação - Volume: VII


I — Texto e contexto

Podemos estruturar o texto da seguinte forma: Os vv. 1-7 formam a primeira parte da história, onde aparece a tensão social das duas classes: agricultores e pastores; e os vv.8-16 formam a segunda parte em que acontece o homicídio, a luta real contra os pastores, os quais são assassinados. Nesta segunda parte da história acontece algo interessante. Caim (agricultores), por causa do medo da vingança, tom que abandonar a terra e fugir, tornando-se desta forma um marginal da sociedade. E, por ter-se tornado marginal, é aceito por Deus. O poderoso, para ser aceito por Deus, precisa despojar-se de seu poder e bens e tornar-se igual aos outros. A aceitação por parte de Deus está no sinal de proteção. O castigo, mesmo com a aceitação posterior de Deus, continua valendo. Isto mostra que Deus se coloca claramente ao lado do marginalizado.

Na primeira parte, Javé se identifica com os pastores, pois são uma classe sem terra. Os pastores dependem da boa vontade dos donos da terra, dos agricultores, para poderem alimentar seus rebanhos nas terras não cultivadas. Assim os pastores queriam ter terra, mas os, agricultores não cediam. Os agricultores possuíam a terra, o que lhes dava uma supremacia em relação aos pastores. Os pastores tinham de usar a terra à beira do deserto onde havia pouco pasto. Desta forma eram obrigados a manter o seu rebanho sempre reduzido, sem oportunidade de aumentá-lo, de modo que continuavam pobres.

Toda a história da tomada da terra na Palestina teve como base este problema de terra. Os pastores (classe sem-terra) queriam terra. Não bastava apenas ocupar a terra, pois os seus proprietários viviam nas cidades. Por isso era necessário vencer primeiro as cidades para que pudessem ter acesso à terra. Olhando os vv.17ss., vemos que Caim edificou uma cidade e todos os seus descendentes eram habitantes de cidades, por serem artífices. Apenas um (v.20) foi pai de uma família de pastores; ele é citado, porque destoa dos outros.

Ha uma genealogia especial de Caim, que não foi incluída na genealogia oficial porque ele era poderoso e um opressor. A genealogia de Adão, cap.5, leva até Noé e a genealogia deste leva até Abraão que CM pastor, pertencendo, portanto à classe dominada. Há uma exclusão clara dos descendentes de Caim, da linhagem aceita como oficial.

O título da história poderia ser o v.2b. A história conta a luta destas duas classes, sendo que para contá-la se personificou cada classe ruim nome.

Portanto:
vv. 1-7 - a tensão social
vv.8-16 - assassinato, fuga, despojamento e consequente aceitação por Javé.

O texto se situa na proto-história que vai do cap.1 a 12.3. O cap.4 É praticamente todo uma genealogia que começa com Caim. Mas há uma interrupção para explicar a história de Caim. No cap.5 vem a genealogia de Adão: nesta Caim não aparece, pois foi excluído. Em 4.1 e 17 lemos que a mulher gerou, o que não acontece nas outras genealogias: 5.1; 10.1; 11.10; isto mostra que são de outra tradição. 5.1 dá continuidade à primeira história da criação, do Escrito Sacerdotal. A genealogia de Caim abrange 4.1-2 e 17-26. Gn 4.3-16 é apenas uma interpolação da história de Caim, para justificar a sua exclusão da genealogia de Adão.

II — Considerações exegético-meditativas

1. Primeira parte: vv. 1 - 7
Este texto apresenta a humanidade dividida em duas classes sociais, na forma de duas profissões. E a profissão determina a classe social. A divisão do trabalho é originada pela apropriação dos meios de produção, que aqui são a terra, por uma classe. Os pastores surgiram por causa da falta de terra para plantar, ou melhor, pela expulsão de alguns da terra. A opção foi criar gado (ovelhas) para sobreviver, pois se podia levar o rebanho até a orla do deserto onde havia pastagem, mesmo que raia, e onde aterra não servia para a agricultura. Em Nm 21.21-22 vemos algo semelhante, a situação do povo nômade que quer atravessar a terra dos agricultores. Israel pede apenas para passar pela estrada, assegurando que não vai se desviar para os campos e vinhas, nem para beber dos poços; mas não lhes dão a permissão. Na verdade, a classe dos pastores sempre era uma ameaça à agricultura, pois o rebanho podia entrar nas plantações e o grande problema eram os poços de água para os pastores. Quer dizer, os pastores tinham a grande necessidade de poços e boas pastagens, tudo isto longe da orla do deserto. Por isso, o grande desejo de Abraão, e também mais tarde do povo de Israel, era de possuir terra. Mas, por causa da falta de terras, pastores eram mantidos na pobreza e, assim, marginalizados.

A desapropriação da terra acentuou-se na época do reinado. 1 Sm 8.11-17 afirma que o rei tomará o melhor das lavouras, das vinhas, dos olivais e os dará aos seus servidores. Neste período também os inimigos do rei eram desapropriados, como vemos no exemplo de Nabote (1Rs 21).

Toda esta primeira parte faia da causa da morte, que vem da divisão do trabalho, gerando as classes sociais. Aqui. a causa da morte é a luta pela terra. É importante notar que Javé se coloca ao lado dos sem terra. Javé se agradou da oferta de Abel, o pastor. Esta posição, facciosa do ponto de vista de Caim, irrita-o, pois Javé fez subversão, no seu entendimento. O poderoso, o dono. diz que o fato de ele ler abundantes bens e vida boa e sinal de bênção de Deus. E aqui, ao se agradar da sua oferta. Deus abençoa o marginalizado, aquele que, no entender do poderoso, não é abençoado, pois não possuí bens. Deus deixa claro que muitos bens não são sinal de bênção. Com a preferencia dada a Abel, Javé condena Caim peia apropriação da terra e consequente marginalização do outro. No tempo do reinado, quando vivia o Javista. que trabalhou com este texto, a desapropriação de bens era assunto atualíssimo. O reinado surge por causa do latifúndio. Este texto fala contra a expulsão da terra e marginalização dos pequenos agricultores pelos que têm dinheiro e poder. O latifúndio se expande, e mesmo assim continua vendo nos expulsos uma ameaça. Ameaça de quererem terra para sobreviver com seu rebanho ou voltarem a ser agricultores.

2. Segunda parte: vv. 8 – 16

Esta segunda parte é uma continuação da primeira, mas há uma mudança de conteúdo. Esta segunda parte provavelmente era outra história, anexada à primeira por apresentar uma certa continuação desta. Aqui o conflito latente na parte anterior explode, e acontece uma inversão de valores. A situação de morte, incompleta e parcial na primeira parte, é consumada com a morte de fato. A luta de classes leva automaticamente à morte se os poderosos não cederem, se persistirem na distribuição injusta dos meios de produção, isso deixa patente que na luta pela terra os poderosos levam vantagem. Mas agora, aqui, há uma intervenção direta de Deus; antes, apenas manifestara a sua simpatia e advertência. Aqui vem o castigo que, com o assassinato, Caim mesmo se impôs. Caim estará sob eterna ameaça de vingança por parte da classe oprimida que não esquecerá o assassinato. Contudo, assim como Deus se colocou contra a morte de Abel, também se coloca contra a morte de Caim. Mas o castigo de Caim consiste em tornar-se igual a Abel. Por força das circunstâncias, ele é obrigado a se tornar um homem sem terra. E isto, por outro lado, é a sua salvação. Este texto mostra que o opressor, para ser aceito por Deus, precisa assumir de fato a condição de oprimido, precisa identificar-se com este para ser protegido por Deus. Somente assim Deus olhará para ele como olhou para Abel, quando aceitou a sua oferta. Neste sentido, Paulo Freire diz: A única possibilidade que tem a pequena burguesia intelectual de dar a sua contribuição ao movimento de libertação é de ter a coragem de suicidar-se, matar-se, para renascer como trabalhador revolucionário. É o que semelhantemente acontece aqui. Caim deixa do ser opressor e se torna igual aos que antes perseguia. Agora Caim também está na periferia da sociedade e sofre marginalização. E, nesta situação, ele é aceito por Deus (o sinal de proteção), pois tornou-se um Abel, um oprimido, e a este Deus dá apoio.

Quanto à tentativa de evitar a vingança com um castigo sete vezes maior. Deus mostra que não concorda com tal vingança, pois isto seria usar as mesmas armas do opressor. Com este aviso, Deus deixa o alerta: é preciso analisar para ver que o opressor mudou. Neste texto acontece algo parecido com a mudança de Paulo: de perseguidor para igual e perseguido.

No v. 9 Caim diz: acaso sou tutor de meu irmão? Em outras palavras, ele quer dizer: eu não sou responsável pelo que acontece com meu irmão. Pobre é pobre porque é preguiçoso, se diria hoje. O patrão da fábrica não quer saber como o empregado consegue viver com um salário mínimo. O patrão se sente responsável pelo que acontece na fábrica: fora dela ele não se interessa. O interesse na fábrica em todo caso, não passa de interesse na produção. Para ele, importa que a mão-de-obra que ele aluga por mês renda o máximo. Se o empregado mora na favela, não é problema seu. No v.9 Caim ainda mantém a mentalidade de opressor, e dali em diante o oprimido que ele matou o leva a sei um igual a ele. A classe oprimida, mesmo perdendo a luta, força o opressor a se tornar um deles.

O v.13 expressa a dificuldade de Caim em aceitar a situação de oprimido, que veio pelo castigo. Na luta de classes, o opressor somente cede pela pressão das circunstâncias impostas pelos oprimidos. O patrão só dá aumento através da pressão dos empregados, ou quando isto lhe traz vantagens. Assim também Caim só muda sob pressão das circunstâncias que ele criou. O patrão também criou as circunstâncias que levam os empregados a fazer greve. Isto mostra que a conversão dos opressores só se dá na luta, quando são obrigados a ceder. Caim também foi obrigado a ceder diante das consequências dos fatos que ele criou. Mesmo com dificuldade de aceitar a mudança que lhe foi imposta (ou que ele mesmo se impôs pelos seus atos), ele se torna um marginalizado, e isto faz com que tenha a proteção de Deus. Podemos dizer que a conversão dos ricos se dá por meio dos pobres. É uma conversão ao estilo de Paulo, que também foi duramente atingido por Deus. Não lhe restou outra alternativa, a não ser cumprir o que Deus lhe indicara, para ficar curado de sua cegueira. Sua cegueira espiritual foi curada quando a cegueira física foi curada. Também Jeremias se tornou profeta na marra.

III — A prédica

Se a comunidade for de cidade o pregador terá de usar exemplos da luta de classes na cidade. Se for da zona rural, terá de usar exemplos da luta pela terra. Procurarei dar exemplos das duas situações.

O conflito gerado pela má distribuição da terra no Brasil é generalizado, no Sul e no Norte. Há o conflito entre posseiros e latifundiários, há o êxodo rural que impele o colono para a cidade (aqui os motivos são vários: uns vendem porque não vêem futuro na lavoura, pois não têm instrução para produzir e sobreviver num pequeno pedaço de terra: outros vendem porque estão endividados: outros simplesmente procuram uma vida mais fácil nas cidades: outros, que são agregados ou bóias-frias, procuram fugir da exploração a que estão sujeitos e, sem saber, entram noutra). Há ainda a expulsão de colonos por causa da construção de barragens e o conflito nas periferias das cidades por causa dos loteamentos clandestinos. O triste de tudo isto é que na realidade há terra sobrando, tanto no Sul quanto no Norte do País. A estatística diz:

IMÓVEIS                                                          RURAIS                                      ÁREA
                                                                  % sobre o total                           % sobre o total
                                                                    1972             1978                       1972          1978

Minifúndio                                                      72                  67,3                       12                 9

Empresa Rural                                                4                   3.7                         10                 6

Latifúndio p/ Exploração                               24                   29                          73                77

Latifúndio p/ Dimensão                                  -                     0,01                        5                  8


A luta pela terra faz mais viíimas a cada ano, sempre do lado dos oprimidos. Os Índios, a cada ano, perdem mais de seus territórios. Os bóias-frias são outro exemplo de expulsos da terra. Conforme o documento da CNBB Igreja e Problemas da Terra, houve em 1979, apenas na região do sul do Pará, mais de 80 conflitos de terra e só no Maranhão, 129 conflitos envolvendo milhares de pessoas.

A estatística da distribuição da renda mostra o conflito que há entre ricos e pobres, pois 50% dos mais pobres possuem 13,4% da renda total, enquanto 1 % dos riquíssimos possui 17,3% da renda do país. Isto, porque 75,3% dos trabalhadores recebem apenas até 2 salários mínimos.

Nisto tudo está claro que a luta de classes no Brasil está se recrudescendo. O ex-presidente Geisel afirma que no Brasil não há lugar para a luta de classes. Isto é mentira, pois ela sempre existiu de fato.

A repressão de Caim sobre Abel também se vê nos gastos dos países da América Latina, que despenderam, em 1974, por pessoa, 5.127 dólares para fins militares, 30 dólares para educação e 8 dólares para saúde.

Toda esta luta de classe já causou muitas mortes, desde a mortalidade infantil por falta de recursos e subnutrição até assassinatos de operários em greve e nas prisões sob tortura. Toda esta realidade cria uma morte lenta, mas certa de muitas pessoas da classe explorada, além de ser responsável pela onda crescente da violência dos assim chamados marginais. Esses são apenas produto da opressão, da qual tentam se defender à sua maneira. São chamados de assaltantes e assassinos, mas esquece-se que os donos do poder fazem o mesmo, só que de uma forma mais sutil e muito mais eficiente, rendendo milhões para suas contas bancárias e investimentos no exterior e no país. Estes Cains tem todo o apoio oficial (vide, por exemplo, Projeto Jari, Jica, Codeara, Itaipu, Transamazônica, etc.). O problema todo é estrutural: os pequenos Cains, nós, apenas somos reflexos da estrutura em que estamos inseridos. O que permanece é que os oprimidos (Abel) forçarão os opressores (Caim) a não ter outra saída senão tornarem-se iguais aos oprimidos. E isto requer a perda do poder e dos bens, que serão distribuídos. Somente então Deus os aceitará como seus filhos, o fim da luta de classes trará o Reino em sua forma plena.

Sugestão para o desenvolvimento da prédica:

1. Analisar as causas da luta de classe que há entre Caim (agricultor) e Abel (pastor) por causa da divisão do trabalho.

2. A evolução da luta com o assassinato de Abel.

3. As consequências do assassinato forçam uma transformação do opressor em marginalizado.

4. Com a marginalização veio a proteção de Deus.

5. Exemplo de luta de classes no Brasil, conforme a situação da comunidade, e as suas consequências.

6. A luta de classes é um fato. Qual a nossa participação nesta luta? De que lado estamos, como cristãos? Temos de fazer uma opção.

7. Esta opção vai possibilitar o quê? Vai possibilitar a nossa participação no Reino de Deus (já, em parte, durante a luta)

IV — Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, confessamos que participamos de uma estrutura que vive da morte, que se alimenta da morte. Principalmente da morte dos trabalhadores. Uma sociedade que tem milhões de menores abandonados. Estas crianças estão sendo mortas lentamente pelo desamparo, fome, frio, miséria e pela violência. Apoiamos pela nossa inércia um sistema que gera a doença e subnutrição. Tem piedade de nós Senhor'

2. Oração de coleta: Senhor, guia as nossas reflexões e ações para entendermos que a tua mensagem quer nos libertar de nós mesmos. Quer nos libertar do nosso poder que obtivemos pela nossa força e não pela bênção de Deus. Dirige os nossos passos para ajudar a caminhada daqueles que estão sofrendo a violência do nosso sistema: que gerou as favelas, os marginais, os mendigos, o Esquadrão da Morte e a Lei de Segurança Nacional. Abre os nossos olhos. Senhor!

3. Assuntos para intercessão na oração final: a oração final pode referir-se ao abordado nas duas anteriores: pedir pela paz: pedir por uma inversão da aplicação dos dinheiros públicos, para que sejam gastos menos em objetos militares e mais em alimentos, saúde, educação; pedir que o regime compreenda sua situação de pecado e opressão, para que esta compreensão leve a uma mudança radical, no sentido se entregar o poder nas mãos do povo; pedir por um fim do assassinato direto e indireto da população; pedir pelo fim da luta de classes; pedir que o sistema se torne justo e participativo: pedir força e coragem para uma opção em favor do oprimido.

V — Bibliografia

- COLUNGA. A. / GARCIA CORDERO, M. Pentateuco. In: Bíblia Comentada. Vol.1. Madrid, 1967.
- VON RAD, G. Das erste Buch Mose. In: Das Alte Tetament Deutsch. Vol.2/4. 2.ed. Berlin,1956.
- RUPPRECHT. W. Meditação sobre Gênesis 4.1-16a. In: Calwer Predigthilfen. Vol.2.Stuttgart, 1963.
- WESTERMANN, C. Genesis. In.Biblischer Kommentar Altes Testament. Vol.1 Neukirchen/VIuyn, 1974.
- ZIMMERLI, W. Meditação sobre Gênesis 4.1-16a. In: Hören und Fragen. Vol.4/2. Neukirchen/VIuyn, 1976.


Autor(a): Günter Wolff
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 14º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 16
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1981 / Volume: 7
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14622
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