Hebreus 11.8-10

Auxílio Homilético

11/03/1990

Prédica: Hebreus 11.8-10
Autor: Rodolfo Gaede Neto e Willy Töpfer
Data Litúrgica: Domingo Reminiscere
Data da Pregação:11/03/1990
Proclamar Libertação - Volume: XV

 

l — Introdução

1. A perícope aos Hebreus guarda dentro de si uma pergunta que fez com que os exegetas não chegassem a um consenso: quem são os destinatários de Hebreus? São eles gentílico-cristãos, judeus-cristãos ou um grupo de convertidos do paganismo? Talvez é importante descobrir quem são os destinatários. Mas aí surge a pergunta: será isto decisivo para o povo latino-americano? Penso que é mais frutífero dizermos que os destinatários são cristãos, independentemente de suas origens. Cristãos que conhecem o Antigo Testamento e que estão sob a ameaça de um imperador chamado Domiciano (80 a 90 d.C.). Para a América Latina isto tem muito mais peso, pois também hoje os cristãos vivem ameaçados pelos imperadores Domicianos do poder. Imperadores que ameaçam a vida com impostos, altos juros, carestia, ditadura. Domicianos como: EEUU que querem comandar e dirigir os passos do povo latino-americano; FMI que dita as normas e os rumos da economia dos países latino-americanos — uma economia que gera fome, morte, desemprego, êxodo rural, sem-terra, salário de fome.

2. A epístola aos Hebreus, resgata com muito carinho e ternura o Abraão de Gn 12: obediente a Deus e crítico ao poder do Estado. Este resgate mostra que a situação dos cristãos de Hb tem muito a ver com a de Abraão. É de grande importância resgatarmos este personagem para o povo latino-americano. Ele fala alto para dentro de nossa realidade. Por isso, torna-se importante perguntarmos, a partir de nossa perícope, quem foi Abraão:

a) Abraão foi um homem da roça, do interior, criado dentro das tradições e segundo o modelo familiar de clã.

b) O reinado tem como tarefa especial zelar e respeitar a vida das pessoas — na roça e na cidade. Ë sua tarefa primeira dar garantias dignas e justas às pessoas. Mas não era isto o que acontecia. O reinado, sentindo-se dono absoluto do poder, preferiu adotar como tarefa primeira a matança (l Rs 2.1346), idolatria (l Rs 11.1-13; 12.25-33), uso ilícito do dinheiro público (l Rs 11.14-29), exploração e opressão do povo da roça (l Rs 12.1-24; 2 Rs 23.31-24.7), todo tipo de imoralidades (2 Sm 11.1-13).

O reinado estava fundamentado na exploração ampla à classe trabalha¬dora. Os arquitetos eram a corte.

c) Nesta realidade surge Abraão como sendo um grito crítico ao reinado. A obediência de Abraão ao chamado de Deus revela a podridão do reinado. Com sua obediência Abraão mostra como o reinado dever-se-ia comportar: respeitar a dignidade e dar condições dignas e justas de trabalho e vida às pessoas. Além disso, Abraão desmascara (quando sai da casa de seu pai para a terra da promessa) o acúmulo de terras nas mãos dos grandes e mais de uma vez revela como o reinado dever-se-ia comportar: o reinado deve dar terras aos sem-terras. Isto é tarefa do reinado.

A obediência de Abraão é a concreticidade da fé que ele tem em Javé. A sua esperança está em Javé, o mesmo Javé que libertou Israel do Egito.

3. Insistimos neste resgate carinhoso, pois o povo latino-americano sofre, também hoje, opressões e explorações de toda espécie:

a) A matança no tempo do reinado acontece hoje também: líderes sindicais são assassinados por lutarem junto com os oprimidos. Líderes eclesiásticos são perseguidos e assassinados por resgatarem a memória dos oprimidos na Bíblia, dando assim força e esperança em suas lutas libertadoras;

b) A idolatria no tempo do reinado acontece também hoje: é incutido no povo latino-americano que o capitalismo é a saída para os problemas sócio-político-econômicos dos países;

c) O uso ilícito do dinheiro público no tempo do reinado acontece também hoje: os governos constroem obras faraónicas como barragens hidrelétricas, expulsando o povo de suas terras; empresas como a Nestlé fazem contrato com pequenos donos de terras. Estes donos passam a não ter mais acesso aos rendimentos. Só a terra lhes pertence.

A exploração e opressão ainda não acabaram. O reinado de hoje sabe como exercer esta sua função. Por este motivo, o povo latino-americano é um povo peregrinador, que vive sua vida em terras alheias, que já lhes foi dada como herança — uma herança, no entanto, que lhe foi tomada pelo Estado. Os Abraãos de hoje correm atrás e lutam com o sangue da vida pela herança que já não mais lhes pertence.

Toda esta exploração leva o povo, facilmente, ao desânimo, ao fatalismo e à resignação. Os cristãos em Hb não suportam mais as perseguições. A terra prometida não vinha mais. A esperança se apagou. O desespero tomou conta de suas vidas. Resgatando Abraão, estaremos mostrando que a luta de Abraão, sua obediência a Javé é também a luta e a obediência do povo latino-americano. Com sua fé Abraão quer animar, encorajar e acender novamente a esperança pela terra da herança, a terra prometida. Uma terra que tem fundamentos: o Reino de Deus. Nesta obediência ao chamado e apelo de Javé é que o povo latino-americano tornar-se-á um antimodelo ao Estado. Por isso, é tão válido resgatar o Abraão de Gn 12 para o povo latino-americano.

II - O texto

A perícope mostra uma comunidade em família. Uma comunidade pequena, de pessoas que peregrinaram com o mesmo Deus de Abraão. Esta comunidade, no entanto, começou a ficar cansada (3.12s.). Trata-se de uma comunidade cansada, desanimada de tanto sofrer perseguições, exploração por parte do Estado Romano. A fé que antes era forte começou a apagar-se. Para dentro desta realidade a perícope torna-se um chamado à fé. E, como os cristãos de Hb conhecem a história de Abraão, nada melhor do que relembrar a estes cristãos esta fé. Neste prisma enquadra-se a perícope.

V. 8: Javé deu a Abraão um lugar como herança. Para este lugar os cristãos de Hb também querem ir. Acontece que, sem esperança, sem fé dificilmente se chega lá. É preciso ter fé. O primeiro sinal concreto da fé é a obediência ao chamado de Deus. Este chamado é muito forte, pois quem chama ainda é Javé, não o reinado ou Estado Romano. E, na obediência, não se olha para trás, não se faz perguntas calculadas. Obediente a Deus se vai, inclusive, sem saber para onde. Por outro lado, o cristão pode ter a certeza de que chegará a um lugar seguro, pois Deus prometeu uma herança. Esta herança se cumprirá, porque Deus vai junto. E aqui quem é Javé, o Deus de Abraão? Um Deus que não está preso e não se deixa prender a nada. Ê um Deus que luta junto com seu povo, que assume a peregrinação deste povo aqui na terra. Ë o Deus conosco.

V. 9: A fé exige sacrifício. Não é oba-oba e nem se revela com a mente ou com o coração, tão-somente. A fé necessita de atos concretos. Abraão saiu, peregrinou sem saber aonde ia. Enfrentou o reinado ao ser obediente a Javé. Isto é fé praticada no dia-a-dia. A comunidade em Hb já está cansada e desanimada. O autor pretende mostrar que com a fé — comunidade erguida e esperançosa — não viverá num mar de rosas. A fé leva o cristão a caminhar em lugares estranhos. Nem sempre é assim como se pretende que seja. Tendo fé, corre-se, inclusive, risco de vida. Mas este risco não acontece em qualquer outro lugar a não ser na terra da promessa. Isto é, as consequências da fé acontecem e estão nos planos de Deus. O esvaziar-se, habitar em tendas, faz parte da promessa de Deus: se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16.24). Fé será sempre algo alheio aos olhos de quem não é obediente ao chamado de Deus. Será sempre algo fora de moda. Por este motivo, os cristãos não devem esperar muito do mundo, pois aqui o cristão é um peregrinador em terras alheias. A atitude do cristão é ser obediente a Deus aqui na terra. Sua obediência consiste em ser um antimodelo ao sistema que aqui impera.

V. 10: Os cristãos em Hb são chamados à fé. Abraão obedece e aceita a proposta de vida de Javé, porque aguardara a cidade que tem fundamentos. O mesmo deveria acontecer com os cristãos em Hb. Sua fé não deveria estar fundamentada numa vida melhor, status diante de outras pessoas, mas numa promessa de herança: a cidade que tem fundamentos. Ë uma cidade sólida, planejada por Deus e não pelo Estado Romano. Para Abraão foi a teria prometida. Para os cristãos em Hb é o Reino de Deus, onde há justiça, onde não há peregrinação, exploração e opressão. Mas, para chegar até lá, é necessário muita peregrinação em terra alheia: começar aqui na poeira do mundo a vivenciar este Reino com sinais bem concretos. O cristão já pode participar deste Reino, no momento em que se decidiu a obedecer ao chamado de Deus. Neste momento eleja está aguardando a cidade que tem fundamentos.

Ill — Meditação

A comunidade cristã em Hb pára de peregrinar em direção à cidade que tem fundamentos. Conseqüentemente sua fé foi abalada a tal ponto, que o autor vê-se na necessidade de resgatar a memória de Abraão. Este resgate evidencia o quanto foi importante a fé de Abraão, sua obediência ao chamado de Javé, para a comunidade cristã em Hb. O resgate de Abraão revela um prestígio que têm personagens bíblicos que revelam a opção de Javé. Este resgate faz com que a esperança cristã se fortaleça (2.1). A partir da memória de Abraão inicia novamente uma consciência de luta, uma reanimação para enfrentar a dura realidade do mundo.

Nós, aqui na América Latina, estamos no mesmo barco em que estão os cristãos em Hb e Abraão. A falta de respeito pela vida, as perseguições e explorações impostas ao povo latino-americano são inconcebíveis a uma mente sã, como por exemplo: o presidente Sarney em seu decreto-lei de 19.08.1988 prorrogou até 1993 os incentivos fiscais para projetos agropecuários e indústrias instalados na área em que atua a SUDENE (com isto cobrar-se-ão mais impostos do povo pobre e sofrido); a investida da UDR, juntamente com o governo brasileiro, contra a Reforma Agrária ampla.

Esta realidade faz com que se torne necessário não parar com a reflexão teológica e, muito menos, com a caminhada libertadora de nosso povo. Nesta caminhada tornar-se-á importante a memória do povo da Bíblia que, na organização, enfrentou o reinado e o Estado Romano. Ë e sempre será uma caminhada em terra alheia. Sempre hão de haver grupos ou ideologias que querem desestabilizar esta caminhada ou peregrinação.

A Igreja, a comunidade cristã, o povo de Deus, estará sempre peregrinando em terras alheias. Não pode ser diferente (11.13). A própria comunidade cristã é alheia para o mundo. Sua pregação não deverá nem poderá se confundir com o palavreado opressor de governos e ideologias. A comunidade cristã não se conformará com o mundo que está aí, contaminado pelo pecado. A comunidade cristã será sempre mensageira profética de Javé — de sua teologia — dentro da situação de peregrinação e morte. Ela deverá ser o antimodelo ao sistema que explora, oprime e perverte a mente humana.

O povo de Deus em peregrinação é sempre um povo esperançoso (6.11). Sua esperança não está fundamentada em ideologias, mas na herança de Deus: o Reino de Deus — a cidade que tem fundamento. O Reino de Deus é algo concreto (10.23), não idealizado. Por este motivo, este povo tem como tarefa colocar sinais bem concretos deste Reino aqui na terra: saúde, moradia, escola, salário justo, emprego, garantias de vida, direito à aposentadoria justa, terra para se colher o pão de cada dia, liberdade de expressão, ausência de racismo, paz, amor e justiça. O povo de Deus não poderá esquivar-se deste compromisso. Pela fé Abraão mostrou ao reinado que a terra prometida foi dada ao povo como herança. Pela fé os cristãos, de hoje, mostrarão que o Reino de,Deus é promessa que se cumprirá.

A natureza da comunidade cristã é, por excelência, peregrinar. E, como povo de Deus, faz parte da sua vida peregrinar. Não somos ainda donos de nosso lugar — este pertence a Deus. Somos hóspedes, convidados (13.13s.). Por este motivo somos, sempre de novo, chamados a caminharmos junto com Abraão. Mas não devemos caminhar sem rumo, sem objetivo, mas como agentes de Deus na transformação do mundo. Nesta caminhada deve-se ter a consciência de que há o deserto pela frente. Abraão teve que enfrentar a seca e o calor do deserto. Os cristãos da América Latina também passarão por este deserto: decepções, gozações, perseguições, morte (11.35-40). Não chegamos ao Reino de Deus sem antes experimentarmos a cruz de Jesus Cristo (Lc 9.57-62). Aquele que não quiser colocar-se a caminho jamais chegará à terra prometida — ao Reino de Deus; jamais verá a plenitude do Reino de Deus.

A peregrinação deverá acontecer e ser contínua. Uma coisa é certa: não se caminha sozinho. Abraão não caminhou sozinho. Javé esteve sempre com ele, de forma bem pessoal. O mesmo Javé continua hoje caminhando com o seu povo, encarnado em Jesus Cristo que, por sua vez, assumiu a natureza do povo peregrino. E é aqui que está a certeza de que a cidade que tem fundamentos estará à vista e poderá ser a morada do povo de Deus. Esta é a herança do povo de Deus: a terra alheia é justamente a certeza de que o povo de Deus depende única e exclusivamente de Jesus Cristo para chegar à plenitude do Reino.

IV — Subsídios litúrgicos

1. Hinos: Algumas sugestões de hinos para o culto: HPD 89; 98; 114; 130;166;170;177;184;190.

2. Intróito: Mateus 6.33.

3. Confissão de pecados: Sugerimos a seguinte confissão: Eu, pobre homem pecador, confesso a ti, Todo-Poderoso Deus, meu Criador e Salvador, que não somente pequei por pensamentos, palavras e obras, e, sim, fui concebido e nascido em pecado, de modo que a minha natureza inteira e todo o meu ser são culpados e condenáveis perante a tua justiça. Por isso, abrigo-me à tua insondável misericórdia e procuro teu perdão, dizendo: Ó Deus, tem compaixão de mim, pecador! Amém.

4. Oração de coleta: Sugerimos a oração do prontuário usado nas comunidades da IECLB no Espírito Santo: Todo-Poderoso Deus e Pai! Pedimos-te que dês à tua comunidade o teu Espírito e sabedoria divina, para que a tua Palavra se propague e progrida entre nós, sendo ela anunciada, devidamente, com toda intrepidez; para que a tua comunidade cristã se edifique; e para que te sirvamos com fé inabalável, perseverando, até ao fim, na confissão do teu nome. Por Jesus Cristo, teu Filho, que contigo e com o Espírito Santo, um só Deus, vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

5. Leitura da epístola: Atos 2.4247; 4.29-31.

6. Leitura do Evangelho: Mateus 7.15-27.

7. Assuntos para a oração final: Pedir que Deus, através do Espírito Santo, nos dê fé. Pedir que a nossa fé possa ser colocada em prática na convivência com o próximo, no nosso dia-a-dia. Pedir a Deus para podermos ser obedientes ao seu chamado e expressar o que esta obediência significa na prática, as consequências da obediência na vida pessoal de cada pessoa e na vida da comunidade cristã. Pedir que, quando chamados por Deus, possamos ouvir e assumir o compromisso deste chamado. Pedir que, quando não pudermos mais caminhar neste mundo (deserto), os irmãos da fé, então, orem por nós. Que a comunidade ore por aqueles que não podem ou não querem caminhar, que não querem ser considerados hóspedes neste mundo.

Agradecer a Deus por nos ter prometido uma herança tão concreta que é o Reino de Deus. Agradecer a Deus por nos ter dado Abraão como exemplo de fé. Que saibamos ser como Abraão.
Orar pelos doentes, desamparados, enlutados, jovens, velhos.

V — Bibliografia

- FRÖR, K. Meditação sobre Hebreus 11.1-2.6,8-10 (17-19). In: Göttinger Predigtmeditationeit VoL 1. Göttingen: Vandenhoeck Ruprecht, 1963.
- GOPPELT, L. O longo caminho da Igreja na história: A teologia da Epístola aos Hebreus e de Lucas. In: Teologia do Novo Testamento. Vol 2. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 1982.
- HOORNAERT, E. Cristianismo e memória, ou: A História da Igreja como ciência a serviço da memória histórica do povo cristão. In: A memória do povo cristão. Uma história da Igreja nos três primeiros séculos. Petrópolis: Vozes, 1986.
- MESTERS, C. Abraão e Sara. Petrópolis: Vozes, 1980.
- SCHWANTES, M. A Família de Sara e Abraão. Texto e contexto de Gênesis 12-25. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1986.


Autor(a): Rodolfo Gaede Neto e Willy Töpfer
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Testamento: Novo / Livro: Hebreus / Capitulo: 11 / Versículo Inicial: 8 / Versículo Final: 10
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1989 / Volume: 15
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13498
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1Coríntios 3.16
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