Hebreus 4.9-16

Auxílio Homilético

05/11/2006

Prédica: Hebreus 4.9-16
Leituras: Isaías 53.10-12 e Marcos 10.35-45
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 22º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/11/2006
Proclamar Libertação - Volume: XXXI

1.   Observações exegéticas

O trecho de Hebreus 4.9-16 compõe-se de três partes distintas, razão pela qual varia a delimitação da perícope prevista como subsídio de prédica nos auxílios homiléticos anteriores (cf PL XI, 171; XI, 192; XIX, 268; XXIV,
133). São elas:

1. vv. 9-11: Os versículos concluem o trecho de 4.1-11, que falam do descanso prometido ao povo de Deus. Assim como Deus mesmo descansou de todas as suas obras, assim vai acontecer também com quem nele deposita a fé. Salvação é descrita em termos de participação no “sábado” de Deus.

2. vv. 12-13: Há que se tomar cuidados, entretanto, para não cair em desobediência e perder a graça oferecida. O autor da carta acrescenta uma exortação, lembrando ser a palavra de Deus qual espada de dois gumes. Ela corta, penetra, julga. O termo-chave do subtrecho, pois, é palavra de Deus. Os vv. 12 e 13 são formulados como verdadeiro poema, sendo que o v. 12 fala da natureza da palavra divina e o v. 13 da situação das pessoas diante da mesma.

3. vv. 14-16: Começa com esses versículos o segundo grande bloco da carta. Enquanto em 1.1-4.13 o tema se havia concentrado em “Jesus Filho”, assentado à direita de Deus (1.3.), superior aos anjos e a Moisés, a atenção volta-se agora, no bloco 4.14-10.39, ao sumo sa- cerdócio de Jesus, superior ao do antigo templo. Sacerdote, pois, é agora o termo central. Em sua qualidade sacerdotal, Jesus confere graça e misericórdia.

A transição para um novo assunto, porém, não impede correlacionar organicamente as partes. Pois a promessa do descanso (vv. 9-11) deve ser mantida em obediência responsável perante a palavra de Deus (vv. 12-13), sendo o sacerdote Jesus o recurso nas fraquezas e a perspectiva de misericórdia no juízo (vv. 14-16). Vale fazer alguns destaques:

1. A fala no descanso de Deus como meta salvífica tem origem no Sl 95, citado explicitamente em 3.7-11. Diz aquele texto que Deus, em sua ira sobre a desobediência do povo, jurou: Não entrarão no meu descanso (Sl 95.11). Trata-se de palavra de juízo sobre aquela gera- ção. O autor da Carta aos Hebreus retoma o assunto e afirma que a promessa não caducou. Resta um repouso para o povo de Deus (v. 9). Mas o significado mudou. A promessa já não tem em vista aque- le descanso ao qual conduziria a tomada da terra de Canaã sob a liderança de Josué (4.8) nem mais se refere ao antigo povo de Israel. Tornou-se sinônimo do “reino de Deus” (cf 12.28) e adquiriu signifi- cado escatológico. É promessa a quem crê (4.3). Por isso mesmo ela tem cumprimento não somente no futuro. Antecipa-se na fé. Embo- ra não tenhamos aqui morada permanente e estejamos em busca daquela que está por vir (13.14), já experimentamos hoje a nova realidade (cf 12.22s). Portanto, também em Hebreus observa-se a tensão entre o “já-agora” e o “ainda-não”. No mais, a interpretação do “descanso de Deus” pelo “reino de Deus” previne contra o mal-entendido de que esse descanso é sinônimo de absoluta inatividade. O reino de Deus não instala a preguiça. Promete, isto sim, o fim da luta contra o mal e a inquietitude que esse produz.

2. Mas também o povo cristão está ameaçado de tropeçar e de ser atingido pelo juízo. É julgado pela palavra de Deus, que é crítica frente aos pensamentos e propósitos do coração. O recurso à pala- vra de Deus fecha esse primeiro bloco, assim como o abriu (1.3). A Carta aos Hebreus oferece uma “teologia da palavra”. Esta, a pala- vra de Deus, tem em Jesus Cristo não a única, mas a suprema ex- pressão (1.1). Por isso não somente julga. Ela cria, socorre, salva, põe a descoberto e penetra em todas as coisas. A metáfora da espa- da é tradicional (cf Is 11.4; Ef 6.17; Ap 1.16). A palavra de Deus separa o bem e o mal, separa até mesmo “alma e espírito”, algo intrínsecamente ligado, assim como são as juntas e a medula. Ela é “minuciosa”. Seja ressaltado que a palavra que salva e a que julga são a mesma. Não existem duas palavras de Deus. A graça de Deus, se desprezada, condena. E é o Deus juiz que perdoa. A lembrança dessa palavra, pois, é simultaneamente alerta e convite para a fé. Em nosso texto, a tônica está no aspecto do juízo.

3. O novo bloco introduz o tema do sumo sacerdócio de Jesus. O pano de fundo é a ordem sacerdotal do antigo povo de Deus. O sumo sa- cerdote era por excelência mediador. Tinha função intransferível no grande dia da expiação. A Carta aos Hebreus apregoa Jesus como inigualável sumo sacerdote, que, sacrificando-se a si mesmo, resta- belece o acesso a Deus. Jesus, a um só tempo, é sacerdote e cordeiro. É sacerdote compassivo, solidário com o ser humano, exceto no pecado. Simultaneamente, é representante de Deus que “penetrou os céus...” Tendo poder cósmico, permaneceu “humano”, não obstante. Com seu auxílio podemos tranqüilamente submeter-nos ao juízo de Deus. Pois receberemos graça e misericórdia. Isso se conservarmos firme a “confissão”, ou seja, o que afirma a fé “cristã”.


2.  Pensamentos avaliativos

Não podemos, numa meditação como esta, esgotar a riqueza teológica desse texto. Menciono a impecabilidade de Jesus, seu sumo sacerdócio, as dimensões cósmicas de seu senhorio, as implicações da “confissão cristã”, além de outros temas afins. Também a prédica deve limitar-se a poucos assuntos. Pretendo concentrar a meditação nas três palavras-chave acima destacadas.

1. A promessa do descanso. Penso na divisa No Stress em adesivos colados nos carros. Penso na carga de trabalho de quem exerce vários empregos para sobreviver. Penso no desejo “repousa em paz” nas inscrições no cemitério. Pois é! Será descanso algo reservado para depois dessa vida ou então para as “casas de repouso”, sinônimo de ancionatos? A fé cristã não pensa nesses termos. Para Jesus, o “sábado” não era dia de fazer nada. Ele pergunta: “É lícito aos sábados fazer o bem ou fazer o mal?” (Mc 3.4). Então “descansar” significa antes fazer o bem do que entregar-se ao ócio. É ouvir a palavra de Deus e estudá-la, como diz Lutero na interpretação do terceiro mandamento. Mesmo assim, descanso é também pausa, intervalo, fim de expediente. O domingo não substitui o sábado, mas o incorpora. Jesus descansou, até mesmo dormindo na popa do barco em meio à tempestade (Mc 4.38). Trabalho pode tornar-se um vício. É preciso dosar adequadamente o trabalho e o lazer. A recreação, o “relax” após a jornada de trabalho, é um benefício, uma necessidade, sim, é um direito a ser respeitado pelo poder público. E, no entanto, descanso em sentido abrangente é mais. Disso lembra o texto da prédica. É a tranquilidade que somente Deus é capaz de conceder. Por que Jesus conseguiu dormir em meio à tempestade? Ora, porque se sabia nas mãos de Deus. Quando já não mais temos preocupações, quando recuperamos a confiança e o bom ânimo, quando já não mais temos medo do fracasso, então “podemos ficar descansados”. É bem verdade que descanso assim, em sentido abrangente, não cabe neste mundo. Faz parte da perfeição por vir. É característica da “morada permanente”, que nos aguarda junto a Deus. Mas se fosse só isso, seria pouco. O evangelho possibilita-nos algo desse descanso já, em meio às lutas. Liberta de afobação, ansie- dade, angústia. Segura nos fracassos, na culpa, nas ameaças.

2. Para tanto necessitamos da palavra de Deus. Ela é “viva e eficaz” para transformar pessoas, condições de vida, mundo, tudo. Ela ajuda a distinguir o importante do irrelevante. Faz ver a realidade tal qual é: crua e nua. Toda a análise da realidade, para ser isenta de ilusões, necessita da palavra de Deus como “critério”, ou seja, como instância crítica. O mundo visto à luz do evangelho é outro do que o mundo visto a partir de interesses humanos. Isso vale também para a pessoa cristã. Se ela se julgar a si própria, costuma declarar-se inocente. Culpados são os outros. O “eixo do mal” sempre está do outro lado. O juízo da palavra de Deus, porém, não concorda. Será cortante como espada. Introduz as pessoas em penitência e ensina a clamar kyrie eleison. Da mesma forma, essa palavra julga o mundo, a sociedade. Revela o pecado, a injustiça, a perversão, o ódio. Não haverá “descanso”, nem para o mundo tampouco para o indivíduo, sem o diagnóstico feito pela palavra de Deus, encarnada em Jesus Cristo. “Responsabilidade” é palavra vazia, enquanto não entendida como prestação de contas perante o tribunal de Deus. Todas as demais instâncias que podem e devem “cobrar” responsabilidades são corruptíveis. Só Deus é capaz de fazer verdadeira “justiça”.

3. Por isso mesmo a fé em Deus é antipática. Contraria os “meus” interesses e identifica-me como pecador. Parece mais fácil ser ateu. Quem nega Deus também nega o pecado. Já não há quem julgue. Estou livre de escrúpulos éticos. Mas quem nega Deus também nega o socorro nas tribulações. Deve cultuar ilusões. Ou então as pessoas criam Deus à sua imagem, um Deus que não mais julga e só aprova. Eis a característica de ídolos: Não têm força crítica frente a seus adoradores. É verdade que a perspectiva do juízo de Deus pode provocar medo. Assim o vemos em Lutero antes da descoberta reformatória. Ele ainda não havia descoberto o sumo sacerdote que se compadece das fraquezas humanas. Cristo revela a misericórdia de Deus, e isso no próprio juízo. Resgata o ser humano da desgraça.

Somente quem assim confessa terá a coragem de enfrentar a reali- dade sem nela aplicar maquiagem. A realidade assusta-nos pela bru- talidade de que o ser humano é capaz, pelas tragédias que acontecem, pela insensatez da espécie humana. Qual a mão que nos segura? Não fosse Jesus Cristo que nos encorajou a confiar na graça de Deus, a despeito de todas as contra-evidências, este mundo seria um beco sem saída. Mas veio o “sumo sacerdote” e reaproximou- nos do altar de Deus, do “trono da graça”, devolvendo-nos a confiança e com ela a tranqüilidade. Os “tsunamis” nos horrorizam, assim como a violência endêmica no país ou as guerras com armas “inteligentes” e seres humanos estúpidos. Existem muitos absurdos. Mas o amor de Deus é mais poderoso do que as forças do mal. “Portanto, resta um repouso para o povo de Deus.”


3.Pistas para a prédica e a liturgia

Sugiro desconsiderar os textos laterais na prédica. Poderiam ser correlacionados pela cristologia: Is 53 fala do servo de Javé, Mc 10 do diácono (v. 45), Hb 4 do sumo sacerdote. Mas a exploração de todos esses aspectos acaba em superficialidade. Diante da carga teológica de cada um desses textos recomenda-se a concentração em poucos enfoques. Proponho a seqüência temática apresentada acima. Trata-se de sugestões, suscetíveis de complementação ou até mesmo de substituição.

No que diz respeito à liturgia, proponho concentrá-la no kyrie. Um mundo “cansado” clama por redenção de suas inquietitudes. A liturgia poderia articular algumas das causas do grito. Por que pedimos kyrie eleison? A proclamação do evangelho, baseada na ação do “sumo sacerdote” Jesus Cristo, vai então, como que forçosamente, conduzir ao “glória”.


Bibliografia

GENTHNER, Friedrich. O terceiro mandamento: Santificarás o dia de descanso. In: Procla- mar Libertação. Suplemento 1: Catecismo Menor. São Leopoldo: Sinodal, 1982. pp. 31-36.
HEGERMANN, Harald. Der Brief an die Hebräer. Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. V XVI, Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1988.
STROBEL, August. Der Brief an die Hebräer. Das Neue Testament Deutsch, vol. IX, Göttingen: Vandenhoeck & Rupprecht, 1975. p. 80s.
 


Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 22º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Hebreus / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 9 / Versículo Final: 16
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2005 / Volume: 31
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 20091
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