Isaías 1.10-17

Auxílio Homilético

28/02/1990

Prédica: Isaías 1.10-17
Autor: Marlon Ronald Fluck
Data Litúrgica: Dia da Penitência
Proclamar Libertação - Volume: XV


l — Observações exegéticas:

V. 10: No texto hebraico aparece um largo espaço entre os versículos 9 e 10. Esse espaço sinaliza uma parada na fala do profeta, exatamente quando afirma que nada, a não ser a misericórdia de Deus, havia protegido o povo de Israel da merecida total destruição. O profeta retoma a palavra exatamente com os mesmos termos asados no princípio de sua fala (v. 2): Ouvi. . . dai ouvidos. No entanto, se antes aquela era dirigida ao meu povo (v. 3), agora, a conversa é diretamente voltada aos KESINIM em particular e ao povo em geral. Os KESINIM são aqueles que decidem, os juízes, enfim, os homens de autoridade decisiva, os governadores, no sentido mais amplo (Delitzsch, 1954, p. 89). Eles são agora tratados como sendo os primeiros responsáveis pela situação caótica que passará a ser descrita.

Se no v. 9 nos é dito que Deus, por misericórdia, não os destruiu como Sodoma e Gomorra, agora governantes são chamados como senhores sobre Sodoma, e o povo, como cidadãos de Gomorra. Ap 11.8, certamente baseando-se nesse texto de Isaías, falará de Jerusalém como grande cidade que, espiritualmente, se chama Sodoma. Mesmo que ainda não estejam sofrendo as consequências finais disso, Deus os trata como são: quer desvendar a Sua vontade diante daqueles que dela se afastaram. A convocação a que ouçam a palavra criadora de Deus e que prestem atenção à tora é um atestado do interesse de Javé em que eles percebam a verdadeira situação em que se encontram como governantes e povo.

V. 11-15: Visando derrubar toda tentativa humana possível de defesa de reputação, a lei de Javé passa a destruir o edifício da falsa piedade. Mesmo que os israelitas tivessem possibilidade de arrolar a seu favor a satisfação externa da lei, isso não era exatamente o que agradava Javé. Diante do argumento de que os israelitas eram piedosos por que apresentavam multidão de sacrifícios de animais como meio de expiação, Javé diz constantemente: Para que propósito. . . ? (a forma do futuro dirá, denota uma ação contínua, ao mesmo tempo presente e futura). Daquilo que era oferecido como formas de espiritualidade, Javé estava cansado e não as queria mais. Para descrever isso, usa-se no texto hebraico dois verbos no perfeito, o que denota que Javé há muito tempo havia sido assim, e ainda é: Ele nunca quis algo como o que lhe está sendo apresentado (cf. Delitzsch, 1954, p. 91).

Após haver posto em questão todo sistema sacrificial da época, os aspectos se ampliam no v. 12. Quando se fala sobre o comparecimento do povo diante da face de Javé — o que tem sido interpretado como sendo uma alusão às três grandes festas prescritas pela lei como de observância obrigatória para todo judeu (comparecer diante de mim seria a expressão permanente para descrever esses eventos, cf. Delitzsch 1954, p. 91) —, este demonstra não desejar um aproximar-se dEle sem o verdadeiro espírito de devoção, pois gastar o banco e o assoalho do templo nada vale diante de Deus. As obras hipócritas não conseguem esconder de Javé os verdadeiros sentimentos. Diante da situação de contradição em que eles viviam, Javé nega inclusive a legitimidade do incenso, algo que é normalmente descrito na Bíblia como agradável a Ele. Falando sobre o incenso, temos de acrescentar que

A oferta de comida com seu aroma e sabor doce era meramente uma forma que servia como uma expressão exterior de dar graças a Deus por suas bênçãos ou o desejo ardente de suas bênçãos, que era o que realmente subia na oração. Mas, em seu caso, a forma não tinha tal significado. Não era nada a não ser a forma com a qual eles pensavam que haviam satisfeito a Deus, e, por isso, era uma abominação a Ele. (Delitzsch, 1954, p. 92)

Deus é incapaz de suportar a junção entre iniquidade e culto à sua pessoa. Todos os tipos de ajuntamentos em torno de seu nome, feitos de acordo com o espírito acima descrito, são-lhe um pesado fardo. Ele não se agradava de nada disso. Afinal, para Ele, mais importante é obedecer do que sacrificar (cf. l Sm 15.22). Acima da formalidade está o compromisso. As reuniões festivas — que Deus havia ordenado que se realizassem, cf. L v 23 — estavam agora repletas de vazio e esterilidade devido às clamorosas contradições.

No v. 14, Javé dará vazão ainda maior à sua revolta contra a hipocrisia. A própria alma de Deus — o que indica o centro do seu ser, encarado, circundado e permeado, ou personalizado pela autoconsciência (Delitzsch, 1954, p. 93) —, no mais profundo íntimo e até aos limites do seu ser, odeia as solenidades do culto judaico. Tudo, já há longo tempo, tornou-se uma grande chateação: A sua paciência estava cansada de tudo isso!!!

No v. 15, Deus dá seu juízo de valor acerca do reduto mais elevado da espiritualidade humana israelita: o recôndito da oração. Ela é um intérprete do sofrimento religioso, que intervém e medeia entre Deus e o homem, é o verdadeiro sacrifício espiritual (Delitzsch, 1954, p. 94). No entanto, Deus a vê como maldição. Ele tem vergonha de ser invocado pelos israelitas: esconde os seus olhos para não ver os israelitas em posição de oração. Tudo isso — o fato de Deus descrever a nulidade real em que se encontravam — é decorrência dos numerosos assassinatos cometidos e dos atos de violência relacionados aos mesmos. Diante de Deus, nenhuma demonstração externa ou show pode esconder a verdadeira natureza das coisas (Delitzsch, 1954. p. 95). É interessante perceber que, nessa parte do texto, as expressões são mais curtas e as palavras mais desconexas, denotando o grande grau de excitação em que se encontra o que fala (cf. Delitzsch, p. 95). Javé não pode suportar a adoração que visa o restabelecimento de uma consciência meritória. Esse anúncio profético encontra-se em consonância com a própria vocação de Isaías de Jerusalém: O Javé santo (Is 6) não pode suportar a hipocrisia. Ele enxerga o que está por debaixo da maquiagem. Não adianta tentar lavar as mãos através do ato de esticá-las em direção ao altar: delas continuará pingando o sangue dos violentados. O show de piedade não possibilitará que deixem de ser chamados por seus nomes: homicidas (v. 21).

V. 16s: Nessa porção a acusação é transformada em admoesta¬ções. A ira de Javé contra a hipocrisia transforma-se em exortações, sendo que as primeiras apontam para a remoção do mal, enquanto as demais, para a realização do seu substitutivo. Há um correlato entre essa porção e aquilo que aparece em Mq 6.6-8.

A primeira admoestação requer uma limpeza completa do que até então não havia sido assumido como sendo errado. Os dois sinónimos empregados (lavai-vos e purificai-vos) podem ser entendidos como duas faces do mesmo processo transformador. Enquanto o primeiro termo pode ser entendido como o grande ato de arrependimento da pessoa que se volta para Deus, o segundo pode ter a ver com o arrependimento diário de alguém que assim voltou-se para Deus (Delitzsch, 1954, p. 96). Em seguida, como segunda admoestação, aparece a necessidade da remoção daquilo que era intolerável para o Deus santo: tirai a maldade! Isso é complementado com o chamado, como terceira admoestação, a que eles lutem contra o mal em que se havia tornado seu pecado real, até que, total e inteiramente, ele desaparecesse (Delitzsch, 1954, p. 96): cessai de fazer o mal!

Agora, começa-se a tratar acerca do substitutivo. A quarta ad¬moestação irá colocar a base para o que será desenvolvido a seguir: Aprendei a fazer o bem! Esse aprendizado é uma arte difícil, na qual o homem não se torna bem sucedido meramente por boas intenções (Delitzsch, 1954, p. 96). A admoestação que se segue vai no sentido de que se dê atenção diligente à praticado julgamento. DARASH chama ao devotamento a algo com zelo e assiduidade. Não há nenhum outro profeta tão preocupado com os procedimentos judiciais como Isaías. A administração da justiça é vista por ele como elemento insubstituível na busca de um aprendizado real da prática do bem. Há um caráter político que perpassa as suas profecias. Os governadores da terra é que são os verdadeiros responsáveis pela falta de exercício da justiça.

A sexta admoestação chama os responsáveis peto exercício da justiça a repreender ao opressor, o que significa, nesse caso, dirigi-lo ao caminho da justiça e mantê-lo nesse caminho através de severa punição e disciplina (Delitzsch, 1954, p. 97). Para com os opressores a conduta é para ser severa.
Os primeiros sinais dessa transformação de conduta dos administradores da justiça com relação à opressão manifestou-se concretamente na forma da sétima e da oitava admoestações: a mudança de tratamento para com a causa do órfão e da viúva. Essas duas causas sempre foram, em todo Antigo Testamento, aspectos determinantes para o reconhecimento da verdadeira espiritualidade, o que, aliás, é retomado no Novo Testamento (cf. Tg 1.27). Ao lado dos estrangeiros, órfãos e viúvas sempre foram os protegidos de Javé e da Sua lei. Deus é quem os ampara constantemente (SI 146.9). Os juízes haviam sido nomeados exatamente para defender a causa do órfão e da viúva (cf. Is 1.23; 10.Is). A prática do mal fica mais do que evidente, pois,


se não há nem mesmo uma decisão ou um veredito em sua causa, essa é então a mais gritante de todas as injustiças, já que nem a forma, nem a aparência de justiça é preservada. (. . .) Assim, todas as bases para autodefesa que existiam nos corações dos acusados foram superadas, tanto positiva quanto negativamente. Eles são desmantelados e colocados em vergonha. A lei (thorah), anunciada no v. 10, havia sido pregada a eles. O profeta pôs de lado as palhas de suas obras mortas e trouxe à luz o cerne moral da lei em sua aplicação universal. (Delitzsch, 1954, p. 97)

O teor da fala de Javé irá mudar somente a partir do v. 18. Até aqui, Javé falou ao seu povo em ira. O arrependimento como passo primordial a ser tomado está em absoluta evidência.

II — Estímulos à homilética

O texto comentado acima apresenta-se estruturado em três partes:

1 — Convocação dos responsáveis (v. 10)
2 — Contradições desvendadas (v. 11-15)
3 — Convite à conversão (v. 16s)

Se é correto que o texto estudado demonstra que não pode haver combinação aceitável entre espiritualidade autêntica e descompromisso, não deveríamos nos esquivar de uma reavaliação de nossas comunidades. Toda nossa vida eclesial gira em torno de quatro momentos em que se espera um posicionamento do ser humano diante das ofertas graciosas de Deus. Penso especificamente nos quatro momentos em que se expressa um audível sim! em meio aos nossos cultos a Deus. No batismo, pais e padrinhos são desafiados a, positivamente, comprometerem-se a viver em Cristo e a ajudar o(a) batizado(a) a andar por esse mesmo caminho. Na Santa Ceia, a igreja toda é desafiada a assumir como seu o caminho da comunhão e do levar as cargas uns dos outros. Na confirmação, onde há uma resposta diante da graça imerecida ofertada desde muito antes, na cruz de Cristo. No matrimónio, quando é dado um sim! diante do chamado a colocar o novo lar a serviço da causa de Deus. No entanto, tudo isso se pode reduzir a simples ato formal.

Não nos falta hoje a mesma visão integral do evangelho e a ousadia de Lutero? Demos-lhe a palavra:

Se queremos pessoas excelentes e hábeis, tanto para o governo secular como para o espiritual, cumpre deveras não nos poupemos empenho, faina e gastos na tarefa de ensinar e educar os nossos filhos, a fim de que possam prestar serviços a Deus e ao mundo. Não devemos pensar apenas em como amontoar-lhes dinheiro e bens (. . .). Saiba, por conseguinte, cada qual que ê seu dever, sob pena de perder a graça divina, educar os seus filhos, acima de tudo, no temor e conhecimento de Deus (. ..). (Lutero, 1980, p. 421. Os grifos são meus.)

Ao mesmo tempo, relembramos o exemplo de Robert Kalley e Sarah Poulton Kalley (autora do hino Fonte da celeste vida), missionários no Brasil desde 1855, em cuja igreja todo aquele que era possuidor de escravos não tinha acesso à Santa Ceia. Em uma exortação sobre a escravidão, Robert Kalley declara:

O que Deus dá ao escravo é para ser usado por ele, em seu próprio proveito. É escravo? Ninguém tem o direito de fazê-lo escravo, rouban¬do-lhe a liberdade pessoal, negociando com uma criatura humana, como se fosse uma máquina ou um objeto qualquer! (...) Isto é um ROUBO VIOLENTO dos dons que o Criador concedeu ao pobre estrangeiro, que não é uma criatura diferente do senhor que o comprou! (...) o escravo só trabalha porque teme as ameaças de pancadas e castigos desumanos da parte de um roubador da liberdade alheia! O senhor que procede desse modo é inimigo de Cristo: não pode ser membro da igreja de Jesus, daquele Jesus que nos resgatou da maldição (Gl 3.13) e da lei do pecado da morte (Rm 8.2) e nos deu a Uberdade, fazendo-nos FILHOS DE DEUS (Rm 8.15 e 16)! (Ap. Reily, 1984, p. 102s)

Teríamos nós ousadia para aplicar o texto de Isaías na dimensão do compromisso com Deus (como em Lutero) e do compromisso social (como em Kalley)? O que significaria hoje defender o direito do órfão e da viúva diante dum sistema de pensão providenciaria como o administrado pelo INAMPS?

Enfim, coloco os aspectos acima mencionados mais como estímulos à aplicação do texto ao contexto específico em que se dará a pregação. Na verdade, a contextualização dependerá grandemente do desvendamento dos elementos perceptíveis da falta de coerência entre espiritualidade e ética em cada local específico. Mãos à obra!

III — Subsídios litúrgicos:

1. Confissão de pecados: Senhor! Agradecemos pela tua misericórdia que se renova a nosso favor cada manhã. Perdoa, Senhor, a incoerência que há em nós, a falta de uma vida que esteja completamente em tuas mãos, os sinais de um afastamento da tua vontade. Perdoa aqueles que em nosso país têm um compromisso de pôr em prática a justiça, mas que deixam de fazê-lo. Senhor, tem misericórdia da situação em que se encontra o teu povo. Tem piedade de nós, Senhor!

2. Oração de coleta: Senhor! Nós te agradecemos por podermos ouvir novamente tua Palavra. Ajuda-nos a ouvirmos aquilo que tu tens a transmitir para nossas vidas. Faça de nossa vida uma existência moldada por Jesus Cristo. Que tua Palavra produza em nós transformação e permita que o mundo veja em nós sinais de que o teu reino é reino de justiça e paz!

3. Oração final: Orar pelos órfãos e viúvas da comunidade; pedir que Deus transforme os responsáveis pelo estabelecimento da justiça em nosso país: governantes, juízes, . . .; pedir para que os cristãos sintam mais a dor do próximo e que sejam criativos na prática do amor para com essas pessoas; agradecer porque Deus nos aceita apesar do que somos.

IV — Bibliografia

- DELITZSCH, Franz. Biblical commentary on the prophecies of Isaiah. Grand Rapids, Eerdmans, 1954, v. 1. 461 p.
- JAMIESON, Roberto et alii. Comentário exegética y explicativo de Ia Bíblia. 6. ed. B. Aires, Casa Bautista de Publicaciones, 1977, t. 1. 982p.
-LUTERO, Martinho. Catecismo maior. In: Livro de concórdia; as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo/P. Alegre, Sinodal/Concórdia, 1980. p. 385-496.
- REILY, Duncan A. História documental do protestantismo no Brasil. S. Paulo, ASTE, 1984. 429 p.
- RIDDERBOS, J. Isaías. S. Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1986. 515 p.


 


Autor(a): Marlon Ronald Fluck
Âmbito: IECLB
Testamento: Antigo / Livro: Isaías / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 10 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1989 / Volume: 15
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13497
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Quem é tão forte que não necessite também de consolo do menor dos seus irmãos?
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