Isaías 35.3-7

Auxílio Homilético

24/09/2006

Prédica: Isaías 35.3-7
Leituras: Marcos 7.31-37 e Tiago 1.17-22,26-27
Autor: Enio Müller
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 24/09/2006
Proclamar Libertação - Volume: XXXI

1. Meditando o texto de prédica

Queremos fazê-lo com um olho no texto e outro na pregação. Primei- ramente, vejamos os elementos que se encontram no texto de pregação. Ele é pinçado de dentro de uma perícope maior, perfazendo todo o capítulo 35 de Isaías. O contexto amplo é de uma intensa dialética entre juízo e graça. Essa precisa ser refletida, pois é fundamental e nem sempre bem compreen- dida. Na verdade, não é só o eixo homilético fundamental da Bíblia, mas também da tradição luterana, assim como a temos em Lutero. Distinguir sem separar lei de evangelho era para Lutero o teste para saber se estudantes, futuros pregadores, estavam prontos para começar o trabalho. É como se no exame final da Faculdade de Teologia se recebesse um texto para interpretá-lo diante das pessoas, vendo se essa interpretação alcançava o intento da mensagem bíblica e da pregação cristã: articular corretamente juízo e graça.

Nesses capítulos de Isaías, como em outros, temos sugestões de como isso deve ser compreendido. Temos que entendê-las, contudo. Elas não são explicitadas como tais. É mais no arranjo geral e, especialmente, nos silêncios(!) do texto que vamos percebê-las. Por que no silêncio? É uma pergunta que tem incomodado a exegese desde sempre, mas especialmente desde o surgimento da consciência histórico-crítica. Como juízo e graça andam tão próximos, quase se misturam? Deve ser porque há dois autores, ou um autor e um ou mais redatores que trabalham e recompõem o texto. Um prega o juízo, o outro acrescenta um toque final de graça para dar um “balanço” ao texto.

Justamente o silencioso convívio de juízo e graça nos mesmos textos é que deve ser a grande questão da teologia e da pregação cristã. Nisso vai uma mensagem, não qualquer mensagem, a “mensagem da cruz”, nas palavras de Paulo (1 Co 1).

O povo israelita dessa perícope encontra-se no exílio. Entre eles e sua terra há um grande e perigoso deserto. E o sonho de um dia voltar para lá. Mas como conseguir sair? Como atravessar o deserto? As mãos estão frouxas, não só pelo medo e pelo sofrimento, mas pelo excesso de trabalho como escravos ou trabalhadores subempregados. Os joelhos vacilam. Os corações estão desalentados (vv. 3-4).

Deixemos um pouco de lado a perícope toda e concentremo-nos nos vv. 3-7, previstos para a pregação. Eles começam constatando a desesperança do povo (vv. 3, 4a). Nessa situação, recebem a palavra profética, que começa consolando: “Sejam fortes, não tenham medo”. E o fundamento para o consolo é: “Eis o Deus de vocês”. Quem ainda sente o gosto de ler o texto em hebraico capta o gesto que acompanha essas palavras, só duas em hebraico: hinnê eloheichem, “vejam: o Deus de vocês!”, apontando para ele.

É certamente ousadia de um pregador dizer isso assim e apontar para Deus. Apontar para onde exatamente? Alguma sugestão? Todos hão de lembrar o gesto de Lutero no púlpito: a Bíblia numa mão e a outra apontando para a cruz. A reprodução dessa pintura está na capa dos volumes das Obras Selecionadas de Lutero em português.

É bom meditar um pouco sobre essa ousadia. O que enxergam os olhos naquele momento? Já vimos. Mãos cansadas, joelhos trôpegos, gente desanimada e desesperançada. Apontar para onde? “Vejam: o seu Deus.” Os israelitas já estavam acostumados com o fato de que não se pode ver Deus. Mas naquela hora é isto que eles precisavam: ver um sinal de esperança.

Como Deus não pode ser visto, a mensagem segue. Fazendo o quê? Descrevendo o agir de Deus. Não se pode vê-lo, mas, quando ele passa, deixa marcas (Jo 3.8). A descrição mais imediata do agir de Deus é de juízo: vingança, retribuição. E logo de graça: salvação. Certo que aqui ainda, como muitas vezes em textos do AT, juízo e graça são distribuídos, um para umas, outro para outros. Mais adiante, o profeta Jesus vai mostrar as coisas até a raiz, e então ficará claro que juízo e graça, em termos últimos, são universais.

Mas não devemos logo ir direto para lá. Nas condições da vida no mundo, denúncias e juízos têm que ser feitos sobre pessoas ou grupos responsáveis por injustiças. Portanto, deixemos doer nos ouvidos essa sanha vingativa. Ela tem um lado que precisa ser ouvido. Precisamos indignar-nos com a injustiça, precisamos ameaçá-la com o juízo divino. Não se pode carregar um povo de sua terra, matando boa parte dele e escravizando o resto, impunemente. Há uma justiça retributiva para a qual devemos apelar aqui neste mundo.

Dito isso, podemos agora ir às raízes com Jesus e perceber o juízo de Deus também sobre nós próprios. O interessante é que a percepção desse juízo nunca é tão impressionante como quando nos é mostrada a beleza daquilo que Deus quer para todo o mundo. Diante da utopia sentimos nossa desgraça. É isso que faz o texto. Canta o que significa “ele vem e salvará vocês” (v. 4). O resto da perícope é esse canto. Canto bonito, sugestivo, cheio de belas imagens. Cegos vão enxergar, surdos vão ouvir, mancos vão pular de alegria, mudos cantarão. Essa é a primeira constatação da esperança. Ela vai mudar as pessoas. Mas logo atrás vem uma segunda. Fontes de água surgirão no deserto, riachos sobre o areião, refrescando-o para que pessoas possam caminhar sobre ele (alguém lembra como é caminhar sobre areia muito quente?). Um paraíso florescerá onde só havia deserto. Ou seja, a esperança não se limita somente às pessoas; o mundo todo deve ser mudado, o ecossistema. Pois é de pessoas de carne e osso que o texto fala, e essas só vivem no mundo.

Assim, a mensagem profética carrega-nos do inferno para o paraíso. Mas não esqueçamos: algo precisa acontecer no meio. Primeiro, o juízo radical de Deus. Pois é o mal que há no mundo todo que precisa ser cortado pela raiz. Depois, a libertação que vem de Deus. Mas será que é assim que devemos colocar a coisa? Primeiro juízo e depois graça, como se se tratasse de duas coisas separadas? Aqui estão o perigo e o desafio para a pregação evangélica: como dito acima, articular isso corretamente. Na verdade, a irrupção do juízo de Deus já é a irrupção da graça, é o seu primeiro momen- to. É, como dizia Lutero, a obra imprópria de Deus em função de sua obra própria. Um salmista anônimo, provavelmente também no exílio, reconheceu isso: “Foi-me bom ter passado pela aflição, para que aprendesse os teus decretos” (Sl 119.71).

Aqui, então, está em ordem apontar para Jesus. O juízo de que fala o texto cumpriu-se radicalmente na cruz. E ali também se manifestou radical- mente a graça. As duas no mesmo acontecimento. São dois lados do mesmo acontecimento, e quanto mais radical um, tanto mais radical também o outro.

Depois de apontar para Jesus, no entanto, na minha opinião convém apontar de novo para o que diz o nosso texto. Infelizmente, até Jesus pode ser indevidamente espiritualizado, e as igrejas de alguma forma são locais em que isso mais acontece. Portanto, cuidado com fazer tudo direito e arriscar, no fim, que os ouvintes entendam a mensagem como espiritualizante. Isso seria pôr tudo a perder. Por isso é bom voltar ao texto com sua concreticidade e mundanidade. E como o texto mesmo transborda poeticamente, não tenhamos medo de fazer o mesmo.

2. As leituras

Dá para perceber uma pretensão de conexão das leituras com o texto de prédica. O texto do evangelho, nesse caso, deve vir primeiro como aporte à interpretação. Mc 7.31-37 fala de uma cura de Jesus, também em território “gentio”, assim como o texto da prédica. Um surdo e gago é curado, nisso se cumprindo palavras de Is 35.6. As curas de Jesus, portanto, são sinal de que “Deus veio”, como o profeta tinha anunciado, e que ele trouxe a salvação anunciada.

A isso podemos acrescentar, por nossa conta, o que o evangelho como um todo diz: em Jesus se faz presente a graça de Deus justamente porque nele também se realizou o juízo. Ele próprio disse repetidas vezes que veio para trazer o juízo. No fim, ficou claro que ele próprio o assumiu sobre si na cruz.
O texto da epístola acaba concentrando-se no tema da fala, anunciado pelo profeta e curado por Jesus. A palavra curada, a boa palavra, é “dom de Deus, dádiva do alto” (Tg 1.17), é “palavra da verdade” (v. 18), dita no tempo certo (v. 19). Foi implantada em nós pela graça de Deus, como sinal de sua salvação (v. 21). É palavra que devemos ouvir sempre de novo; somente assim a palavra implantada em nós florescerá como aquele deserto de Is 35. Ao florescer, ela dá fruto, é praticada (v. 22). O fato de que foram acrescentados à leitura os vv.26-27 indica uma preocupação de que o evangelho não fique só em palavras, como já no v. 22 ele não deveria ficar só no ouvir, embora sempre começando por aí. O v. 27 mostra o que significa “praticar a palavra”. A não-contaminação com o mundo, de que se fala, não deve ser entendida num sentido de fuga do mundo. “Mundo” aqui é a vida sem Deus, com tudo o que a acompanha.

3. Sugestões para o culto

Pressupondo a liturgia normal, sugiro algumas pequenas coisas:

*A confissão de pecado pode fazer referência à nossa situação de desamparo, como em Is 35.3-4a. Isso pode ser reforçado numa oração de encerramento da prédica.

* Por que não pensar numa decoração que lembre o transbordamento poético de Is 35.5-7? São imagens vivas, com impacto direto sobre o inconsciente e que fazem pensar.

* Há hinos muito sugestivos para a nossa temática, como o nº 32 de “O Povo Canta”.

* Se houver celebração da Eucaristia, o que sempre é aconselhável, alguma coisa com água poderia entrar em cena.

 


Autor(a): Enio Müller
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 16º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Isaías / Capitulo: 35 / Versículo Inicial: 3 / Versículo Final: 7
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2005 / Volume: 31
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 23669
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