Isaías 42.1-9

Auxílio Homilético

09/01/2011

Prédica: Isaías 42.1-9
Leituras: Mateus 3.13-17 e Atos 10.34-43
Autor: Carlos A. Dreher
Data Litúrgica: 1º Domingo após Epifania (Batismo do Senhor)
Data da Pregação: 09/01/2011
Proclamar Libertação - Volume: XXXV


1. Introdução

O evangelho previsto para o 1° Domingo de Epifania, Mateus 3.13-17, contempla claramente o tema da data: o Batismo do Senhor. Importante, porém, é observar que o batismo de Jesus, realizado por João Batista, não tem a mesma conotação que o batismo que todos e todas nós recebemos. Não se trata aqui de um batismo para a remissão de pecados. É por isso que João quer dissuadir Jesus de seu pedido. A insistência de Jesus leva a que se perceba o que esse batismo realmente representa: trata-se de sua unção como Filho de Deus, em quem o Pai se compraz (v. 17). Aqui, o tema da eleição de Jesus torna-se central. O Espírito de Deus está sobre ele (v. 16).

Esse tema da eleição/unção está também presente em Isaías 42.1-9, clara- mente já no primeiro versículo, e retomado no v. 6: “Eis aqui o meu servo, o meu escolhido, em quem a minha alma se compraz” (v. 1); “Eu te chamei...” (v. 6). Embora com a variação Servo-escolhido/Filho, Mateus 3.17 é uma clara referência a Isaías 42.1.

Essa referência também está presente em Atos 10.34-43, ao referir-se à unção de Jesus (v. 38). Contudo, há mais um ponto de contato entre essa passa- gem e o texto de Isaías: trata-se da abertura para os gentios (Is 42.2,6), que é o tema de abertura da passagem de Atos. Diante do chamado de Cornélio, Pedro expressa que Deus não faz acepção de pessoas (v. 34), claramente uma referência aos mesmos gentios.

Estamos, pois, em companhia de duas ênfases-chave nesse domingo: a eleição e o envio a todas as pessoas, sem acepção.

2. Texto

A passagem faz parte do Segundo Isaías (Is 40-55), que atuou por volta de 550-540 a.C. entre os exilados na Babilônia. O recorte contém o primeiro dos Cânticos do Servo de YHWH, encontrados em Isaías 42.1-4(5-9); 49.1-6(7-13); 50.4-9(10s); 52.13-53.12. Pelo conteúdo dos dois últimos, também são conhecidos como Cânticos do Servo Sofredor.

Embora integrem o Livro do Segundo Isaías, os cânticos apresentam peculiaridades que os colocam em certo isolamento e lhes conferem um caráter enigmático. Questões envolvendo a figura do Servo não encontram respostas unânimes. Quem é o Servo? O próprio profeta? Um “novo Moisés”? O rei persa Ciro (cf. Is 45 1)? Ou é, em termos coletivos, o povo exilado? Ou um pequeno grupo em meio a ele, mas especialmente fiel a Javé?

Essa última hipótese é assumida por Carlos Mesters em seu livro “A mis- são do povo que sofre” (1981). É também a que mais me atrai pessoalmente.
Contudo, é preciso assumir que não sabemos quem foi o Servo. O Novo Testamento relaciona-o a Jesus, como se vê no evangelho desse domingo. Também essa interpretação cristológica, porém, não pode ser assumida como a verdade em termos científicos, sob pena maior de nos indispormos com nossos irmãos judeus, a quem, na verdade, a Bíblia Hebraica pertence em primeiro lugar. Mais importante do que descobrir a identidade do Servo certamente será buscar compreender sua missão. É nisso que me empenho a seguir.

Observando o recorte proposto, percebo que Isaías 42.1-9 não é uma única perícope. Os v. 1-4 são uma unidade fechada. A apresentação do Servo e o anúncio de sua missão estão concluídos no v. 4. A pesquisa, no geral, assume apenas os v. 1-4 como o primeiro cântico do Servo de YHWH.

O v. 5 é um novo início, com a fórmula introdutória “Assim diz Deus YHWH”. O epíteto divino também inicia os v. 6 e 8, o que amarra o conjunto. Os v. 5-8, evidentemente, aludem ao conteúdo de v. 1-4, mas já não mencionam explicitamente o Servo. Em boa parte, linguagem e conteúdo lembram o Terceiro Isaías (compare Is 42.7 com Is 61.1s).

O v. 9 não parece fazer parte desse segundo conjunto. Não tem relação clara com o anterior. Soa um tanto fragmentário e deixa aberta a pergunta por quem é esse “vós” ao qual se dirige.

A primeira unidade (v. 1-4) não define o sujeito que fala. Evidentemente, trata-se de Deus, que apresenta o Servo em duas afirmações paralelas: ele é meu Servo, o que significa que sua missão lhe é conferida por Deus. Deus o sustém, isto é, guarda-o e dá-lhe sua força, seu poder. Essa primeira apresentação é repetida com outras palavras: o Servo é o meu escolhido. Deus agrada-se dessa sua escolha. A sustentação do Servo é também repetida, agora com a formulação pus sobre ele o meu Espírito. A expressão lembra a convocação dos líderes carismáticos do Livro de Juízes. O Espírito de Deus apossa-se deles (cf. p. ex. Jz 6.34; 11.29).

A missão do Servo, porém, não é derrotar inimigos. Ao contrário, trata-se de promulgar o direito de Deus. Sua tarefa é anunciar a lei de Deus, certamente a
lei do amor e da solidariedade, decorrentes do amor divino pelos mais fracos. Para quem deve fazê-lo? Justamente para os gentios, isto é, os povos que não creem em YHWH. Não se trata, pois, de liquidar com o diferente, nem de convertê-lo. Trata-se de ajudá-lo a ser melhor. O Servo tem outra “guerra santa” para travar.

Por isso não clama, nem grita, nem faz ouvir a sua voz na praça (v. 2). Não há alarido nem alarde. Sua missão é silenciosa. Sua missão não é brutal. Não se
trata de esmagar a cana que já está quebrada, nem de apagar o pavio que apenas ainda fumega (v. 3). O direito de Deus, a sua justiça, nada tem a ver com liquidar, arrasar, destruir. Tem a ver com cuidar daquilo que já está fragilizado, com erguer do chão quem já está caído. Tem a ver com devolver as forças, restabelecer a cana quebrada, avivar o restinho de chama que ainda há no pavio.

Não é, porém, tarefa fácil. O Servo pode desanimar, pode até quebrar-se (cf. Is 50.4-9; 52.13-53.12). Porém a promessa de Deus é que ele não desanimará nem se quebrará até que a missão esteja cumprida: o direito de Deus estará posto na terra. As “terras do mar” – certamente o mundo inteiro – guardarão a doutrina, os ensinamentos do Servo, que, de fato, não são dele: são o direito, a justiça de Deus (v. 4).

A segunda unidade basicamente repete a primeira, buscando esclarecê-la. Os v. 5 e 6 retomam v. 1, agora deixando evidente que é YHWH Deus, o Todo- Poderoso, quem ordena a missão (v. 5). O v. 6 reproduz a eleição e o comissiona- mento do Servo com a garantia de proteção. A missão é agora duplicada: o Servo será “mediador da aliança com o povo e luz para os gentios”. Povo é aqui uma referência ao próprio povo de Deus. Se o Servo deve mediar a aliança com o povo, isso significa que ela não está sendo levada a sério, ou seja, o direito não está sendo respeitado nem praticado como deveria. Não são, pois, apenas os gentios que devem aprender o direito de Deus. O próprio povo de Deus precisa reaprendê-lo.

O v. 7 interpreta em que consiste o direito de YHWH: “abrir os olhos aos cegos, tirar da prisão o cativo, e do cárcere, os que jazem em trevas”. Essa explicitação corresponde à ideia anterior de não esmagar a cana quebrada nem apagar o pavio que fumega. Os versículos finais (8 e 9) apenas ratificam o conteúdo expresso anteriormente.

Em suma, a missão do servo não consiste em lutar contra os gentios, nem em convertê-los à fé em YHWH. Trata-se de propor uma solidariedade universal com os que sofrem.

3. Reflexão

Se em Isaías 42.1-9 não é possível identificar o Servo de YHWH, no texto de Mateus 3.13-17 ele é compreendido como prenúncio de Jesus. Isso é linguagem de fé. É preciso crer que Jesus Cristo é o verdadeiro Servo de Deus. Embora Mateus escreva seu evangelho para judeus, é perfeitamente compreensível que, para muitos deles, isso continue a ser escândalo (1Co 23), bem como, para muitos gentios, continuará a ser loucura. Apenas a linguagem da fé cristã é capaz de dar esse testemunho.

A passagem de Atos 10.34-43 dá um passo a mais nessa compreensão. Pedro, um bom judeu-cristão, tem dúvidas, a partir de sua tradição de fé original, sobre a possibilidade de o evangelho também ser anunciado a gentios. “Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se de alguém de outra raça”, diz ele em Atos 10.28a. Contudo, porque já descobriu que “ao que Deus purificou não deve considerar comum” (At 10.14), pode agora testificar: “Mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo” (At 10.28b). Ele agora sabe que “Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (10.34s).

Pedro continua a falar, fazendo um resumo do evangelho de Cristo (36-43). E ainda fala quando o Espírito Santo “caiu sobre todos os que ouviam a palavra” (v. 44) Os “fiéis que eram da circuncisão [...] admiraram-se, porque também sobre os gentios foi derramado o dom do Espírito Santo” (v. 45).

Esses dois últimos versículos já não fazem parte do texto proposto como uma das leituras para o nosso domingo. Não obstante, é fundamental que nos apercebamos dessa ação admirável: o Espírito Santo cai sobre os gentios! E cai ainda antes de eles serem batizados (v. 47s).

As reflexões em torno dessas três passagens levam a ver um desenvolvi- mento de um a outro. Ao Servo, escolhido e sustentado por Deus, é dada a missão de promulgar o direito de YHWH aos gentios, mas também em meio ao próprio povo de Deus. Jesus recebe essa tarefa e a cumpre. Também ele promulga o direi- to de YHWH, não só em meio ao povo de Deus, mas também aos gentios, embora pareça ter hesitado a princípio, como no caso da mulher cananeia (Mt 15.21-28; Mc 7.24-30). Por outro lado, vai ao encontro do pedido do centurião de Cafarnaum (Mt 8.5-13; Lc 7.1-10).

Jesus atribui a seus discípulos a missão. Devem ir por todo o mundo, fazendo novos discípulos (Mt 28.18-20; Mc 16.15-18; Lc 24.44-49). Para Pedro, esse “ir por todo mundo” parece difícil, a não ser que o mundo todo se torne prosélito do judaísmo e depois se converta à fé cristã. Essa será a razão de sua briga com Paulo. É nesse sentido que a passagem de Atos 10 surpreende. Deus não faz acepção de pessoas, e o Espírito Santo cai também sobre os gentios, independente de já pertencerem ou não à comunidade.

O passo seguinte nesse desenvolvimento é a igreja. Mais um passo adiante, e então estamos nós, descendentes de gentios convertidos. Agora nós somos chamados a ser os servos de Deus. E a missão continua a mesma: promulgar o direito de Deus a todas as pessoas, membros ou não da igreja, crentes ou não crentes. Nem cá nem lá, Deus quer canas quebradas e pavios fumegantes. É nossa a mis- são de restaurar a cana e a chama. Todas as canas e chamas, pois esse é o direito promulgado por Deus.

Penso que a prédica deverá atender esses dois passos. O primeiro será de- monstrar o desenvolvimento acima mencionado: o Servo de YHWH, o Servo Jesus, os discípulos enquanto servos, a igreja de Jesus Cristo, incluindo a nós. Nesse último aspecto do desenvolvimento, seria oportuno lembrar os conceitos de igreja visível e igreja invisível: a primeira enquanto massa e estrutura; a segunda enquanto grupo fiel à missão, ainda que pequeno. Nossa fé nos fala que onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome, ele estará no meio deles. Valeria a pena apontar aqui para algumas situações em que tais pequenos grupos fiéis atuaram na história. Lembro aqui apenas a Igreja Confessante na Alemanha nazista com sua iniciativa de defender, esconder e ajudar irmãos judeus a se refugiar. Não eram da mesma fé, mas o direito de Deus, naquele momento, valia mais para eles do que para quaisquer outros.
O segundo passo está na ênfase na missão recebida pelo Servo, por Jesus, pelos discípulos e por nós: promulgar o direito de Deus dentro e fora de seu povo, restaurando canas quebradas e pavios fumegantes, onde quer que estejam e quem quer que sejam.

4. Imagens para a prédica

A primeira imagem que me vem à mente é negativa. O fato ocorreu na se- mana da Páscoa, pouco antes da Copa do Mundo, momento em que escrevo. Foi noticiado em diversos jornais. Tomo aqui a versão da Folha de São Paulo:

Jogadores do Santos se recusam a participar de ação beneficente por motivo religioso.

O que era para ser um gesto de caridade virou uma saia justa para os meninos da Vila. Trinta e quatro pessoas, incluindo crianças e adolescentes, a maioria com paralisia cerebral, aguardavam na quinta-feira, 1º de abril, a chegada do elenco santista, que faria a doação de ovos de Páscoa no Lar Espírita Mensageiros da Luz, em Santos.

Ocorre que boa parte dos atletas – incluindo os mais badalados e aguardados, como Neymar, Robinho e Ganso – não saiu do ônibus. O aparente motivo do levante foi religioso: a instituição beneficente segue a doutrina espírita.

Ao lado dessa triste imagem “evangélica”, lembro de outros personagens bem conhecidos na história: um não-cristão, Mahatma Ghandi; outro cristão, Martin Luther King Jr. O primeiro, independentemente de sua casta, colocou-se pacificamente ao lado de todos os indianos em busca de independência, a come- çar pelo direito ao sal. O segundo, evangélico de fato, colocou-se ao lado de todos os negros norte-americanos, fossem ou não cristãos, na luta pacífica por seus direitos. Refizeram, ambos, canas quebradas e pavios fumegantes.

5. Subsídios litúrgicos

O tema do culto nesse 1º Domingo após Epifania é a missão para dentro e para fora do povo de Deus. Essa missão, dada originalmente ao Servo, a Jesus e aos discípulos, agora compete a nós. Não é uma missão catequizadora ou proselitista. Trata-se de promulgar o direito de Deus, especialmente às canas quebradas e aos pavios fumegantes. A partir disso, sugiro utilizar Isaías 42.3 como versículo de introito.

A confissão de pecados e a oração de coleta deveriam refletir a temática: a primeira poderia dar ênfase a nossas omissões, nossos preconceitos em relação aos descrentes ou (muito) diferentes na fé e a nossos receios diante da missão. A segunda pode ater-se ao fortalecimento que recebemos de Deus para a missão, enfatizando a escolha que ele faz por nós e a sustentação que nos promete.

A oração de intercessão fará bem em lembrar as canas quebradas e os pavios fumegantes deste mundo, acentuando os casos mais próximos da comunidade, Além disso, será oportuno orar por aquelas pessoas que se dedicam à missão, bem como pedir que Deus nos encoraje a imitá-las.

Importante é uma mensagem de envio ao final do culto. A missa = missão começa agora. A bênção enfatizará a promessa de Deus para esse envio.

Bibliografia

Para informações sobre o Servo de YHWH, aponto para as p. 672ss de VON RAD, G. Teologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: ASTE, Targumim,
2006.

Além disso, há dois bons auxílios homiléticos anteriores:

SCHULTZ, V. 1º Domingo após Epifania – Isaías 42.1-7; Atos 10.34-38; Mateus 3.13-17. In: SCHNEIDER, N.; DEIFELT, W. (Coords.) Proclamar Libertação,
v. 21. São Leopoldo: IEPG, Sinodal, 1995. p. 51-54; e DEIFELT, W. 1º Domingo após Epifania – Isaías 42.1-7; Atos 10.34-38; Marcos 1.4-11. In: WITT, O.
L.; DA SILVA, J. A. M. (Coords.). Proclamar Libertação, v. 25. São Leopoldo: IEPG, Sinodal, 1999. p. 80-85.
 


Autor(a): Carlos A. Dreher
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 1º Domingo após Epifania
Testamento: Antigo / Livro: Isaías / Capitulo: 42 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 9
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2010 / Volume: 35
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 18613
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