Jeremias 23.16-29

Auxílio Homilético

31/07/1977

Prédica: Jeremias 23.16-29
Autor: Klaus van der Grijp
Data Litúrgica: 8º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 31/07/1977
Proclamar Libertação - Volume: II

 

l - Considerações exegéticas


O contexto da perícope Jr 23.16-29 é constituído pelos capítulos 21-25. A maioria das profecias contidas nestes capítulos foi proferida quando Zedequias era rei de Judá (597-587 a.C.). Eram anos de humilhação nacional. Em 605 as hostes de Nabucodonosor tinham derrotado as do Faraó-Neco (Jr 46.2) , e na área da Síria- Palestina a supremacia egípcia fora substituída pela da Babilônia. O território de Judá fora penosamente diminuído, e Zedequias era rei pela graça do soberano babilônico. Jeremias recomendava submissão ao poder estrangeiro, porque via nele o instrumento de Javé, e em Nabucodonosor, o servo de Deus (27.6). Na opinião dele, Israel estava recebendo o castigo merecido pelos seus pecados, e devia humilhar-se diante dos juízos de Deus. Mas havia outros que pensavam diferente. Julgavam que Javé, independente do comportamento do povo, se identificaria com a sua causa nacional. E nesta confiança eles incitaram Zedequias a revoltar-se contra a Babilônia. Revestiam suas opiniões de uma roupagem religiosa. O Senhor disse: Paz tereis... Não vira mal sobre vós (23.17). Diante de uma mensagem tão otimista, é compreensível que Jeremias se tornasse impopular (37.11-16). E' verdade que o rei ainda o consultava de vez em quando.Mas fazia-o em secreto, receando a opinião pública (37.17-21; 38.14-27), e acabou cedendo as instâncias da maioria. Sua Insurreição contra Nabucodonosor ia provocar, em 589, uma expedição punitiva daquele monarca (2 Rs 25.1), com o conhecido desenlace fatal.

Na nossa perícope assistimos à luta de Jeremias contra a atuação daqueles que, em nome de Javé, transmitiam ao povo uma segurança vã. Antes (23.9-15) ele censurou o comportamento imoral desses pseudo-profetas; agora critica-lhes a pregação. Jeremias não sugere que os seus adversários sejam impostores conscientes. Alguns deles, sem dúvida alguma, eram de boa fé; temos aí o exemplo de Hananias em Jr 28. As suas palavras são mentiras (vv.25-26) no sentido objetivo, não segundo a intenção subjetiva daqueles que falam. A crítica de Jeremias dirige-se contra a ingenuidade com que os pseudo-profetas confundiam suas fantasias com a Palavra revelada do Senhor. Um verdadeiro profeta não confia nas visões do seu coração (v. 16) nem nos sonhos que ele sonhou (v. 25), mas ouve a Palavra enquanto ele está no conselho do Senhor (vv. 18; 22). Parece temeridade afirmar que um ser humano tem acesso ao conselho do Senhor, e as perguntas do v. 18 quase poderiam ser interpretadas como retóricas, tendo resposta negativa. Todavia o v.22, e também uma passagem como Am 3,7, esclarecem que tão alto privilégio é concedido ao profeta. Se os adversários de Jeremias estivessem atentos à Palavra do Senhor, compreenderiam que ela anuncia o julgamento aos perversos, exortando-os a voltarem do seu mau caminho (vv. 19-20; 22). A exclamação eis a tempestade do Senhor poderia significar que o profeta reconhece já os sinais da ira divina na situação política do momento. O erro dos falsos profetas é que eles reclamam Deus para suas conveniências particulares, esquecendo que ele é, antes de mais nada, o Deus santo, soberano, universal. No texto masorético, o v. 23 diz literalmente: Acaso sou um Deus de perto, diz o Senhor, e não de longe? A intenção dessas palavras fica mais clara se não intercalamos o apenas... também que consta na versão de Ferreira de Almeida. Deus, que conhece os esconderijos da alma humana, sabe onde nasceram aquelas profecias sonhadas que enganam o povo (vv. 25-27), substituindo o trigo da Palavra pela palha das invenções próprias (v.28). A verdadeira Palavra do Senhor - é dito aqui de novo - inclui a purificação e o julgamento: ela ë fogo, é martelo que esmiúça a penha (v.29).


II - As visões do coração

Aplicar a perícope Jr 23, 16-29 ã nossa situação parece uma tarefa tão importante quanto difícil. Ela é importante, porque a nossa sociedade caracteriza-se pelo pluralismo religioso, havendo nela vozes proféticas muito variadas e até contraditórias. Nem todas elas podem ser profecia autentica: algumas, a maioria talvez, devem ser desmascaradas como falsas. Mas como fazer isso? Aí está a dificuldade! Quem é dono da verdade no mercado livre das ideias? Todos usam uma linguagem de cunho ortodoxo, como aqueles contemporâneos de Jeremias que falavam nas promessas do Senhor e na sua fidelidade ao povo eleito. Todos também reclamam para si a autoridade divina. A afirmação o Senhor disse de uns opõe-se ao o Senhor disse de outros. Quem pode dizer com certeza que esteve no conselho do Senhor? O único critério, que nos é dado para distinguir a falsa profecia da verdadeira, é a sua confiança não motivada. Esses profetas anunciam a paz aos que desprezam Deus, e não exortam o povo ã conversão. Eles usam o nome de Deus para tranquilizar o povo numa hora de angústia nacional, para fazer-lhe ouvir aquilo que o povo deseja ouvir nesse momento. Talvez possamos dizer: os profetas fazem ouvir ao povo o que eles mesmos desejam ouvir. Daí a objeção do v. 16: eles falam as visões do seu coração, não o que vem da boca do Senhor.

Não é essa uma situação bem conhecida nos nossos meios? É a religião a serviço das momentâneas necessidades humanas, a religião ã qual a gente recorre para ganhar uma sensação de bem-estar, talvez para escapar de um impasse da vida ou dos aborrecimentos do dia-a-dia. É a religião que as pessoas consomem nas quantias que elas julgam convenientes. As igrejas servem-lhes de posto de serviço,onde elas vêm abastecer-se quando há necessidade. Mas não é essa a função que a Palavra do Senhor quer desempenhar na nossa vida. A Palavra do Senhor nunca serve de escape para os nossos impasses. Ao contrário, ela nos mostra a nossa responsabilidade para com o aqui-e-agora, revela-nos as nossas falhas e chama-nos ao arrependimento. A Palavra de Deus não aparece como produto dos nossos sonhos, como visão do coração. Esse é o mal-entendido daqueles que julgam ter um Deus de perto, um Deus que vem nos confirmar nas nossas esperanças e nos nossos ideais. O Deus de longe é um Deus cuja Palavra vem antes para nos incomodar. Ele é tempestade, é fogo, é martelo. Ele nos faz duvidar sistematicamente de tudo o que é nosso: esperanças, ideais, realizações, certezas, para que aprendamos a contentar-nos com o que Ele quer ser para nós. Ele é a trama que, verticalmente, se insere na urdidura da nossa vida, para lhe dar um tipo de firmeza que a urdidura, na sua horizontalidade, nunca alcançaria. Ele é um Deus de longe, do alto, diferente de tudo o que nós sonhávamos.


III – Eis a tempestade do Senhor!

Tempestade do Senhor é a interpretação que Jeremias dá à situação angustiante do reino de Judá naquela conjuntura política. Talvez seja útil sublinhar que a dimensão política é, desde o começo, inerente a sua profecia, para não incorrermos no erro de uma espiritualização prematura, ou naquele outro erro que seria distinguir entre uma essência espiritual da mensagem e as decorrências políticas da mesma. A realidade humana é uma e indivisa. Quais são as situações angustiantes que hoje inquietam o nosso povo? Elas não são difíceis de identificar. Os que desprezam o Senhor são os mesmos que, na nossa sociedade, desprezam suas criaturas, e os que andam na dureza do seu coração são os mesmos que hoje seguem a linha dura de uma economia de exploração. Sobretudo a situação de humilhante dependência com respeito a potências estrangeiras é fácil de transferir do Judá de Zedequias para a América Latina de hoje. Há situações no nível local ou regional que o pregador poderá interpretar nesse mesmo sentido: Eis a tempestade do Senhor!

Atrevemo-nos a dar esse nome aos males que nos cercam? Geralmente, não. Há diversas maneiras para contornar semelhante interpretação. Uma é a do otimismo eufórico. Somos um país que vai para frente. Reconhecemos as nossas imperfeições, mas em comparação com outros países do continente elas não são tão graves. Muitos problemas estão em vias de solução. A economia continua crescendo, e potencialmente toda a população poderá integrar-se nesse processo. No fundo, apenas é pobre quem quer. Se a Igreja se descuida um pouco, a sua pregação é absorvida por esta visão da realidade nacional. O papel que a doutrina política oficial lhe adjudica é o de ex-pressão psicossocial do poder nacional, junto com a Família, a Escola e outras instituições. Ela faz parte do sistema, sendo convidada a pregar: Paz tereis, não virá mal sobre vós. Nesta situação a Igreja terá a ingrata tarefa de pregar uma mensagem que não expresse as visões do coração. Em vez de pregar a paz, a sua missão será pôr o dedo na ferida e fazer o povo voltar do seu mau caminho.

Mas ainda há outra maneira para contornar a tempestade do Senhor. Ela consiste em reconhecer os males da nossa sociedade, explicando-os, porém, exclusivamente como má-vontade de cima para baixo. Os opressores são maus, mas acreditamos firmemente na bondade dos oprimidos. Se alguma coisa esta errada no Brasil, é porque o governo não persegue os verdadeiros interesses do povo. Tudo o que nasce do povo é bom, começando pela religiosidade popular e continuando até a sua aspiração de derrubar as estruturas opressivas. A libertação em todos os sentidos vem a partir do povo. Teologia cristã é comparável com a maiêutica de Sócrates: ela ajuda as verdades salvíficas a saírem do útero que ainda as escondia. Ora, quem prega nesse sentido, no fundo obscurece também aquela mensagem do juízo que é parte integrante do Evangelho. Mesmo reconhecendo a realidade das forças inimigas, ele diz ao povo: Paz tereis, não virá mal sobre vós. Ignora o fato de que o pecado penetrou em toda criatura, rico e pobre, senhor e dependente, e que a libertação no sentido integral não é uma potencialidade imanente da nossa convivência humana. Quem realmente prega o Evangelho ao povo, terá que abrir-lhe os o1hos diante da tempestade do Senhor, diante dos sinais da ira divina, que não se desvia até executar e cumprir os seus desígnios, diante daquele fogo que queima e purifica, diante do martelo que esmiúça o rochedo da nossa própria religiosidade.

IV - O Deus de longe

A verdadeira profecia é difícil de encontrar. Quem é o pregador que, na situação em que estamos, se atreve a dizer que a sua palavra vem da boca do Senhor? Constantemente somos tentados a confundir os nossos sonhos com a voz da profecia. Portanto, o pregador fará bem em não identificar-se apressadamente com Jeremias, nem a sua pregação com a profecia correta. É característica da Palavra de Deus que ela ultrapassa todas as constatações humanas, até as mais ponderadas. Ela nunca é fruto dos nossos pensamentos. Ela vem até nós de longe, entrando na nossa existência como ''Palavra estranha, imprevista, perturbadora Essa é a Palavra que se tornou carne em Jesus Cristo. No ato da encarnação, a Palavra sondou o mistério abismal do pecado. Na cruz de Cristo tornou-se manifesta a ira de Deus sobre o pecado, mas também o amor com o qual Ele busca o homem perdido. Sem aquela ira não há amor, não há salvação. A proximidade salvadora de Deus consiste justamente em que Ele vem até nós de longe. A sua ira nos compele ao arrependimento e à condição, obriga-nos a abandonar as visões do nosso coração e a esperar somente n'Ele. Ouvindo essa Palavra, seremos capazes de enfrentar, como cristãos, a complicada situação em que o nosso povo se encontra.

Poderemos, sem subestimar de modo algum os males que o estão fustigando, falar-lhe palavras de consolação. Em solidariedade com os que sofrem, acompanharemos toda iniciativa do governo, ou de outras instâncias, que visa aliviar-lhe o sofrimento. Analisaremos as estruturas opressivas da nossa sociedade sem idealizarmos a potencialidade dos oprimidos. Aprenderemos a ver nos sinais dos tempos a tempestade do Senhor, sem adotarmos por isso uma atitude de conformismo ou de resignação. Pois sabemos que a ira de Deus se descarregou uma vez para sempre em Gólgota. Em Jesus Cristo chegou até nós o verdadeiro Profeta, aquele que esteve no conselho do Senhor e que vem nos revelar toda a vontade de Deus para conosco.


V – Bibliografia


- BREIT, Herbert. Meditação sobre Jeremias 23, 16-29. In: Calwer Predigthilfen. Stuttgart, 1964, vol . 3.
- HULST, Alexander Reinard. Meditação sobre Jeremias 23, 16-29, In: Herr, tue meine Lippen auf (ed. Georg Eichholz). Wuppertal-Barmen2, 1961, vol. 5-
- OSSWALD, E. Falsche Propheten im AT. Tübingen, 1962.
- QUELL. G. Wahre und falsche Propheten, Versuch einer lnterpretation. In: Belträge zur Förderung christlicher Theologie. Gütersloh, 1952, vol. 46/1.
- RAD, Gerhard von. Theologie des AT. München, 1960, vol. 2, pags. 203-232.
- RUDOLPH, W. Jeremia. Tübingen 1958.
- WEBER, Otto. Predigt-Meditationen. Göttingen, 1967, págs. 111-114.

-WEISER, Artur. Das Buch Jeremia. In: Das Alte Testament Deutsch. Göttingen,
1966.


 


Autor(a): Klaus van der Grijp
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 9º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Jeremias / Capitulo: 23 / Versículo Inicial: 16 / Versículo Final: 29
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1977 / Volume: 2
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13399
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