João 13.1-17,34

Auxílio Homilético

24/03/2005

Prédica: João 13.1-17,34
Leituras: Êxodo 12.1-14 e 1 Coríntios 11.23-26
Autor: Erni Drehmer
Data Litúrgica: Quinta-feira da Paixão
Data da Pregação: 24/03/2005
Proclamar Libertação - Volume: XXX

1. Considerações sobre o texto

a) O capítulo 13 é um “divisor de águas”. Até o capítulo 12, fala-se de como Deus se tornou ser humano para morar entre as pessoas. A partir do capítulo 14, fala-se de como Jesus “volta para o Pai” (que é como João lê morte e ressurreição). Até o capítulo 12, Jesus “traz Deus para junto do ser humano”, interioriza Deus no ser humano. A partir do capítulo 14, Jesus faz o caminho inverso, “levando o ser humano para junto de Deus”. Ele prepara esse caminho por meio da sua morte e ressurreição.

b) Jesus sabe desse momento (“sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai” – v. 1). Jesus sabe três coisas: Deus lhe confiou tudo nas mãos; ele veio do Pai; ele volta para o Pai.

c) Agora Jesus volta-se para os seus, iniciando os momentos e os sermões de despedida. O ponto alto de sua auto-revelação na ressurreição de Lázaro decretou sua sentença de morte por parte dos principais sacerdotes. Sua missão estava se completando. É hora de pensar nos seus. O “tudo” que Deus lhe confiou está representado, em primeiro lugar, pelos discípulos. Sabendo, pois, que em breve não vai mais estar junto a esse grupo confiado a ele por Deus, como fazer para que esses permaneçam firmes a Deus e entre si?

d) O lava-pés reveste-se, a partir dessa reflexão, de especial significado. Não se trata de simples prática exterior, de um gesto meramente simbólico para externar amor fraterno. Não se trata de um ritual carregado de simbologia, de um ato litúrgico. Também não é uma encenação na qual o senhor e seu escravo trocam temporariamente os papéis, como uma espécie de laboratório, para que cada um possa sentir a realidade do outro. O lava-pés é a concretização do “amor até o fim” (v. 1). Jesus realiza uma tarefa apenas reservada a escravos não-judeus, portanto uma tarefa que implica muita humilhação.

e) Jesus tira a veste e se cinge de um avental. A veste simboliza tudo o que o ser humano adquire como virtudes ou qualificativos. Tirando a veste, Jesus afasta tudo o que nele possa significar virtudes humanas, para lavar os pés dos discípulos. O que está para acontecer é ação de Deus, não de seres humanos. O esvaziamento total que o lava-pés exige não pode ser compreendido, nem praticado, a partir da compreensão humana. Ao mesmo tempo em que Jesus se despe de tudo o que é humano, ele se cinge (= se “amarra”, se “prende”) com o compromisso de Deus com o servir, com o gesto extremo de amar até o final. O avental representa esse cingir-se da coerência com o gesto de amor de Deus pela humanidade.

f) Pedro não compreende o que está acontecendo. Ele se nega a ter os pés lavados pelo mestre, pelo Senhor. A reação de Jesus é conseqüente: se não me deixares lavar os teus pés, não tens comunhão comigo. Quem não consegue compreender a postura de Jesus como um gesto extremo do amor de Deus pela humanidade não tem comunhão com ele, não consegue entender o verdadeiro significado do amor de Deus.

g) Diante da reação de Jesus, Pedro pula para o outro extremo: se antes não queria nada, agora quer tudo. A mente humana segue uma lógica incompatível com a “lógica” de Deus. Não consegue medir a exata dimensão do amor até o fim. Trata-se da lógica do “querer”, do “ambicionar”, de conseguir conquistar com esforço ou méritos próprios. Talvez por isso seja tão difícil para tantas pessoas em nossas comunidades, especialmente as poderosas, entenderem a graça, a dádiva. Tudo é uma questão de luta, de conquista, se preciso até usando métodos ilegais, imorais e injustos.

h) Assim também o mandamento do amor (já mencionado em parte em Lv 19.18 ) não se estabelece como lei, como regra de ouro para uma convivência responsável entre os discípulos. O evangelista acrescenta ao texto de Levíticos: “como eu vos amei”. Chave é: como Deus amou, isto é, na mesma profundidade, com a mesma intensidade, com o mesmo propósito, assim também amem vocês uns aos outros. O amor de Deus não é modelo ou padrão a ser imitado quando possível, mas ponto de partida, empurrão inicial, base para qualquer outro critério de amor. Assim, a comunhão experimentada deve ser multiplicada entre os discípulos, não como imitação, mas como princípio básico para todo e qualquer tipo de comunhão nascida pelo gesto de amor extremo, mostrado por Deus em Jesus Cristo.

i) Para Karl Barth, o conceito de servir passa a ter significado e necessidade totalmente novos no NT: a graça de Deus, que sempre agiu das alturas para a profundidade, chegou agora realmente às profundezas, pois se tornou serviço, correspondendo à meta de seu caminho (seu objetivo). A graça se transforma em serviço para a pessoa e entre as pessoas. Exatamente por isso, participar dessa graça e ser discípulo de Cristo está diretamente relacionado com a nossa disposição em servir entre as pessoas e às pessoas. Barth segue Lutero nesse pensamento, para o qual é necessário um servir diário e sempre renovado, principalmente para quem é agraciado com dádivas ou é chamado para uma função eclesiástica.

j) O lava-pés torna-se uma ação que fala, a qual quer permitir ao ouvinte descobrir por si a verdade libertadora. Um desafio para a igreja, que, muitas vezes, quer ter tudo previamente discutido, avaliado, programado. Um desafio para que a igreja descubra a força da prática comum, interpretativa, a unidade entre ação, experiência e palavra.

l) A surpresa da ação de Jesus (e o incompreensível): podemos aceitar e compreender que Deus nos ama, que supera a morte por nós, que nos eleva até ele, que nos transforma, que nos torna conhecidos como senhores e poderosos, que nos abre o caminho para o transcendente e para o louvor. Mas temos dificuldades em aceitar que Deus se torne um servo em Jesus, que ele deixe confusa a imagem divina/humana, que ele se torne vulnerável em seu amor, que seja aparentemente batido pela morte na cruz, que ele nos sirva assim como somos. Preferimos ver Deus como o poderoso a vê-lo como aquele que se torna poderoso exatamente na sua falta de poder. O Evangelho de João tem essa linha mestra (não apenas no relato do lava-pés): Deus quer ser Deus de tal forma que nos ama ao extremo. Nisso ele é o nosso Deus. Não na demonstração de força, nos acontecimentos arrebatadores e fenômenos sobrenaturais.

m) A comunhão com Jesus, criada com sua doação até a morte, liberta da necessidade de querer ter (Pedro), torna impossível apossar-se do amor. Nada maior me pode ser dado do que amor ao extremo. Não é algo que eu possa ou deva perseguir. Jesus coloca os discípulos e a comunidade no centro de sua atenção muito antes que estes dessem o primeiro passo. Torna-os merecedores de serem amados e servidos. Com isso os faz dignos de serem amados. Tornamo-nos senhores quando nos deixamos servir por Jesus.

n) O servir de Jesus permite a cada um descobrir nova compreensão de si mesmo, abre-lhe a compreensão para a comunhão com Deus. Ao mesmo tempo aponta para o próximo, de quem eu preciso e o qual precisa de mim. A partir do serviço de Jesus esse próximo é reconhecido como alguém que Jesus ama da mesma forma como a mim. Por meio do seu servir Jesus me possibilita redescobrir o próximo. Pelo servir Jesus me habilita duplamente para o amor. Nas palavras de Bultmann: “Como amados por ele, nos abre para o amor, para os que amam”. Isto não é apenas exemplo. É ação que cria uma nova situação. Assim ganha nova força e interpretação a palavra de Jesus: “que vos ameis uns aos outros como eu vos amei”.

2. A caminho da prédica

Uma boa abordagem na prédica seria olhar o lava-pés a partir de Pedro. Mas Pedro não como um personagem fictício, bíblico (por isso mesmo facilmente “deslocável” para longe da nossa realidade). Pedro é a personificação de muitos de nós ou todos nós.

Começaria com a pergunta sobre se realmente conseguimos entender o gesto de Jesus ou se ainda restam resquícios de frustração pelo poder que esperávamos que Jesus demonstrasse e não demonstrou.

Uma boa pergunta, a seguir, é se conseguimos entender a estrutura da igreja como aquela que serve da forma como Jesus serviu ou se essa estrutura ainda está por demais comprometida com o poder, a força, a imponência dos seus prédios ou sua conta bancária.

A igreja e seus membros não aprenderão pelo Ensino Confirmatório, pela oração ou pelo conhecimento dos documentos normativos o verdadeiro sentido de serviço. Esse aprendizado se dá, antes de mais nada, quando nos deixamos presentear com o serviço de Deus.

Encerraria a prédica apontando para formas concretas de deixar que Deus transforme nossos conceitos de serviço: revisão do conceito autoridade e de como se exerce a mesma, começando na comunidade e chegando aos poderes públicos; revisão do que significa ser igreja presente no contexto social e político (não para tirar vantagem ao lado do poder, mas ser ferramenta de transformação de estruturas); revisão do uso do dinheiro na igreja (não mais um instrumento de ostentação, mas de um meio para a capacitação do testemunho).

3. Auxílios litúrgicos

Confissão de pecados: Deus de amor infinito. Ainda não compreendemos o significado que tu queres dar ao servir. Por isso mesmo temos tantas barreiras entre nós para viver uma verdadeira comunhão. Apesar de já termos ouvido tantas vezes a respeito, continuamos fazendo o que tu não esperas de nós: exercemos autoridade como forma de opressão e não de serviço; estabelecemos contatos com pessoas conforme nossos interesses futuros e não para nos colocar à disposição; perguntamos pelas vantagens que podemos obter como membros da tua igreja e não perguntamos pela melhor forma de servir em gratidão ao teu amor. Tudo isso confunde, enfraquece e mina nosso convívio. Perdoa-nos por isso, ó Deus, e concede-nos a luz de teu Santo Espírito, para que diariamente busquemos a tua face para melhorar nossas atitudes e, através delas, o mundo ao nosso redor. Por Jesus Cristo, suplicamos que tenhas piedade, Senhor.

Quanto ao lava-pés: Considerando que a Quinta-Feira da Paixão é momento de celebração da Ceia do Senhor na maioria das comunidades, proponho que se motive que o gesto da paz antes da partilha seja realizado em forma de lava-pés. Para isso se teria que tomar providências prévias (material à disposição), além de sugerir que pessoas poderiam lavar os pés umas das outras enquanto esperam o momento de chegar à mesa do altar para a Ceia. Naturalmente, precisa ser entendido que esse gesto não é condição para participação na Ceia, nem imitação de Cristo, também não um “teatrinho” para deixar melhor marcado o culto na memória, mas oportunidade de experimentar um “aperitivo” do gesto que Deus faz em nossa direção na Ceia.


Bibliografia

TRACK, Joachim. Gründonnerstag. In: Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart: Calwer Verlag, 1978. p. 236-243.
LEE, Witness. Leben im Johannesevangelium. 2. ed. Stuttgart: Der Strom, 1982.
SCHULTZ, Siegfried e STÄHLIN, Gustav. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch, vol 2. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979.


 


Autor(a): Erni Drehmer
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: Quinta-feira Santa
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 13 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2004 / Volume: 30
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13304
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