João 15.1-8

Auxílio Homilético

06/05/2012

Prédica: João 15.1-8
Leituras: Atos 8.26-40 e 1 João 4.7-21
Autora: Mara Sandra Parlow
Data Litúrgica: 5º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 06/05/2012
Proclamar Libertação - Volume: XXXVI


1. Introdução

A entrada no santuário de um texto bíblico – ou de um conjunto de textos, como aqui se propõe – assemelha-se a entrar numa cave destinada à produção e ao envelhecimento controlado de bons vinhos.

Do mesmo modo que, no preparo qualificado do sumo do fruto da videira, a apreciação proveitosa da Escritura requer procedimentos especiais, como sensibilidade aguçada e algum isolamento “termoacústico” (tempos de silêncio e de reflexão...). Ou seja: assim como para constituir e conservar vinho são necessários alguns cuidados básicos, fundamentais não só para manter, mas para melhorar suas características e fazer valer o ditado “vinho, quanto mais velho melhor”, também para a composição de um estudo bíblico é necessário um adequado processo de maturação para, enfim, esse estudo tornar-se um guia homilético “encorpado”.

Nada se compara a provar um grande vinho em seu auge. Melhor ainda se a garrafa tiver sido “ninada” por seu olhar, em sua adega, por razoável temporada, guardada para uma ocasião especial, exercitando-se uma qualidade comum entre pessoas apreciadoras de vinho: a paciência. O vinho bem conservado amadurece com dignidade e cresce com o tempo. Se mal acondicionado, envelhece precocemente, chegando à decrepitude em pouco tempo.

Analogamente, tanto quanto saber contemplar vinhos, o estudo da Palavra também é uma arte: crucial arte da paciência no olhar atento, no manejo cuidadoso, na aplicação dos/de sentidos e, finalmente, no bendito ato da degustação dos escritos sagrados.

Envolvida pelo contexto e no contexto da Serra Gaúcha, onde se inserem meus fazeres pastorais atualmente, “cultivei” esse subsídio para o período litúrgico pós-Páscoa. Esse período faz parte do ciclo pascal (Quaresma, as festas pascais e o tempo até Pentecostes, inclusive), que celebra o despertar da fé e o testemunho que as discípulas e os discípulos deram do Ressuscitado.

Na experiência saborosa de imersão em uma realidade decisivamente influenciada pelo cultivo de uvas para a produção de vinhos, o estudo acentua o Evangelho de João, no qual a metáfora da parreira aponta para o amor de Deus (o Viticultor), expresso no pacto salvífico de Jesus Cristo (a Videira Verdadeira) com a pessoa crente (o ramo que produz frutos).

2. Exegese

O exercício exegético, nessa ocasião, encontra em João 15.1-8 (A videira e os ramos) o escrito que, somado aos demais (Atos 8.26-40 e 1 João 4.7-21), é texto-farol para a pregação no evento cúltico do 5º Domingo da Páscoa.

Cercado por percepções e interpretações controvertidas quanto à autenticidade da autoria, às fontes e ao formato, o Evangelho de João diferencia-se substancialmente dos sinóticos.

Muito embora sejam mormente apontadas questões formais de distinção, o fundamental contraste com os sinóticos é que João não possui tradição historicamente importante sobre Jesus. Quer dizer: não pretendendo ser um relato histórico, ocupa-se com a exposição de um ideário, qual seja o ensinamento escatológico (futurístico) em Jesus, com narrativas de oposição entre luz e trevas, verdade e mentira, do alto e de baixo etc. e com várias expressões de salvação do próprio Jesus (água da vida, pão da vida, luz do mundo, videira verdadeira).

O universo conceitual joanino caracteriza Jesus como “aquele que o Pai enviou” e que, depois, subiu ao céu. Nessas formas se diferencia, portanto, do mundo conceitual palestino-judaico de Jesus nos sinóticos.

Em João, há uma concepção da existência marcadamente dual, segundo a qual este mundo é mau e aprisiona o ser humano. Tendo perdido sua imagem divina (algo que o ser humano guarda em sua essência), o “Eu” não pode libertar-se por suas próprias forças da prisão do mundo em que se encontra. É necessário um redentor, da esfera da luz, que lhe abra o conhecimento para a compreensão de sua verdadeira natureza, possibilitando-lhe experiências de luz no presente e definitivamente, no fim, permita a volta à centelha divina da luz e à pátria celeste.

Reconheçamos, assim, em João, uma espécie de “religiosidade gnóstica”.

Contudo, é imprescindível o cuidado, na pregação, para não “azedar o sumo” reflexivo, calcando a mensagem numa perspectiva moralista de autogestão da fé. Isso porque tanto a passagem do Evangelho de João como o trecho indicado de 1 João possuem como finalidade a instrução dos membros da comunidade, iluminados na fé em Cristo. Tanto que Jesus mesmo, no texto-farol à prédica, designa a si como a verdadeira vide, separando-se de figuras de salvação que falsamente reivindicam esse título.

João, portanto, foi escrito primordialmente para confirmar e fortalecer a fé dos cristãos no verdadeiro Revelador da Graça de Deus: Jesus – a vinha, o bom pastor, o enviado.

Essas representações originais de Jesus procuram dar perfeita expressão à fé no Messias e Deus Encarnado (Verbo Encarnado), procedendo consequentemente da imagem de fé da comunidade cristã (ou da experiência de fé cristã). João representa de modo mais sistemático, mais original e mais grandioso que os demais evangelhos, não o que Jesus foi, mas o que seguidores e seguidoras têm nele.

Por essa razão, na metáfora da videira e dos ramos, a expressão “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor” (Jo 15.1) é um dito de Jesus sobre si mesmo, pois realmente era, é e sempre será o único Justo. E, por conseguinte, é possível a assertiva “Todo ramo que, estando em mim, não der fruto, ele o corta; e todo o que dá fruto limpa, para que produza mais fruto ainda” (Jo 15.2). Ou seja: Quem está em Cristo frutifica.

“Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo se não permanecer na videira; assim nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim” (Jo 15.4). Isso é natural da pessoa que crê. Se Jesus é a videira e nós, seus ramos, então não podemos, de forma alguma, sobreviver sem Cristo. “Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.5). Se algo de bom nós conseguimos fazer, é porque Cristo é bom (porque “Deus é amor”, cf. 1Jo 4.16) e sem ele nada, realmente, podemos fazer.

A pessoa cristã pode considerar-se ramo – parte da videira – por causa da salvação concedida pela graça de Deus, manifesta em Jesus Cristo. O Viticultor Maior nos “limpa”, tira as folhas velhas, poda os galhos secos, para continuarmos dando frutos. E como é que somos “limpos e cultivados”? Deus faz isso conosco pelo logos – Jesus Cristo, a Palavra encarnada –, que concede e fortalece a fé. “Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado” (Jo 15.3).

3. Meditação

Perto demais de Deus (Chico César)
Tem gente perto demais de Deus,
tem gente que não deixa Deus sozinho
e diz: Deus ilumine seu caminho,
e guarda Deus na cristaleira
(...)
Tem gente que não deixa Deus em paz,
tem gente incapaz de viver sem Deus
e o trata como um funcionário seu.
Deus me livre, Deus me guarde, Deus me faça a feira.
Cristo dentro da carteira
dez por cento rei dos reis
Cristo um conto de réis
o garçom, não a videira.

A imagem da videira e dos ramos, utilizada por Jesus, apresenta uma tensão entre aquilo que se refere à minha vontade como ramo e aquilo que é da vontade amorosa do Agricultor. Pela imagem, o ramo mesmo não poderia se desligar da Videira, mas teria de ser cortado. Então a exortação “permanecei em mim” não faz muito sentido.

Na verdade, quem permanece dá fruto, e isso parece ser da natureza da relação com a Videira Verdadeira. É algo que está além de nossa possibilidade de determinação. Não há como responsabilizar o ramo por não produzir fruto... e, portanto, nem por ser cortado.

Importante sublimar a tendência de dizer “vocês têm de permanecer para dar bons frutos e têm de dar bons frutos para não ser cortados”, substituindo-a pela ênfase de que o que torna os ramos capazes de produzir frutos é a união estreita com Jesus Cristo. Essa ligação orgânica é a chave para atingir resultados desejados. Essa ênfase coloca a possível moralina (que, diga-se de passagem, está quase explícita no próprio texto de João) num segundo plano.

A partícula se (... se não permanecer na videira; se não permanecerdes em mim, ... se guardardes os meus mandamentos etc.), no sentido do que a pessoa crente e a comunidade crente (o conjunto dos ramos) têm em Jesus Cristo, deixa de ser partícula condicional, tratando-se de partícula de coesão. (Coesão é a conexão, ligação, harmonia entre os elementos de um texto. Percebemos tal definição quando lemos um texto e verificamos que as palavras, as frases e os parágrafos estão entrelaçados, um dando continuidade ao outro. Os elementos de coesão determinam a transição de ideias entre as frases e os parágrafos.)

Por isso o sumo homilético – ou seja: a mensagem – está justamente em afirmar a ligação orgânica com a videira como chave para produzir frutos bons e abundantes.

Além disso, sirvamo-nos de uma “bela taça” de circularidade hermenêutica, proveniente da mistura do texto de João com a narrativa educativo-cristã de Atos (a educação na fé a fortalece) e com o fundamento do amor de Deus como a seiva que alimenta os ramos em 1 João 4.7s.

4. Imagens para a prédica

No rico exercício de contextualização dos pensares em torno dos textos sugeridos, visitei e interagi com quem planta uvas na região serrana.

Historicamente, nesse contexto, o plantio de videiras surge para a produção de vinho artesanal e obviamente porque o terreno e o clima se mostravam propícios. Essa produção artesanal, voltada ao consumo doméstico, logo se expandiu e começou a ter mercado fora da colônia, tornando-se a principal fonte de receita e dando origem às primeiras cantinas. Foram os vinhedos que garantiram capital a ser investido em pequenas oficinas familiares, mais tarde transformadas em indústrias.

Percebe-se, pois, que cultivar vinhas é um projeto complexo, que, não raro, consome muito tempo e tem várias etapas.

Para começo de conversa, a fim de prosperar, videiras exigem um local com boa drenagem, motivo para plantá-las em terras inclinadas e rochosas.

Mas, apesar de terrenos bem drenados, elas ainda precisam de muita água durante o primeiro tempo depois do plantio. Também necessitam de cuidados bem específicos para o crescimento saudável e para a boa produção de frutos: solo rico em nutrientes, “treinamento” para subir na direção certa, proteção contra elementos nocivos e podas atentas.

Um agricultor comentou: “Às vezes, é difícil convencer as jovens vinhas a apontar na direção certa. Tenho que movê-las muitas vezes na primeira estação para fazer com que sigam na melhor direção para crescer. Depois de ter trabalhado com elas, fica tranquilo crescer na direção certa; elas ficam mais fáceis de manter”.

O uso dessa figura da “videira e dos ramos” por Jesus e de modo recorrente na Bíblia como um todo ocorre porque, numa terra com poucas condições de agricultura, a videira – por ser um pé perene e possuir raízes longas – vive centenas de anos. Assim também é com a oliveira, que se tornou uma fonte de comércio e de alimento diferenciado; ela vive muitíssimo tempo, produz um fruto que não pode ser consumido cru, mas é bastante apreciado após sofrer fermentação ou ser espremido. Ambos os produtos sobejam nas regiões citadas pelos escritos bíblicos.

Apesar de grande parte ser região desértica, à noite, em muitos locais, o frio é terrível. Inclusive no inverno, em muitos locais, somente a videira e a oliveira conseguem crescer naqueles solos pedregosos e arenosos.

Percebe-se, a partir dos registros bíblicos, que os frutos desses cultivos podiam ser produzidos em locais distantes, porque seus produtos eram comercializados em todo o mundo antigo e, bem ou mal, em grande ou pequena quantidade, eram consumidos por todas as pessoas. Muitas vezes, era só o que os povos tinham para usar como medicamento para todas as moléstias. Vê-se, com isso, que a videira é um soberbo símbolo cultural. Componente natural de sobrevivência e de agregação entre as pessoas e povos, não sem razão foi valorizado e mencionado por Jesus, de si mesmo ou em relação à vida de fé, em mais de uma oportunidade.

Quanto à nossa reflexão, pois, pode-se utilizar toda essa potente carga metafórica para trabalhar a importância de estarmos ligados à Videira Verdadeira como conjunto de ramos que produzem bons frutos para o mundo. Sempre lembrando o absoluto vigor da própria Videira em conceder VIDA aos ramos.

A Vide Verdadeira – e não o garçom – é Jesus Cristo.

E, a partir de experiências de “poda”, de experiências vivenciais quem sabe de dor, contudo de crescimento, e de experiências dadivosas de superação, com nova “brotação”, onde nos colocamos mais “para que(s)” do que “por que(s)”, o Viticultor nos destina seu amor maior (“E nós conhecemos e cremos o amor que Deus nos tem” – 1Jo 4. 16).

5. Subsídios litúrgicos

Vozes e canções:

No contraponto à canção de Chico César, mencionada acima, a qual critica a idolatria e a fé autocentrada, pode-se utilizar, na Liturgia da Palavra, como ilustração de reverência plena ao amor de Deus, a obra musical de Gilberto Gil: “Se eu quiser falar com Deus”, lida ou ouvida na sua forma cantada:
Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil)

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar.

RAMOS: Outra significativa imagem que pode ser utilizada para ornamentar o altar são ramos de uma planta que, ao serem cortados, murcham com facilidade (cf. Proclamar Libertação 33, p. 209). Ou, também, um belo vaso com galhos de videira (com e sem folhas).

Prece (como oração do dia):

Tua graça é maravilhosa, ó Senhor,
como a semente que foi plantada um dia!
O broto da videira, a terra, a água, o sol, um dia, foram esperança
e hoje se destinam a fartar e a distribuir alegria e vida.
Frutos de teu amor, que compartilhamos como um presente da tua presença;
como um presente de paz e de unidade entre nós.
Bendize-nos, ó Senhor! Com um pedaço de pão e um pouco de vinho,
ensina-nos a repartir, a viver em comunidade e a servir, com fé
e com esperança sempre renovada. Amém.

Bibliografia

KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
BITTENCOURT, B. P. A forma dos Evangelhos e a problemática dos Sinóticos. São Paulo: Imprensa Metodista, 1969.
SOUZA, Mauro Batista (coord.). Proclamar Libertação 33: Auxílios Homiléticos. São Leopoldo: Sinodal / EST, 2008. p. 205-210.
 


Autor(a): Mara Sandra Parlow
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 5º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 15 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 8
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2011 / Volume: 36
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 25590
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