João 6.41-51

03/09/2000

Prédica: João 6.41-51
Leituras: 1 Reis 19.1-8 (9-13a) e Efésios 4.30-5.2
Autor: Júlio César Schweickardt
Data Litúrgica: 12° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/09/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Pentecostes


Introdução

Os textos previstos para este domingo nos falam de pão. O primeiro fala de um pão que alimenta a Elias que fugia; o segundo coloca na boca de Jesus que Ele é o pão, isto após a multiplicação dos pães. Falar de pão na atualidade não tem sido tão fácil, porque estamos constantemente recebendo imagens de refugiados de guerra, imagens do Nordeste e da África que mostram a fome. Mas também quase todos os dias temos no portão das nossas casas crianças e até mesmo adultos pedindo comida. A situação nos faz pensar que o pedido de pão nosso de cada dia vai se distanciando cada vez mais do desejo de novo céu e nova terra, aí que continuamos a pedir: Venha o teu Reino, Senhor. Mas o que a gente faz enquanto isto? Que tipo de pão nossas igrejas podem dar? Qual a mensagem para este domingo? Quando escutamos aquela comunidade de João colocar na boca de Jesus que Ele é o pão é porque uma situação concreta havia. Como falar de pão hoje sem cair num discurso político distante, onde se faz uma análise da conjuntura global para chegar até a comunidade local? Como nossas palavras se transformarão em pão nesse momento?

Há uma pequena história de Eduardo Galeano no Livro dos abraços que ilustra bem a tarefa daquele que se destina a alimentar espiritualmente uma comunidade. O título é A paixão de dizer e conta o seguinte:

Marcela esteve nas neves do Norte. Em Oslo, uma noite, conheceu uma mulher que canta e conta. Entre canção e canção, essa mulher conta boas histórias, e as conta espiando papei/.inhos, como quem lê a sorte de soslaio. Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos bolsos vai tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada, uma história de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornai a viver por arte da bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos c os morins; e das profundidades desta saia vão brotando as andanças c os amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo vai.1

Somos, como já me disse alguém uma vez, como vendedores de palavras que fazem uso delas como forma de ir ressuscitando e dando vida a textos e histórias há tanto tempo contadas e vividas. E nesse sentido que quero entender os textos, como um passeio da alma pelos bosques do conhecido e desconhecido.

O texto

O texto está situado dentro do contexto, da multiplicação dos pães; o tema do capítulo gira em tomo da discussão entre o pão verdadeiro e o pão que alimenta, mas não evita a morte. O texto previsto começa a partir de uma afirmação de Jesus, que faz uma alegoria do pão descido do céu, lembrando o maná no deserto. A questão difícil para os judeus era que esse filho de José estava fazendo uso de uma tradição antiga para aplicá-la a si, ou seja, não é mais o maná que desce, mas é o próprio Filho de Deus que vem para dar vida eterna. O texto começa dizendo: os judeus murmuravam, os judeus da sinagoga, assim como aqueles que estavam no deserto, reclamando da falta de pão. Podemos dizer que este murmúrio se referia a uma aplicação indevida da história sagrada, a qual se fazia a partir de um elemento novo: o cristianismo como uma nova forma de viver.

Jesus confirma e insiste na comparação com o maná no deserto, dizendo que aqueles que comeram do maná morreram, e aqueles que comerem do seu corpo terão a vida eterna. Uma forte alusão à Ceia. O corpo que se transforma em pão para a vida eterna. Mas é um pão vivo e que faz viver, um pão que viveu, mas morreu e ressuscitou. Mais adiante (v. 54) continua na ideia da Ceia, falando também do beber o sangue, colocando ainda que a carne é a verdadeira comida e o sangue a verdadeira bebida. E novamente repete no v. 58 a história do maná, e que os que o comeram já morreram e que Ele traz o pão da vida eterna. Talvez nesta oposição esteja um conflito de judeus e cristãos, um conflito que a própria comunidade estava tendo, fazendo uma releitura da tradição judaica. Onde a imagem do pão era muito forte passando para uma nova forma de entender o pão, a partir da Eucaristia. A comunidade cristã seria o caminho para essa nova vida.

A ideia do maná, num primeiro momento, é que era uma comida material, de subsistência do coipo. O sentido que Jesus dá ao pão é o de um alimento espiritual. A tradição apocalíptica usou a imagem do maná para o Messias, inclusive considerando o Messias como paralelo de Moisés em vários aspectos, inclusive na questão do maná (Dicionário internacional de teologia do NT, vol. 3, p. 447). Mas o que podemos constatar é que a comunidade, dentro de uma perspectiva apocalíptica, fazia de Jesus um alimento do espírito, mesmo que o pão fale muito forte da fome de tantos que seguem ao Mestre. A insistência do nosso texto deixa a entender que não basta o alimento físico, pois isso conduz à morte, mas é preciso que o pão chegue à alma para que Jesus seja entendido em toda a sua dimensão messiânica.

Meditação

Hegel, falando da filosofia e da ciência, diz que ' 'um povo sem metafísica era como um templo sem sacrário, um templo vazio, desabitado, destituído de si mesmo. Ou seja, um povo sem metafísica2. Os tempos modernos privilegiaram a techne, esvaziando o cosmos como uma ordem bela dada através do demiurgo que tudo faz com sentido, mas este sentido é metafísico, é em nível do espírito que habita nos seres humanos e é compartilhado com os deuses. A racionalização da vida tomou até mesmo o espaço do religioso, e nós temos parte de culpa neste processo porque nosso discurso é racional, porque o nosso aprendizado (teológico) baseia-se numa busca de cientificidade. Apenas seguimos os passos do saber ocidental que teve como carro-chefe a ciência do tipo empírico, da experimentação e da objetividade. O espírito e o subjetivo tinham que ser mortos em nome de uma causa maior: o rigor científico. Aqui não há espaço para reflexões epistemológicas, senão para observar que o nosso templo muitas vezes se encontra vazio, isto tanto no sentido literal como no sentido lingüístico, ou seja, em nível material e simbólico.

O pão é uma metáfora muito forte, pois nos convida a pensar na situação de milhões que passam fome, mas, por outro lado, a comunidade de João estava voltada mais para o tipo de pão que fosse mais longe do que o estômago, o pão que chegasse na alma. Acredito que esse pão está em falta nos nossos discursos. Ó pão que toque no coração e não fique na mente, aquele que fale para a vida de cada um. Pecamos (e aí, talvez, está um dos pecados contra o espírito) quando queremos negar o específico nosso que é o alimento do espírito. Certa vez, uma pessoa da comunidade me disse: Sinto falta do pastor que conta histórias e que se emociona a cada sermão. Precisamos resgatar o pastor e trazê-lo de volta.

Com relação ao que dizer a partir desse texto, parece que nos ajuda a desafiar as pessoas a buscarem o seu tipo de alimento espiritual. Aí não estou pensando no culto, mas no cotidiano, em como cada pessoa trabalha as questões do seu espírito. Penso em espírito no sentido mais amplo, como uma questão da subjetividade, onde posso colocar questões como a música, a arte, a poesia, a literatura, onde sem dúvida encontro elementos que me ajudam a viver a vida de uma forma bem diferente. Dessa forma, começo a valorizar as questões universais, passando a ver o ser humano como parte de um cosmos, e não olhando somente para o meu mundinho. Assim, é interessante desafiar cada um a pensar em como está alimentando a sua alma, como está colocando novos elementos para que não caia na rotina e assim acabe achando que a vida c assim mesmo, esquecendo dos valores universais e eternos.

O mito nas sociedades indígenas é que mantém viva a cultura de um povo. Tomo emprestado um mito que é contado pelo povo Kulina, e que me foi contado pelo colega Frank Tiss:

Há muito tempo, a mulher disse ao seu esposo: Vamos embora, não lemos mais nada para comer. Vamos nós dois caçar. E eles foram. Em cima de um morro, ela disse: Olha só, que lugar bonito para uma roça. Enquanto ela falava, ele estava raspando a ponta de uma flecha. Ela continuou: Esta ponta de flecha é boa. Vamos, dispare cm mim. Não há nada de comer... Nenhuma fruta da mata é boa. Eu vou virar cana-de-açúcar. banana grande, algodão, duas qualidades de inhame, batata doce... Vamos! Haverá uma roça grande. Mas eu te amo, disse o marido. Se eu flechar você, e você morrer, não voltará mais. Ela disse: Eu ressuscitarei! ... Morrerei agora, mas quando o sol se pôr, haverá bananas grandes e maduras, c amanhã o meu filho as comerá. Então vou disparar em você. E assim ele fez. Disparou, c ela gritou alto e caiu. Daí o homem chorou muito. Chorando assim, ele chegou em casa, carregando o filho... No outro dia de manhã quando foi ao roçado para ver, havia muita banana grande madura. Pegou um cacho, cortou cana-de-açúcar e voltou. Disse a todos da aldeia: Há todos os tipos de alimentos! Daí foram todos à terra cultivada por ela.

Depois de cinco dias, a esposa voltou. Quando ele, junto com o filho, foi ao roçado para chupar cana-de-açúcar, lá estava ela, cantando. Oi, voltei para este lugar onde você me matou... Vamos embora, vamos comer de novo. Então carre¬garam banana grande, a mulher quis saber: Será que você casou com a minha irmã mais nova?, mas ele respondeu: Não! E ela nem dormiu contigo?, perguntou ela, e ele confessou: Sim, quando nosso filho começava a chorar, ela morou comigo. Ela respondeu: Você está mentindo! Você se casou. Mas espera, quando voltarmos para casa, vou observar tudo. Então os dois foram chegando cm casa. Lá apareceu a outra irmã, dizendo: Irmã mais velha, você voltou? Voltei! respondeu ela. Quando foi que casou com ele? Eu não falei para que fique solteira porque eu voltaria? Mas a outra falou: E porque ele disse para mim: a tua irmã mais velha morreu. Casarei contigo. Então casei com ele. Agora nunca mais voltarei, falou a irmã mais velha, e foi embora. Então, (na roça) ela pisou em tudo, c tudo desapareceu, e ela desapareceu também, e (de novo) era apenas mato naquele lugar.

Este mito é contado para dizer que a relação com a terra é uma questão de fidelidade e de entrega; isto, ao mesmo tempo, traz o pão que alimenta. O que é interessante para nós é que dentro do universo indígena todas as coisas têm um significado mítico e mágico, as coisas todas estão relacionadas com o todo, e os espíritos estão em todos os lugares. O fato de o pai contar para o filho o mito, onde explica a origem de algo que existe agora, vem fazer com que este espaço e tempo sejam habitados por sentido e significado. A pergunta a nós: como estamos dando significado às nossas ações? Ou, em outras palavras: o pão que dá alimento hoje não é só um pão como outro qualquer, mas um pão que traz consigo toda uma visão mítica que o acompanha. Vivemos isso nos raros momentos da Ceia. Mas nos outros dias da semana, do mês e do ano?

Termino usando novamente as palavras de Galeano: Esse homem, ou mulher, esta grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios hopis, do Novo México: o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas.

Ficam os caminhos, cada um que conhece a sua comunidade faça uso do material de que dispõe. Uma coisa: não devemos deixar de estar grávidos de muita gente, para encantar e significar através do nosso discurso que é tão habitado de tantos outros dizeres e tantas outras vozes.

Notas
1 Eduardo GALEANO, O livro dos abraços, Porto Alegre : L&PM, 1991.
2 Hegel, apud Hans-Georg GADAMER, A Razão na época da Ciência, Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1983.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Júlio César Schweickardt
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 12º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 41 / Versículo Final: 51
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12828
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1Coríntios 1.30b
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