Lamentações 3.21-33

23/07/2000

Prédica: Lamentações 3.21-33
Leituras: 2 Coríntios 8.1-9,13-14 e Marcos 5.24b-34;5.21-24,35-43
Autor: Valério Guilherme Schaper
Data Litúrgica: 6° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/07/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Pentecostes


1. Consideração inicial

Este texto já foi tratado por G. Wehrmann em 1980 (PL VI, p. 269-77). Há ali considerações sobre o texto (fornia) e o contexto original. Há também abundantes considerações homiléticas. Portanto, é desnecessário repeti-las aqui. É possível, porém, trazer algumas reflexões de ordem teológica, ainda que para isso retomemos alguns elementos de caráter formal e contextual.

2. Considerações teológicas

a) Os caminhos de Sião estão de luto (...) (Lm 1.4)

29 de julho de 587 a.C.: o muro fortificado de Jerusalém é rompido e os babilônios destroem a resistência dos habitantes da cidade (Lm 2.5,7-9). A cidade é arrasada (Lm 1.3; 2.2,5) e o templo, incendiado (Lm 2.3-4,6-7; 4.1). Pessoas pertencentes à classe dominante e à nobreza (mais ou menos 4.600) foram exiladas para a Babilônia e entre elas, o rei. O livro de Lamentações inicia dizendo: Que solitária está a cidade populosa (...). (Lm 1.1.) Em Sião passeiam as raposas (Lm 5.18).

A deportação atingiu um número pequeno da população, pois a grande massa, os agricultores, permaneceu. Sem líderes políticos (Lm 1.15-16; 5.3), religiosos e sem o lugar de culto, a cidade outrora populosa passa a noite chorando sem ninguém que a console. Ninguém vem às festas, as portas estão desertas e os sacerdotes, que sobreviveram e não foram deportados, gemem. Criancinhas partiram cativas e as que ficaram, ainda lactentes, des-falecem pelas ruas, umas pedem por pão (Lm 2.11-12; 4.9) e outras serviram de alimento (Lm 4.10). As mulheres foram violentadas (Lm 5.11). A filha de Sião perdeu toda a sua formosura. É como se o céu tivesse se precipitado sobre a terra (Lm 2.1).

Os profetas não recebem mais visões (Lm 2.10). Os que ficam reúnem-se no meio das ruínas e lamentam a sorte de Sião, consumindo-se em lágrimas e derramando seu fígado, vestidos de saco e lançando pó sobre as cabeças (Lm 2.10-11). Torna-se uma prática ritual para os que ficam lamentar a sorte de Sião (Zc 7.1-2; 8.18-19). O livro de Lamentações são formulações litúrgicas dessa prática ritual (Metzger, p. 119; Bentzen, p. 211-2).

b) (...) derrama teu coração como água diante da face de lahweh (...) (Lm 2.19)

O povo lamenta (Lm 1.12, 21). Os olhos consomem-se em lágrimas (Lm 1.16; 2.11; 3.49; 4.17), as entranhas em tremores e o fígado derrama-se por terra (Lm 2.11). A catástrofe de 587 a.C. coloca o povo em profunda crise, sobretudo intelectual e religiosa. É crise de fé! A perpetuidade do reinado davídico é posta em xeque e o templo, morada de Deus, não era indestrutível. O poder de Iahweh é posto em questão. Renascem cultos a divindades antes descartadas. Nos círculos fiéis a Iahweh, urgia reorientar a reflexão para oferecer resposta às perguntas angustiantes. As lamentações, coletadas no livro de Lamentações, são expressões dessas respostas.

Conforme Westermann (p. 146-7), a lamentação tem uma forma fixa que se repete (alocução em forma de súplica introdutória, queixa, confiança em Deus, súplica e voto de agradecimento). A queixa tomada em si apresenta três aspectos fundamentais, podendo ser dirigida contra Deus, contra os homens (inimigos) e contra si mesmo. Essas três dimensões definem o ser humano em sua totalidade. Quem lamenta vê tanto seu próprio eu ameaçado quanto a sua relação com Deus e com a comunidade, sem os quais não subsiste. Ameaçado dentro dos limites de sua transitoriedade, da sua pecaminosidade e dos perigos que isso acarreta, o ser humano arrisca-se na lamentação, deixando seu coração gritar ao Senhor (Lm 2.18) ou derramando o coração como água diante de Iahweh. Cabe a Deus inclinar-se ao aflito, pois (...) se ele aflige, ele se compadece segundo sua grande bondade. (Lm 3.32.)

c) Ouve como gemo, sem ninguém que me console (Lm ].21)

Em todas as fases da história de Israel o clamor dos atribulados, dos que sofrem eleva-se a Deus. Queixar-se é constitutivo dos processos de libertação, a salvação é precedida dos gritos dos oprimidos. No entanto, a queixa que nasce da tribulação teve seu papel reduzido por ter sido identificada com a lamentação fúnebre. Porém, enquanto a lamentação fúnebre volta-se para o passado, a queixa olha para a frente, para a sobrevivência do sofredor e para o término do sofrimento. Além disso, a queixa foi identificada com um blablablá lamuriento. Nesse sentido, recebeu um cunho negativo, contrastando com uma atitude corajosa c confiante. Entretanto, para o AT, a queixa sempre esteve vinculada a prece, sendo apelo autêntico a Deus (Westermann, p. 144-5).

Os sofrimentos, a experiência das limitações pessoais e coletivas, tendem a separar de Deus, tendem a cavar mais fundo o abismo entre criador e criatura. A possibilidade de queixar-se supera essa separação. Essa queixa assenta-se sobre o direito de abrir, derramar o coração diante de Deus sem tocar a questão da culpa. A lamentação não se vincula necessariamente à confissão de pecados (Westermann, p. 148-9). Entretanto, Schmidt, p. 298, Weiser, p. 274, e Metzger, p. 125-6, estabelecem essa vinculação entre queixa e confissão de pecados para o livro de Lamentações, relacionando-o à Obra Historiográfica Deuteronomística e ao profetismo literário).

3. Considerações pastorais

a) Há dor como minha dor? (Lm 1.12)

Importa recuperar a centralidade da queixa, da lamentação em si. A queixa é expressão da totalidade autêntica do ser humano tanto em seu aspecto de queixa individual (eu) como no seu aspecto coletivo (povo), ambas voltando-se para Deus, fechando as três dimensões constitutivas do humano.

Para a prática pastoral vale considerar que toda dor é incomparável, é única, e seu pleito diante de Deus é justo e por si só já constitui momento de libertação, de cura interior e exterior. A dor externalizada em formulações individuais e/ou coletivas é parte integrante dos processos de salvação. Mas a queixa, a reclamação, a lamentação jamais pode esgotar-se em si mesma, como se se comprazesse na descrição do sofrimento. Seria uma prática masoquista, cujo sentido e prazer estariam em si mesma. Entretanto, a queixa desemboca na apelação àquele que pode mudar a situação de sofrimento. Surge, então, o passo para a profissão de fé confiante em Deus, que encerra com o agradecimento. O passo para a confiança em Deus tem de passar pela queixa autêntica, senão é consolo superficial!

b) (...) minha porção é Iahweh! Eis porque nele espero (Lm 3.24)

O texto de Lm 3.21-33 se encontra num capítulo do livro de Lamentações (cap. 3) que oscila entre formulações de queixas individuais e coletivas (Bentzen, p. 210). O eu vê-se ameaçado (Lm 3.3: só contra mim está ele volvendo e revolvendo sua mão todo o dia) e também vê ameaçada a comunidade (Lm 3.43-44). Ambas as coisas ruíram na trágica devastação de Sião. Indivíduo e comunidade constituíam-se como tais na relação com esse espaço cultual em que se dava também a experiência de Deus por excelência. Agora indivíduo e povo sentem que é tanto Deus (Lm 3.1-17,43-7) quanto os inimigos (Lm 3.48-62) que movem sua mão contra eles.

Somente Deus pode restituir a integridade do eu, do nós (comunidade) e de ambos com Ele mesmo. A queixa que se derrama diante de Deus cria lambem espaço para que frutifiquem a esperança, a lembrança da fidelidade de Deus: minha porção é Iahweh! Uma vez formulada a queixa, a confiança entrega-se a uma espera silenciosa (Lm 3.26). Essa espera é um contraponto à ousadia da queixa. Quem se queixou suporta agora em silêncio o sofrimento. O queixoso põe sua boca no pó (Lm 3.29a), entrega sua face ao que fere e se sacia de toda sorte de indignidades. No íntimo agita-se a incerteza: talvez haja esperança (Lm 3.29b). De outro lado, insinua-se uma certeza: Deus não rejeita para sempre. Se Ele nos fere e nos despedaça, Ele nos sara, nos cura. Se Ele nos aflige, Ele tem compaixão conforme sua infinita misericórdia.

c) Levanta-te, grita de noite: o direito da queixa

Numa reunião da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélica (OASE), fui surpreendido pela resistência das participantes em aceitar a linguagem insolente do salmista diante de Deus como legítimo apelo ao Deus de nossa salvação. Pareceu-lhes descabido falar com Deus num tom de queixa. A atitude corriqueira é a aceitação corajosa e confiante do sofrimento como genuinamente cristã. Essa atitude manifesta-se naqueles depoimentos de pastores que, após a visita a um doente grave, dizem que saíram confortados e consolados, pois não ouviu daquela pessoa nenhuma queixa, nenhuma lamentação. De certa forma somos cúmplices da perpetuação desse tipo de atitude ao não demonstrarmos que a queixa profunda e refletida é parte da nossa cura. É a externalização autêntica daquilo de que o íntimo está cheio.

4. Considerações homiléticas

Na verdade já há inúmeras sugestões ao longo deste texto sobre como abordar o texto bíblico rumo a uma prédica. Vale ainda acrescentar algumas reflexões:

1. É evidente que o texto previsto trata da confiança em Deus, da entrega irrestrita à misericórdia. Entretanto, a reflexão aqui desenvolvida quer frisar que a confiança não ganha seu pleno sentido se não for colocada no seu contexto amplo, que é o da queixa audaciosa. A legitimidade da queixa, da lamentação amplia o sentido da confiança. Quem não atravessa o deserto da queixa não alcança o oásis da confiança esperançosa.

2. A prédica poderia iniciar pela descrição do contexto vital dos ouvintes em nível local. Onde estão as ameaças e perigos ao eu, ao nós (à comunidade)? Onde estão os elementos que podem desintegrar a integridade do ser humano em sua tripla relação: eu, nós, Deus?

Um passo seguinte seria oferecer a queixa como meio legítimo de dar voz a essas forças de desintegração que transformam nossa vida em terra desolada, que nos tornam enlutados. Demonstrar que a queixa já é libertadora, uma vez que mobiliza Deus em nosso socorro. Não obstante, sua própria expressão já e cura interior.

3. O terceiro passo é chegar com o ouvinte à confiança esperançosa e silenciosa em Deus e seu processo profundo como descrito no ponto 3.b. Podem ser usadas aqui como contraponto de reflexão as duas passagens de Mc 5 (24b-34, 21-24a e 35-43) que tematizam dois milagres de Jesus para elaborar a questão da cura.

4. Uma sugestão para marcar ritualmente o culto é distribuir pequenos pedaços de barbante colorido e convidar a comunidade a simbolizar nessa parte uma queixa pessoal que gostaria de elevar a Deus. Em seguida convida-se a comunidade a unir os diversos barbantes e formar um círculo sem que ninguém perca seu barbante de vista. Uma vez feito o círculo, convidar para que todos orem o Credo Apostólico como uma condensação daquela confiança básica no que Deus realizou por nós e no que ele promete. Seria interessante encerrar cantando o hino de número 64 de O povo canta.

Bibliografia

BENTZEN, A. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo : ASTE, 1968. v. 2, 352 p. METZGER, Martin. História de Israel. 3. ed. São Leopoldo : Sinodal, 1981. 213 p.
SCHMIDT, Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo • Sinodal/IEPG 1994. 395 p.
WEISER, Artur. Einleitung in das Alte Testament. 6. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. 439 p.
WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1987. 205 p.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Valério Guilherme Schaper
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 6º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Lamentações de Jeremias / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 21 / Versículo Final: 33
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12823
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