Lucas 1.26-38

Auxílio Homilético

22/12/1996

Prédica: Lucas 1.26-38
Leituras: 2 Samuel 7.4-6,12,14a,16 e Romanos 16.25-27
Autor: João P. Auler
Data Litúrgica: 4º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 22/12/1996
Proclamar Libertação - Volume: XXII


1. Introdução

A perícope faz parte do bloco dos caps. l e 2 que narra a história do nascimento de João Batista e de Jesus. O material usado é exclusivo de Lucas, ou seja, não encontramos paralelos nos outros evangelhos. Provavelmente, para fazer a redação, o autor se valeu e usou, muito bem, a tradição oral (1.2) e/ou outras fontes desconhecidas.

Autores do Proclamar Libertação já abordaram esse texto por quatro vezes (PL VI; XII; XVI; XIX). Não pretendemos retomar questões anteriormente já trabalhadas. Recomendamos, dentro do possível, a sua leitura. Nossa contribuição será procurar e mostrar algumas características e elementos da realidade onde aconteceu a redação do texto e, a partir delas, buscar um sentido teológico para os nossos dias.

2. A Nova Vida

A onda não era fazer curso de inglês, alemão ou francês, era saber o grego. Desde o início da helenização na Palestina (305 a.C.) o grego tornou-se uma língua universal e, conseqüentemente, um importante veículo cultural, religioso e ideológico. Ser cidadão, conforme a crista da onda, significava aderir a este novo jeito de viver dentro de uma nova visão da ordem mundial.

2.1. Visão do Kosmos

O mundo foi criado em ordem. É imutável. Ao ser humano não cabia mudar esta ordem já estabelecida pelos deuses, mas apenas se integrar e achar o seu lugar. Na divisão do kosmos havia basicamente dois mundos: de um lado, no mundo superior, viviam os deuses e senhores, e do outro lado, no mundo inferior, os escravos/trabalhadores. A sofia (conhecimento) era reservada para quem habitava o mundo superior. Por isso era considerada espiritual. Pensar era função da cabeça, i. é, de quem tinha razão, raciocinava. Aí está uma das explicações por que Alexandre Magno (336-305 a.C.) e mais tarde Nero, impe¬rador romano, chegaram a se apresentar como deuses e exigiram adoração. Nesta visão (nova onda), importante era saber falar com eloquência, estudar, ter conhecimento, ensinar, divertir-se (praticar esportes), vender e consumir. Esse era o jeito de viver reservado para o cidadão.

O trabalho, fisicamente desgastante, era considerado secundário. Como era considerado do mundo inferior, não havia necessidade da sabedoria. Usava-se apenas o corpo (menos a cabeça). O corpo apenas sente e executa. A maior parte da população pertencia a essa classe. Incluímos aqui também as mulheres, que, tanto na sociedade judaica quanto no mundo e na visão grega, eram excluídas e marginalizadas.

A visão grega do mundo se baseava na cidade como ideal de vida humana: escolas, ginásios, lugares públicos para debates (conversas) e teatros. Diferente dessa era a visão de mundo do hebreu: mais ligada ao campo, à roça.

O Império Romano soube utilizar muito bem essa ideologia para se sustentar no poder. O Evangelho de Lucas deixa, nas entrelinhas, claras evidências de ser um posicionamento e uma reação contra essa ideologia que sacralizava o sistema de exclusão. Destaca também a importância do evangelho para não-judeus. A seguir, citaremos algumas referências:

a) A palavra cidade aparece (40 vezes) mais do que nos outros evangelhos. As referências não são boas: é símbolo do poder opressor (3.20-26); lugar onde profetas são mortos (13.24); local para onde os discípulos são enviados (10.1-12).

b) Os contrastes e conflitos sociais (16.19-21; 19.1-9), as multidões e o povo (5.15; 6.18-19) também são mencionados, bem como: pão, comida, fome, banquete (4.25; 6.21; 6.25; 14.1; 14.12-15; 15.14).

c) Em Lucas as mulheres recebem uma grande atenção. Daí explica-se o desprezo à qual eram submetidas (7.11-17; 7.36-50; 8.13; 8.43-54).

A redação do Evangelho de Lucas foi feita pela segunda geração depois de Cristo, próximo ao ano de 70 d.C., quando aconteceu a destruição de Jerusalém. A pesquisa neotestamentária não fixa nenhuma data exata. Existe, porém, consenso de que a redação aconteceu depois da redação do Evangelho de Marcos. Lucas, além de outras fontes, usa e menciona Marcos. O texto de Mc 13.14-23, retrabalhado por Lucas em 21.20, faz alusão à destruição de Jerusalém. Por isso, Lucas provavelmente foi escrito depois do ano de 70, mas próximo aos aconte-cimentos em torno da destruição.

As referências anteriormente mencionadas levam-nos a imaginar a situação e o contexto de miséria da periferia de uma cidade. Ali, junto com a exclusão, acontece a perda da dignidade e identidade.

3. Meditação

3.1. O Amor que Surpreende...

O texto inicia com o envio, por parte de Deus, de um anjo para uma cidade da Galiléia. Ali encontra-se com Maria, companheira de José. Inicia-se assim uma história de amor. Não uma história qualquer, mas a história do amor de Deus, que se revela à humanidade.

O encontro acontece. A saudação é feita da parte de Deus: O Senhor é contigo (28b). Vai ao encontro de Maria e faz-lhe um convite para a alegria: Alegra-te (28). Sugere, com isso, o bem-estar e cria o clima para o encontro. Maria é surpreendida com essa bondade. Não estava acostumada com um tratamento assim, em seu cotidiano. Mulheres não eram saudadas dessa maneira. Agora é admirada e respeitada em sua humildade. Sente-se acolhida e nas mãos de Deus, como se fosse a sua única preocupação. Está vendo e percebendo algo que lhe era proibido sentir antes: prazer, importância e satisfação pela vida. O mundo passa a ser visto a partir de outra ótica, com novos conceitos e valores.

3.2. O Amor que Perturba

Esse sentimento de Maria é bonito, mas também perturba. Ele mexe com a pessoa. Afinal, a dinâmica social é outra. Mulheres não ocupam um lugar de destaque. Maria é protagonista, agora, de uma história que propõe e inicia uma mudança profunda nessa dinâmica da sociedade. No v. 29, quando Maria está ouvindo, não se percebe mais uma pessoa passiva e submissa que apenas silencia para receber ordens e que reflete uma relação de dominação, mas alguém que é confrontada com uma nova possibilidade de vida. A perturbação é normal. O sentimento de medo é compreensível. O novo que vem de Deus não havia sido planejado. Precisa ser refletido e amadurecido.

3.3. O Amor que Faz Pensar e Desestabiliza

Pensar não era algo reservado para Maria antes. Nessa nova realidade que se iniciou e está ensaiando, ela se coloca no mesmo patamar que os sábios, doutores e senhores. Essa situação não lhe é imposta. Ela pode participar do processo, pensar, posicionar-se, calcular e prever as consequências, e decidir-se. É o exercício da libertação. Esta postura certamente desestabilizará e provocará uma desordem nessa sociedade que se mantém em cima de princípios que garantem o bem-estar de alguns pela exclusão de muitos.

Os vv. 3()ss. mostram que há um processo de aprofundamento no diálogo entre os personagens. Maria não esconde o medo que tem. O anjo lhe reforça a saudação: Achaste graça diante de Deus (v. 30). Maria quer ter consciência do desafio a ser enfrentado, pois o amor de Deus não é apenas expressão do sentimento de Deus, mas é o amor que passa pelo corpo (Deus movimento) e ganha o mundo. Maria o sabe muito bem. Está grávida. Esse amor agora vai, através dela, provocar novas relações na humanidade. É a ousadia de Deus que se manifesta na ação de Maria.

3.4. Espiritualidade — a Expressão do Amor que Olha para baixo

Maria está em estado de graça. O que sente vem de fora. Vem de Deus. Envolver-se física e espiritualmente com Deus significa tensão e confronto com a velha realidade humana com suas relações de agressão. Deus age contra a lógica humana.

Ao contrário de Deus, o mundo e as pessoas só olham para aquilo que está acima de si mesmo. Ninguém quer olhar para baixo de si, e nem quer saber do que aí se passa, pobreza, miséria, maus tratos, angústia, lamentos. Todos viram a cabeça para não ver nada.

Para com eles só se conhece uma pressa: desvencilhar-se deles rápido! Tem-se medo deles. São largados ao desamparo. Ninguém pensa em ajudá-los, em resguardar-lhes a dignidade.

Entre as pessoas não há quem, à maneira do Criador, esteja disposto a do nada fazer uma coisa. (Hermann Brandt, p. 52.)

Neste sentido a ação de Deus realmente é loucura (l Co 1.18-25). Age contra princípios humanos fechados. A experiência de Maria, inclusive, dentro de uma sociedade atrofiada em seus princípios, pode ser vista como transgressão. Mas uma transgressão com um sentido pedagógico muito grande. Faz pensar, desestabiliza, cria desordem — exatamente para provocar um crescimento e a abertura para o novo.

3.5. O Amor que É Universal

Deus, em Jesus, vai nascer dentro de uma etnia, mas não para dentro de uma etnia/costumes, leis, tradições. O nascimento vai acontecer para dentro de uma situação social, e de uma situação concreta onde pessoas são excluídas da cidadania. O amor de Deus, a partir de então, passa a ser concebido não mais de forma exclusivista ou reducionista, mas se ampliam os horizontes, ou seja: Não pode haver judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher; porque todos são um em Cristo (Gl 3.28).

O texto de Ec 1.26-38 retrata muito bem o testemunho e o exercício de uma nova espiritualidade experimentada por uma comunidade que resiste e se opõe a relações de dominação em todos os níveis.

4. O Desafio da Pregação

A pregação no 4o Domingo de Advento é um verdadeiro desafio. Nessa época, mais do que em outras, as pessoas e comunidades são envolvidas na dinâmica (ritmo) que a sociedade impõe. No mês de dezembro, todos parecem estar voltados mais para si, sua satisfação pessoal e/ou familiar que culminará logo mais no Natal desejado. Muitos são totalmente absorvidos e o desgaste pessoal é grande. Quase todos entram nessa correria. Até cultos e celebrações, em algumas regiões, sofrem esvaziamento.

O 4o Domingo de Advento, por outro lado, aponta para a proximidade do Natal. Grande parte do percurso (época de Advento) já foi percorrido e já se está entrando na reta final. As contradições já são bem visíveis e sentidas por muitos. A grande maioria da população, mais uma vez, ficou para trás. Não conseguiu realizar seu sonho. Este é o momento em que as pessoas entram em um processo de reflexão. Começam a pensar e a se perguntar: Será que a correria desta época vale a pena e faz sentido? Nesta pergunta estão implícitos a frustração e o desejo de algo diferente, com mais alegria e sentido. Chegou, portanto, o momento para se abrir e receber aquilo que vem de fora. O Advento é tempo para se preparar e receber o amor de Deus, um amor que:

— surpreende;

— perturba;

— faz pensar e desestabiliza;

— olha para baixo (expressão da espiritualidade);

— é universal.

O que descrevemos anteriormente poderá ser transformado ou usado como um esquema para a pregação. A meditação oferece ainda outras possibilidades.

5. Bibliografia

BRANDT, Hermann. Espiritualidade. São Leopoldo, Sinodal, 1978.
MOSCONI, Luis. O Evangelho segundo Lucas. Belo Horizonte, CEBI, 1991. (Palavra na Vida, 43/44).
VV. AA. Proclamar Libertação; Auxílios Homiléticos. São Leopoldo, Sinodal, 1993. v. XIX.


Autor(a): João P. Auler
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Advento
Perfil do Domingo: 4º Domingo de Advento
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 26 / Versículo Final: 38
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17457
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