Lucas 10.1-12,16

Auxílio Homilético

23/07/1995

Prédica: Lucas 10.1-12,16
Leituras: Isaías 66.10-14 e Gálatas 6.14-18
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/07/1995
Proclamar Libertação - Volume: XX

 

Lutero disse que o Evangelho deveria ser pregado publicamente, mundo afora, na rua. Pena que o tenha dito numa igreja. — S. Kierkegaard

1. Caminhando com a Bíblia

Um grupo é convidado a entrar numa canoa sem ter combinado nada sobre a viagem. Não se sabe quanta noção as pessoas têm da arte de remar. Sem um guia especializado, seguem apenas as instruções de um roteiro, um texto. Fazem observações. Ao desembarcar trocam impressões e comentários, retomam alguns momentos, falam das suas desatenções e surpresas.

Assim poderia ser descrita uma abordagem alternativa de textos bíblicos. A ideia desenvolveu-se a partir da prática de encenar histórias da Bíblia com adoles¬centes (confirmandos) e foi ensaiada pelo autor em alguns grupos de jovens, cursos de capacitação de leigos, num grupo ecuménico e num retiro de obreiros. O objetivo era promover a aplicação imediata, a transposição direta, sem antepor à ação do próprio texto mediações interpretativas e explicações exegéticas do teólo¬go. A regra dessa abordagem praxeológica é que os participantes levem a sério a compreensão primária e o sentido literal do texto. Não se exclui a bagagem que os participantes possuem, sua fé, seu conhecimento bíblico ou sua capacidade de reflexão. Mas para o início vale: deixar tudo de lado (cf. Lc 9.57ss.) e simples¬mente praticar, na rua, o que o texto diz.

Lc 10.1-16 presta-se especialmente para essa experiência vivência! com a palavra de Deus: v. l — enviar de dois em dois = formar duplas e sair andando com a Bíblia; v. 2 — orem por trabalhadores = parar e orar; v. 4 — não leveis bolsa = retornar e deixar a carteira; v. 5 = entrando numa casa, digam paz!; etc. Os resultados são impressionantes. As duplas voltam possuídas de alegria e a comunicam (v. 17, cf. a leitura do domingo, Is 66.10ss.). Diante da abundância de testemunhos e descobertas em relação ao texto, tornam-se quase dispensáveis informações exegéticas ou sugestões de atualização.

Por exemplo, durante um curso de capacitação de leigos as duplas foram enviadas para fora da igreja, situada na praça da cidadezinha. O caminho de duas mulheres levou-as para uma casa que ficava de frente para a praça. Viram uma senhora varrendo a calçada. Como estavam lendo o v. 5, tomaram ânimo r disseram-lhe: Paz seja nesta casa! Tiveram que repetir, porque a mulher não entendeu. Achou estranho aquele gesto em plena manhã de domingo. Depois seu rosto se iluminou e, perguntou quem eram. Convidou-as para entrar. Seu marido estava doente há meses. Foi natural que orassem com ele. Durante a conversa ao lado da cama, as mulheres souberam que o casal nunca fora visitado por alguém daquela igreja à sua frente, cujos sinos ouvia soar diariamente. O relato dessa caminhada bíblica suscitou um vivo debate, inclusive a associação com outros textos. Importa se o casal é membro da comunidade? Onde fica a missão? A omissão acontece por não sabermos o quanto nós próprios somos enriquecidos quando fazemos uma visita?

Eliminando-se a distância, muitas vezes imaginada, entre texto e vida, sopra um vento de atualidade sobre a palavra viva e libertadora. Com isso não se assume uma visão fundamentalista da Escritura, na qual o que não se entende deve ser aceito por fé. Nem se parte da crítica liberal, que analisa e discute diversas interpretações, aceitando a que convence ou convém. Ambas as abordagens tendem a ficar no exercício teórico. Mas o crescimento na fé se dá pela prática da palavra da justiça (Hb 5.13s.). Gorgulho o formula assim em relação aos círculos bíblicos (p. 6): O método nasce do próprio conteúdo do evangelho. O importante será que os grupos saibam encontrar os caminhos para traduzir na prática os aspectos do dinamismo unitário (do evangelho). A pregação, portanto, será decorrência dessa experiência vivência!. Visa menos passar conteúdos do que testemunhar a coerência de agir e pensar, viver e crer.

A partir dessa experiência apresenta-se a sugestão de que cerca de duas semanas antes da pregação de Lc 10.1-16 seja realizada uma caminhada bíblica com um ou mais grupos da comunidade, nos moldes literais acima descritos, sem bolsa e sem alforje (v. 4). As experiências das duplas fornecerão elementos para a partilha e reflexão dos participantes, novos impulsos para a ação da comunidade e, por isso, material para a prédica e a liturgia. Em um momento no meio desse processo talvez se façam necessárias algumas informações exegéticas, relacionando a vida dos membros com a experiência dos primeiros cristãos.

A experiência da caminhada certamente fará ressaltar alguns dos seguintes aspectos da dinâmica, da tensão e do crescendo registrados em Lucas:
— do caminhar de Jesus da Galiléia para Jerusalém, lugar de conflito e vitória (9.51);
— do seu estilo de vida (9.58) repassado para os seguidores (10.3s.);
— do seguir ao ser enviado (missão é mais que estilo de vida!), devendo-se ao mesmo tempo orar por mais trabalhadores (10.2);
— do envio dos doze (9.2) ao envio dos setenta (10.1), desta maneira desmonopolizando a missão (L'Eplattenier, p. 107); em Gn 10 são 70 as nações conhecidas (a versão grega da Septuaginta arrola 72), mas as 35 duplas precedendo Jesus na passagem pela Samaria talvez representem um paradigma apenas parcial e insuficiente para uma ideia de missão universal;
— do entrar nas casas (10.5ss.) ao entrar nas cidades (v. 8ss.);
— da paz como conteúdo da salvação (v. 5, cf. 1.79; 7.50; 8.48) em meio à urgência da caminhada (v. 4b) e ao juízo (v. 13ss.);
— da previsão de rejeição (10.10s.,16) à alegria pelo poder manifesto (v. 17);
— da alegria pela autoridade recebida à alegria por se estar anotado como pessoa salva (v. 20);
— da superação da rejeição inicial dos samaritanos (9.53) e sucesso nas cidades pagãs, enquanto as cidades galiléias são impenitentes (v. 13ss.);
— da realização de sinais de poder (dynameis) que acompanham o anúncio do Reino, à compreensão do agir do Pai e do Filho pelos pequenos e pobres (v. 21s.).

2. Dois a dois

Segundo demonstração de Crossan (p. 332ss.), os missionários somente podem ser definidos em termos muito genéricos como seguidores ou discípulos, oriundos da Baixa Galiléia, que desejavam participar do movimento de Jesus. Pode ter havido diversos envios. A partir da tese de que através da refeição conjunta (comensalidade) e da cura (magia) Jesus demonstrava a presença não-intermediada do reino de Deus, Crossan sugere: seriam os missionários pessoas curadas que por sua vez são incumbidas de curar?

Para esclarecer o sucesso de Jesus e seus missionários, Crossan recorre a pesquisas antropológicas realizadas entre vários povos nativos, nas quais, para descrever a não-saúde, se distingue entre patologia (distúrbio orgânico ou disfunção física) e enfermidade (percepção subjetiva da patologia e doença) e ainda doença (sua significação social). Diante da moderna especialização dos médicos na primeira e sua ignorância das demais dimensões, uma patologia será melhor atendida pelo médico e pela farmácia, mas para cuidar da enfermidade será melhor recorrer ao curandeiro (xamã) e ao sacrário (p. 336). Essa natureza pessoal, familiar, local e psicossocial da doença, como descrita pela antropologia médica para hoje e certamente válida para os tempos bíblicos, constitui o pano de fundo para a atividade de cura do movimento de Jesus. Então como hoje, é claro, os curados expandiram enormemente a realidade e capacidade do poder de quem os curou. Mas entusiasmo e exagero, publicidade e propaganda não destroem, nem então nem hoje, a base de sucesso em que se apoiam (p. 337).

Um aspecto significativo é o das duplas. Os doze são enviados assim em Mc 6.7, um detalhe não transcrito para os textos paralelos Mt 10.1 e Lc 9.1. Mas, segundo Crossan, Lucas o aproveitou ao redigir 10.1, versículo introdutório a ditos da fonte Q. Pergunta-se, pois, pela origem histórica. A prática ensinava que é melhor serem dois do que um (Ec 4.9ss.). Pelo menos duas testemunhas eram exigidas em juízo (Dt 19.15; Nm 35.30). Mas sair como pregadores em duplas tornou-se típico para a prática itinerante dos rabinos somente após a destruição do lemplo em 70 d.C., quando o Evangelho de Marcos já fora escrito. Crossan (p. 335) recorre a l Co 9.5 como comprovação independente e mais antiga: (Não lemos o direito) de fazer-nos acompanhar de uma mulher irmã (adelphen gynaika), como fazem os demais apóstolos, e os irmãos do Senhor, e Cefas? Ele propõe que mulher irmã deva significar exatamente o que diz: (...) uma mulher missionária viajando com um missionário homem, como se, para o mundo em geral, ela fosse sua esposa. A função óbvia de tal tática seria fornecer a melhor proteção social para uma missionária itinerante num mundo de poder e violência masculinas (p. 335).

Consciente do caráter tentativo dessa proposta, Crossan não obstante a mantêm, porque pensa que se deve dar uma interpretação mais adequada a adelphen gynaíka que esposa cristã, e sobretudo porque, como mostrou anteriormente, Jesus defendia e praticava a comensalidade aberta, aceitando também mulheres no círculo ao seu redor. Assim, elas também faziam parte das pessoas enviadas por Jesus. Na sociedade camponesa da Galiléia, elas dificilmente poderiam ter entrado sozinhas nas casas de estranhos. Seriam vistas como prostitutas. Portanto, o modelo da mulher irmã pode ter sido não somente o melhor, mas o único meio de concretizar o envio (p. 335).

3. Bibliografia

CROSSAN, John Dominic. The Historical Jesus; the Life of a Mediterranean Jewish Peasant. Harper, New York, 1991.
GORGULHO, Gilberto S. & ANDERSON, Ana Flora. O Caminho da Paz, Lucas. 2. ed. São Paulo, Paulinas, 1980.
L'EPLATTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo, Paulinas, 1993.
SCHMTTHALS, Wdter. Das Evangelium nach Lukas. Zürich, TVZ, 1980.


Autor(a): Werner Fuchs
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 7º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 10 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 12
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1994 / Volume: 20
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17742
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