Lucas 2.(1-7)8-20

Auxílio Homilético

25/12/2014

Prédica: Lucas 2.(1-7)8-20
Leituras:Isaías 53.7-10 e Hebreus 1.1-7 (5-12)
Autoria: Erli Mansk e Rodolfo Gaede Neto
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/2014
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX

As infinitas possibilidades de Deus

1. O texto

Propomos olhar para a história de Natal a partir de Maria e sua atitude registrada no v.19: “... guardava todas estas palavras, meditando-as no coração”. “Guardava”, traduzido de synetērei (imperfeito de syntēreo), significa “conservar, reter em segurança, guardar na memória”. “Meditando-as”, traduzido de symballousa (do particípio de symballo), significa “juntar, reunir, avaliar, discernir”. “Coração”, traduzido de kardia, no contexto bíblico em geral significa “centro da personalidade, sede da vida intelectual e espiritual, âmago dos seres
vivos”.

O termo rēmata, traduzido para o português como “palavras” que Maria guardava em seu coração, na verdade remete à expressão concreta de logos, que é mais do que simplesmente palavras ditas; refere-se à ação concreta de Deus. Seja lembrado o logos que se fez carne: no colo de Maria está a criança que é a encarnação de Deus. Assim, o que Maria “guardava em seu coração” não eram necessariamente apenas palavras que ouviu, mas também todos os fatos que ela observava no contexto do nascimento de seu ilho Jesus.

Atenção especial merece a atitude de meditação e reflexão de Maria, traduzida do verbo symballousa. De symballō advém o termo “símbolo”, que, na sua origem, refere-se à união de duas coisas ou realidades separadas, que se complementam (symballō significa “pôr junto”). Assim, podemos dizer que Maria está juntando dois fatos: a) o nascimento de seu ilho, uma criança inteiramente humana, que veio ao mundo em condições muito precárias; b) a ação de Deus justamente através dessa criança e toda a precariedade que envolve sua vinda ao mundo. A meditação e a reflexão de Maria levam-na a enxergar na criancinha miserável mais do que uma criancinha miserável, na manjedoura mais do que uma manjedoura, nos panos mais do que simples panos. Ela consegue enxergar além dessas realidades dadas e perceber a ação de Deus nelas, através delas. Isso é a capacidade de “simbolizar”, ou seja, “fazer o link” entre uma realidade dada e algo que está muito além dessa realidade. Ao fazer isso, Maria está, na verdade, teologizando; está elaborando a teologia do Natal: no nascimento da criancinha, em condições mínimas, Deus está atuando maximamente em favor de toda a humanidade.

Tendo em mente o significado desses termos, podemos traçar um perfil de Maria a partir do contexto do Natal: a) mulher absolutamente atenta, observadora, esperta, ligada, conectada com os fatos, sabe enxergar e ouvir; b) mulher que lida com os fatos de modo absolutamente consciente: “salva” as informações recebidas no centro da sua personalidade, no centro da sua intelectualidade e espiritualidade, ou seja, apropria-se delas; o que está em evidência é a profundidade da atitude de Maria, longe de qualquer superficialidade; c) formata ou processa as informações recebidas, ou seja, realiza um processo de meditação, de avaliação, de reflexão, de discernimento, de elaboração.

Colocado isso, olhemos com os olhos de Maria para toda a história do Natal: O que Maria está observando? Do que Maria está se apropriando? O que Maria está elaborando?

1. Maria observa que a promessa que lhe foi feita pelo anjo Gabriel no sexto mês de gravidez, de que ela daria à luz um ilho que “será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1. 31-33), cumpre-se não no contexto de um palácio, de um trono e de um berço de ouro, mas no contexto de um estábulo, de um cocho de animais e de panos. Como reunir, juntar, lincar essas realidades tão contraditórias? Maria observa, medita, reflete, processa e elabora uma teologia surpreendente: Deus escolhe vir ao encontro da humanidade, encarnando-se numa pequena e simples criança, nascida num curral, enrolada em panos e deitada num cocho que serve para tratar animais. Essa teologia distancia-se de tudo o que é convencional; foge à lógica, beira ao escândalo e à loucura. Mas é a mais profunda de todas as teologias, absolutamente coerente com a teologia paulina, que apresenta Jesus como aquele que “a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de pessoa humana; e, conhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz” (Fp 2. 5-11). Portanto a teologia de Natal remete às infinitas possibilidades de Deus, inclusive a de inverter as questões ligadas a poder e fraqueza, trono e manjedoura, riqueza e pobreza, céu e terra.

2. Maria ouve o relato dos pastores de ovelhas de que “um anjo do Senhor desceu onde eles estavam, e a glória do Senhor brilhou ao redor deles... e o anjo disse: eis que vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi , o Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2. 9-11). O que fazer com esse relato? Como processar esse fato contraditório de que um anjo do céu apareceu justamente a um grupo de pastores do campo, que representava uma categoria de pessoas consideradas desonestas, desacreditadas, não cidadãs? Como processar o fato de que esse grupo foi o primeiro a testemunhar o nascimento do Messias, sendo que na sociedade os pastores estavam impedidos de prestar testemunho? Sim, exatamente essa gente desprezada, sem credibilidade, suspeita, Deus elege como os primeiros a receber a notícia da sua vinda ao mundo, dizendo-lhes que o Salvador veio também para eles. Maria meditava sobre tudo isso! Certamente, a sua meditação não deve ter passado longe do que mais tarde o apóstolo Paulo formula da seguinte maneira: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes, e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” (1Co 1.27-28).

3. Maria observa que os fatos que estão acontecendo não se restringem ao ambiente local e ao momento atual. A notícia do nascimento de seu ilho (boa-
-nova) destina-se a todo o povo, a todo o império, a todo o mundo, para sempre. Segundo o testemunho dos pastores, essa notícia inclusive ultrapassa as barreiras deste mundo, porque por causa dela há festa nos céus. Os céus abrem-se a ponto de se poder ver seu brilho, seu esplendor, sua glória e de se ouvir o coro da milícia celestial, que louva a Deus, dizendo: “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os seres humanos, a quem ele quer bem” (Lc 2. 13-14). Maria medita, reflete e elabora teologia sobre esse fato extraordinário: o nascimento de seu filho, nas condições humanas dadas, tem a ver com a glória dos céus, com a salvação do universo inteiro. Deus, através do nascimento do Menino Jesus, está construindo a ponte entre a terra e o céu, entre a miséria daquele curral e a glória divina. Através desse frágil Menino Jesus a glória dos céus está acessível para todas as pessoas.

2. A reflexão

2.1 – Prestar atenção

A igreja aprende de Maria a prestar atenção, a ser vigilante. A igreja é atalaia. Observa. Faz vigília, como faziam os pastores do campo para proteger seus rebanhos. Ela quer saber o que se passa localmente e no mundo. É característica das pessoas cristãs “segurarem numa mão a Bíblia e na outra o jornal”, como ensinava Karl Barth. A igreja não quer estar alheia aos acontecimentos. Do exercício de “prestar atenção” fazem parte o enxergar e o ouvir atentamente. Sobre isso Dietrich Bonhoeffer escreve: “Quem não sabe ouvir por longo tempo e com paciência jamais se comunicará de fato com seu interlocutor e nunca o entenderá” e “quem não consegue mais ouvir o irmão em breve também não conseguirá mais ouvir a Deus”. Parece que Maria aprendeu essas virtudes da Escritura, quando ela testemunha Deus como aquele que diz: “Certamente vi a aflição do meu povo... ouvi o seu clamor... Conheço-lhe o sofrimento” (Êx 3.7).

Na metodologia da teologia latino-americana, esse é o momento do “ver” ou da “mediação analítica”.

Hoje, a igreja tem muito que prestar atenção. Está aí aquilo que chamamos de cultura pós-moderna: se ela produz a fragmentação das relações humanas, o individualismo, o que será da comunidade e da igreja (que são essencialmente “vidas em comunhão”)? O que será das novas gerações? O que será da sociedade e da civilização humana? Está aí o trânsito, que reflete bem o comportamento humano: levar vantagens, passar as outras pessoas para trás, falta de cuidado, falta de responsabilidade, falta de paciência, irritação, violência, mortes, especialmente de jovens. Está aí o medo de viver: de sair para a rua, de voltar para casa, de ir para o trânsito, de ser assaltado. Estão aí as drogas, causando estragos na vida de tanta gente. Estão aí os males do século: estresse, ansiedade, angústia, depressão, câncer em todas as idades, longevidade à custa de sofrimento. Está aí a grande mídia que conduz os fatos como lhe convêm.

O que tudo isso significa? Para onde vai nos levar? Como agir?

2.2 – Guardar no coração

A igreja aprende de Maria a lidar com os fatos de modo consciente. Por isso as pessoas de fé não “guardam” os acontecimentos numa memória curta, que já está acostumada a esquecer e a deletar, mas os guardam no centro do ser, que é o lugar da intelectualidade e da espiritualidade. Nesse lugar pode-se avaliar os fatos ao mesmo tempo com a nossa capacidade racional e espiritual. É um exercício de intensa reflexão e muita oração. É o exercício de olhar para os fatos com os olhos da fé e da consciência. O resultado dessa avaliação só poderá ser de grande equilíbrio. Realizamos esse exercício à luz dos valores do reino de Deus, dos valores do evangelho, do amor, da ética, da paz, da justiça, da solidariedade. Na metodologia da teologia latino-americana, esse é o momento do “julgar” ou da “mediação hermenêutica”. Interpretamos os fatos à luz do evangelho.

2.3 – Meditar

A igreja aprende de Maria a elaborar teologia. No centro de nossa racionalidade e espiritualidade, analisamos os fatos, julgamos, interpretamos, discernimos, processamos e passamos a formatar e elaborar o nosso posicionamento teológico. Esse é o momento de responder perguntas, como: onde está Deus em meio a toda a realidade que nos inquieta e angustia? Ele tem um plano? Ele está atuando? Como? Será que ele usa formas de atuação diferentes do que estamos acostumados, conhecemos, imaginamos e compreendemos? De que recursos e instrumentos Deus lança mão? O ministério inteiro outra coisa não é do que constante elaboração teológica. Para cada passo, cada ação, cada visita, cada diálogo, cada projeto necessitamos construir primeiro uma base teológica sólida, sob pena de nos tornarmos superficiais. De Maria conhecemos uma elaboração teológica impressionantemente rica e profunda, que é o “Cântico de Maria” (Lc 1.46-55). Com base nesse posicionamento teológico, ela assume a missão prática recebida e coloca-se inteiramente a serviço da encarnação de Deus, com tudo o que isso implica, inclusive perseguição.

Na metodologia da teologia latino-americana, esse é o momento do “agir” ou da “mediação prática”.

3. A pregação

Para a pregação, propomos três passos:

3.1 – Prestar atenção

O texto de Natal desafia-nos a prestar atenção em duas coisas: a) aos acontecimentos da atualidade; b) à atuação de Deus em meio aos acontecimentos. Na doutrina dos Dois Reinos, Lutero lembra que Deus, como Criador, continua agindo neste mundo e que as formas de sua atuação para edificar seu reino podem nos surpreender. A partir disso podemos falar das infinitas possibilidades de Deus. Assim como Deus surpreendeu com a forma de se encarnar na frágil criança da manjedoura, lançando mão do serviço de Maria, assim ele pode surpreender hoje. Por isso a comunidade de fé precisa estar atenta sempre. Na IECLB existem muitos exemplos de realidades angustiantes e de intervenções surpreendentes de Deus: a) o templo da comunidade luterana é destruído por um temporal e não há recursos para reconstruí-lo. É o fim? Não; a comunidade católica convida para partilhar seu templo; ou vice-versa; b) “Todo mundo” diz: a juventude afastou--se da igreja; nos cultos só há pessoas idosas; o que será do futuro da igreja? É o fim? Não; os CONGRENAJEs (Congresso Nacional da Juventude Evangélica) reúnem em cada edição em torno de mil jovens; na ADL (Associação Diacônica Luterana) faltam vagas para jovens nas Semanas de Canto; c) a tragédia das enchentes no Natal frustrou as celebrações que estavam planejadas e ensaiadas; é o fim? Não; a solidariedade entre as pessoas deu um sentido tão profundo ao Natal, que o comentário foi que esse Natal foi mais autêntico. Certamente você tem outros exemplos.

3.2 – Guardar no coração

O texto de Natal desafia-nos a não deletar, mas a “salvar” os fatos no “arquivo” central do nosso ser, para realizar o processo de meditação e reflexão, de avaliação, análise, discernimento e interpretação dos fatos, sempre a partir da razão e da fé e à luz dos valores do reino. “Guardar no coração” garante a profundidade do processo e evita a superficialidade. A comunidade de fé está sempre nesse processo de meditação e reflexão. É por isso que ela não pode parar de ler a Bíblia no dia a dia, em casa; de participar de estudos bíblicos na comunidade; de estudar os catecismos (Lutero os elaborou para tornar a teologia acessível aos membros da comunidade); de se ocupar com a hinologia e sua teologia; de celebrar em casa e na comunhão das irmãs e dos irmãos; de interceder; enfim, de exercitar a reflexão e a espiritualidade com vistas à interpretação dos fatos com profundidade. Lutero queria uma comunidade que tivesse maioridade na fé, que não dependesse da tutela de outras pessoas para interpretar.

3.3 – Elaborar teologia

O texto de Natal desafia-nos a elaborar teologia a partir da realidade dada na atualidade e a partir das infinitas possibilidades de Deus diante dessa realidade. Aqui se trata de construir uma base teológica que sustente projetos práticos. Se Maria pode elaborar um posicionamento teológico capaz de sustentar seu serviço à causa da encarnação de Deus, a comunidade de fé também exercita essa elaboração, sempre que a realidade coloca novos desafios e sempre que surge a pergunta: onde e como Deus está atuando agora? Há muitas Marias entre nós, que olham, enxergam, ouvem, meditam, avaliam, interpretam e têm sensibilidade para perceber o que está acontecendo e propor soluções, a exemplo do que fez Maria nas bodas de Caná. Você as conhece.

4. Subsídios litúrgicos

Meditando com Maria

Maria, com ternura, olha o seu menino;
O que vês, Maria?
O que passa em seu coração?

Maria ouve, atenta, o que dizem os pastores;
O que sentes, Maria?
O que diz seu coração?

Maria, meditando, elabora cada fato;
E descobre um Deus presente, surpreendente,
Que transforma o impossível e dá sentido à vida da gente.
 

Gloria in excelsis:

Glória a Deus nas maiores alturas, assim cantaram os anjos na noite do nascimento do Filho de Deus. Deus nas alturas, Deus na terra,

Deus na manjedoura, no colo de sua mãe. Pastores, animais, estrelas e anjos estavam presentes.

Deus sai das alturas e habita entre nós, torna-se criança, é humano e sofre;

Deus se identifica com a gente. Para nós, loucura de Deus; para Deus, amor pela gente.

Glória a Deus nas maiores alturas, paz na terra, paz para o mundo, paz entre as pessoas e toda a criação. Deus entre nós é pura graça, é nosso maior presente.

Cantemos felizes em louvor ao nosso Deus

Surgem anjos proclamando: Paz na terra e a Deus louvor! Anunciam, jubilando: Eis, nasceu o Salvador! Gloria in excelsis Deo! Gloria in excelsis Deo!
(HPD 20).

Oração do dia

Ó Deus, tu que nos surpreendes com tua vinda ao mundo na criança da manjedoura, dá-nos o dom de Maria, que olha os fatos com sabedoria, que enxerga além do aparente e percebe que tu ages nas coisas que para nós parecem contraditórias. Vem a nós neste dia de Natal e dá que por meio da tua Palavra possamos enxergar além da nossa própria realidade. Por Jesus, teu Filho, que viveu e experimentou a nossa humanidade e que, contigo e o Espírito Santo, vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.

Bibliografia

BAUER, Walter. Griechisch-Deutsches Wörterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der übrigen urchristlichen Literatur. Berlin: Verlag Alfred Töpelmann, 1952.
RIENECKER, Fritz. Sprachlicher Schlüssel zum Griechischen Neuen Testament.
14. Aul. Giessen-Basel: Brunnen-Verlag GmbH, 1974.
STÖGER, Alois. O Evangelho segundo Lucas: primeira parte. Petrópolis: Vozes, 1973. v. 3/1.


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Autor(a): Erli Mansk e Rodolfo Gaede Neto
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Natal
Natureza do Domingo: Natal
Perfil do Domingo: Dia de Natal
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 2 / Versículo Inicial: 8 / Versículo Final: 20
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2014 / Volume: 39
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 34463
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Assim como o fogo sempre produz calor e fumaça, também a fé sempre vem acompanhada do amor.
Martim Lutero
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