Lucas 24.13-35

Prédica

04/03/1987

Lucas 24.13-35

Martim Lutero

Naquele mesmo dia, dois deles estavam de caminho para uma aldeia, chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios. E iam conversando a respeito de todas as coisas sucedidas. Aconteceu que, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles. Os seus olhos, porém, estavam como que impedidos de o reconhecer. Então lhes perguntou Jesus: Que é isso que vos preocupa e de que ides tratando à medida que caminhais? E eles pararam entristecidos. Um, porém, chamado Cléopas, respondeu, dizendo: És o único, porventura, que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias? Ele lhes perguntou: Quais? E explicaram: O que aconteceu a Jesus, o Nazareno, que era varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo, e como os principais sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel; mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais cousas sucederam. É verdade também que algumas mulheres, das que conosco estavam, nos surpreenderam, tendo ido de madrugada ao túmulo: e, não achando o corpo de Jesus, voltaram dizendo terem tido uma visão de anjos, os quais afirmam que ele vive. De fato alguns dos nossos foram ao sepulcro e verificaram a exatidão do que disseram as mulheres; mas a ele não viram. Então lhes disse Jesus: Ó néscios, e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras.

Quando se aproximavam da aldeia para onde iam, fez ele menção de passar adiante. Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica conosco, porque é tarde e o dia já declina. E entrou para ficar com eles. E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o, e, tendo-o partido, lhes deu; então se lhes abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. E disseram um ao outro: Porventura não nos ardia o coração, quando ele pelo caminho nos falava, quando nos expunha as Escrituras? E, na mesma hora, levantando-se, voltaram a Jerusalém onde acharam reunidos os onze e outros com eles, os quais diziam: O Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão! Então os dois contaram o que lhes acontecera no caminho, e como fora por eles reconhecido no partir do pão.

A parte principal deste evangelho é a pregação que Cristo fez a seus discípulos, partindo da Escritura. Pois enquanto estes dois discípulos, em sua caminhada, falam dele trocando ideias um com o outro, ele se juntou a eles no caminho, fazendo-lhes uma bela e longa pregação, como diz o texto: ¨Começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras¨. Essa foi uma pregação tão gloriosa que os próprios discípulos mais tarde, no lugarejo, ou na casa, confessam que seu coração havia ardido, enquanto o seu Senhor havia falado com eles no caminho, abrindo-lhes a Escritura.

Agora eu desejaria muito que soubéssemos qual foi a parte da Escritura que o Senhor citou de Moisés e dos profetas, através da qual foram sendo incendiados, fortalecidos e convencidos naquele artigo, cujo conteúdo é que Cristo teve de sofrer, e assim entrar em sua glória, já que encontramos tão pouca coisa, sim, como parece, nos cinco livros de Moisés não encontraremos nada que a tal coisa se referia. Pois os judeus, aos quais foi confiado o que Deus falou, também têm Moisés, e contudo não conseguiram encontrar tais coisas nos cinco livros de Moisés. Sim, eles ainda leem Moisés hoje, mas não conseguem encontrar tais coisas ne-e, antes enxergam o contrário.

Como sucederá aquilo? Cristo recorre a Moisés e a todos os profetas, dizendo que são eles que dele dão testemunho, e os judeus têm Moisés e os profetas, e mesmo assim não conseguem ver nada de Cristo, nem em Moisés nem nos profetas. Como entender aquilo? Resposta: Estes dois discípulos o explicam ao dizerem: ¨Por ventura não nos ardia o coração, quando ele pelo caminho nos falava, quando nos abria as Escrituras?¨ Seguramente Moisés escreve de Cristo, mas o que faz a diferença é: que os que leem Moisés compreendam o que Moisés fala. Paulo diz (2 Coríntios 3.14) que até o dia de hoje, quando os judeus leem Moisés, um véu ou pano lhes cobre a face e os corações, de maneira que não o conseguem ver. E Cristo diz a seus discípulos (Lucas 8.10): ¨A vós é dado conhecer os mistérios do reino de Deus; aos mais fala-se por parábolas, para que vendo, não vejam, e ouvindo não entendam¨.

Por tal motivo a Escritura é um livro que não requer mera leitura, mas também o autêntico intérprete e revelador, a saber, o Espírito Santo. Onde ele não abrir a Escritura, ela permanece incompreendida, embora seja lida. No mundo de hoje ainda se dá o mesmo. Nós temos a doutrina tão clara como os apóstolos a tiveram. Provamos os artigos da doutrina pura a partir da Escritura, de forma que nossos adversários não são capazes de refutá-los. Mas o que é que adianta? Acontece que nenhum artigo da fé tem sido pregado pelos apóstolos que não tivesse sido contestado pelos hereges. Que admira ser contestada a doutrina pura que pregamos? Por isso o erro não se acha na Escritura, na leitura ou na pregação, mas sim, na interpretação - assim como diz o ditado conhecido: Tudo depende de um bom intérprete.

Em seguida, a Escritura também requer autênticos alunos, que de bom grado aceitem ser ensinados e instruídos. Pois Moisés e os profetas são mestres que fazem ser tolos os sábios e os doutos e vazam os olhos da razão, na medida em que são compreendidos e cridos. Onde tal não acontece, os que leem a Escritura esbarram nela, ficam contrariados ou a contestam. Por isso, quem quiser compreender e conceber a Escritura, precisa fazer-se estulto. Quem neste campo quiser ser sábio, pretendendo discernir através da razão como as coisas se relacionam e como elas conferem - este é um caso perdido, permanece um aluno imprestável.

A Bíblia - ou a Escritura - não é nenhum livro que jorre da razão ou da sabedoria humana. As artes dos juristas e dos profetas provêm da razão, e de sua parte podem ser entendidas e concebidas pela razão. Mas a doutrina de Moisés e dos profetas não provém da razão e da sabedoria humana. Quem, portanto, se atrever a compreender a Moisés e aos profetas pela razão e a calcular como as coisas combinam com a Escritura, este tomou um caminho totalmente errado. Pois todos os hereges desde o princípio igualmente se levantaram achando que poderiam interpreta o que liam na Escritura conforme a razão manda.

Paulo diz (1Coríntios 1.23 ss.): ¨Nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios: mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus¨. Aos judeus, ele diz, pregamos puro escândalo, pois eles esbarram na pregação, assim que se tornam furiosos e tolos; não toleram nem escutar nem olhar a mensagem. Aos gentios doutos pregamos pura estultícia por contrariar sua razão, incapaz de tolerá-lo. Aqueles, porém, que são ovelhas símplices, quer sejam judeus, quer gentios, dizem: Deus o falou, portanto o creio - aqueles o conseguem conceber e entender. E o próprio Cristo agradece ao seu Pai celeste, de coração alegre, por ter ocultado estas coisas aos sábios e entendidos e por tê-las revelado aos de menor idade, aos bobos, aos tolos e às crianças. Eu louvo o Senhor, nosso Deus, por ele ser capaz de fazê-lo. Se não o tivesse feito, eu teria vontade de pedir-lhe que o fizesse. Pois não é possível instruir e ensinar os sábios e a sublime razão nas coisas de Deus: acerca de Cristo, da fé, da salvação e da vida eterna.

A razão, por exemplo, ao ouvir acerca do Batismo: Quem crer e for batizado, será salvo (Marcos 16.16), ou: o batismo é um ¨lavar regenerador¨ Oito 3.5), imediatamente recua, dizendo: Seria possível você logo ser regenerado e salvo, só por permitir ser lavado com um pouquinho de água? O renascimento se efetuaria de modo tão fácil? Meu caro, pense quanto sofre uma mulher antes de dar à luz uma criança - e você alcançaria a vida eterna e a vitória sobre pecado, morte e diabo, permitindo que derramem um pouquinho de água sobre você? Ora, o que você vai conseguir com isso? Agua é água. - Desta forma a razão se intromete com sua cantilena. Ao ouvir a respeito de Cristo que Deus se tornou homem, que morreu, ressuscitou dos mortos, subiu ao céu e assentou-se à mão direita de Deus: a razão não demora em clamar. Que sentido faz aquilo? E algo absurdo. Por tal razão é do agrado do Senhor, nosso Deus, colocar perante os olhos da razão coisas nas quais ela se machuca e se escandaliza. E se a razão não chegar a ser temente a Deus, deixando se aprisionar, e passando a crer pura e simplesmente, ela retorna tola, incapaz de compreender sequer uma destas coisas. Mas quando surgem corações ingênuos, aos quais o Espírito Santo se revela, através de sua pregação, de sorte que chegam a crer de coração no que ouvem — eles demonstram tal poder e fogo que se agarram firmemente ao evangelho, permanecem nele, e por causa dele se deixam atormentar e matar.

Assim cada pessoa deve ser um aprendiz ingênuo da Sagrada Escritura. Pois pessoas sábias não conseguem penetrar nela, a Escritura lhes permanece fechada. Agostinho lamenta ter-se aproximado da Escritura através da razão livre, tendo pesquisado nela por nove anos seguidos tentando compreender a Escritura através da razão. Mas quanto mais estudava nela, como diz, tanto menos a entendia, até que afinal ficou sabendo, arrasado, que é preciso vazar os olhos da razão e dizer. O que a Escritura diz, eu deixo a salvo de minha razão perscrutadora, antes o creio de coração ingênuo. Se você fizer isso, a Escritura se lhe tornará clara e brilhante, ela, que antes fora escura. Da mesma forma diz o papa Gregário o Grande (admira-me de que maneira este homem foi encontrar tal palavra boa): A Sagrada Escritura é como um lago, no qual um elefante se afoga, enquanto que uma ovelha o atravessa caminhando, como se fora um ribeirão raso. Concluindo: Nada resolve lermos a Sagrada Escritura com a razão. Mas quando sobrevém a revelação, como acontece aos discípulos em nosso relato, aí tudo se resolve.

Para compreender-se a Escritura Sagrada, necessita-se da revelação: que o Espírito Santo, sendo o verdadeiro intérprete, explique a palavra externamente, através da pregação oral, e internamente, através da iluminação que acontece dentro do coração. Aos judeus, a palavra pregada por Cristo era como pedra, mas para os discípulos e para outros que a ouviam e aceitavam de coração ingênuo, foi luz e fogo, pelo que seu coração ia sendo despertado, incendiado, consolado e alegrado.

Devemos ler, ouvir e usar a Sagrada Escritura e a palavra de Deus com alegria. Pois para tal fim o Espírito Santo, que é eficaz através da palavra, dá o entendimento, assim como vemos no caso destes discípulos: eles, em sua caminhada, falam da Escritura, gostariam de penetrar nela, mas não o conseguem. Aí o Senhor se junta a eles e lhes faz um maravilhoso sermão, cita palavras de Moisés, dos profetas e do saltério e as esclarece, de forma que eles passam a compreender a Escritura. A mesma coisa acontecerá conosco. Ao tratarmos da Escritura com seriedade, nossos corações se encherão de júbilo e alegria, conhecendo a Cristo em verdade - como ele carregou os nossos pecados, como viveremos eternamente junto com Abraão, lsaque e Jacó, uma vez que permaneçamos aprendizes ingênuos, assim como o foram estes discípulos e estas mulheres.

Pois neste livro, chamado de Sagrada Escritura, não tem lugar qualquer mestre esperto ou disputador. Deus nos tem dado outras artes, gramática, dialética, retórica, filosofia, jurisprudência, medicina; aí você deverá ser esperto, deverá brigar, pesquisar e perguntar, procurando saber o que está certo e o que está errado. Mas aqui, na Sagrada Escritura e na palavra de Deus, desista das perguntas e das discussões, e diga: Foi Deus quem falou isso, portanto o creio. Aqui não vale nem discutir nem questionar como e o quê -mas vale o que diz a Escritura: Faça-se batizar e creia no descendente da mulher, em Jesus Cristo, Deus verdadeiro, para que através de sua morte e de sua ressurreição você tenha ressurreição, perdão dos pecados e vida eterna. Não pergunte por que e como estas coisas são assim. Se você proceder da forma como eu disse, o seu coração vai arder, e você terá prazer e alegria na palavra. Mas se quiser brigar e perguntar como será possível uma coisa dessas, então já se afastou da verdade e do reto entendimento da Escritura. Estes discípulos nem brigam nem questionam, apegam-se, porém, à palavra de Cristo, o Senhor, e escutam o que ele diz. Aí acontece que a palavra penetra neles com todo o seu poder e seu coração vai sendo iluminado de tal modo que já não têm nenhuma dúvida, passam a ser animados, fogosos e alegres, como se tivessem passado por fogo.

Amém.


10 Sermões sobre o Credo - Martim Lutero

Prefácio de Lindolfo Weingärtner

O Primeiro Artigo do Credo Apostólico

Mateus 6.24-30

O Segundo Artigo do Credo Apostólico

Lucas 2.1-14
Lucas 22.7-20
João 19.13-30
Marcos 16.1-8
Lucas 24.13-35
Marcos 16.14-20
Mateus 25.1-13

O Terceiro Artigo do Credo Apostólico

Atos 2.1-13
João 10.12-16
  


Autor(a): Martim Lutero
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 24 / Versículo Inicial: 13 / Versículo Final: 35
Título da publicação: 10 Sermões sobre o Credo / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1987
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 28383
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Salmo 24.1
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