Marcos 1.14-20

Auxílio Homilético

26/01/1997

Prédica: Marcos 1.14-20
Leituras: Jonas 3.1-5 (6-9) 10 e 1 Coríntios 7.29-31
Autor: Walter R. Marschner
Data Litúrgica: 3º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 26/01/1997
Proclamar Libertação - Volume: XXII

1. Comentário

Basicamente a perícope não traz nenhum problema textual ou exegético. No Proclamar Libertação XIX temos a contribuição de Aline Steuer para os vv. 12 a 15. Penso que não é interessante trabalhar os vv. 12 e 13 (a tentação de Jesus no deserto), como é sugerido naquele artigo. É melhor centrar a reflexão na questão do chamamento e discipulado. Passo a refletir sobre alguns desafios que o texto nos coloca.

y. 14: Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia: A perícope inicia sugerindo que em Jesus dá-se o seguimento corajoso da pregação do Reino. Jesus vem após João, mesmo sabendo o que isso poderia lhe custar, a exemplo do destino de seu antecessor. João Batista e Jesus estão relacionados aqui numa espécie de martirologia. Essa é a lógica do martírio — a sucessão de testemunhos, que nem mesmo a morte cala. Cala-se o corpo, mata-se o mensa-geiro, porém a mensagem continua.

E martírios ainda acontecem? Pensei em relatar algumas cenas que ocorreram por aqui:

Com a morte dos 19 sem-terra no Pará em abril de 1996, abriu-se novamente uma situação de consternação e escândalo no país. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) escreve para as comunidades pedindo 19 minutos de oração pelos mortos. Em diversas cidades há manifestações nas ruas clamando por mais paz e justiça no campo. Os meios de comunicação, mesmo os mais conservadores, não puderam deixar de mostrar a indignação nacional.

Dois dias depois aconteceu, aqui na região, a maior ocupação de terra do país. Três mil famílias ocuparam a Fazenda Giacometti, em Rio Bonito do Iguaçu (PR). Desta vez sem violência, a ocupação contou com o apoio de muita gente.

Os mortos do Pará foram 'Cristos' para os acampados da Giacometti, comentou um sem-terra. O sacrifício destes e o seu impacto na sociedade garantiram a ocupação das terras em Rio Bonito do Iguaçu. O sacrifício de alguns abriu as portas para os outros...

Acredita-se que haja, de fato, uma ligação entre as histórias de martírio. Em nosso continente essa crença tem fundamentado uma espécie de Martirologia Latino-Americana: a morte de uns semeia coragem para outros. Morre um mártir, nascem vários profetas em seu seguimento. Depois que João foi preso, veio Jesus...

V. 15: Cumpriu-se o tempo: Kairos é diferente de chronos (tempo cronológico), é o tempo em que não se pode deixar passar uma oportunidade que não virá novamente — ou faz agora, ou não faz mais.

Jesus clama por arrependimento, pois o kairos chegou. A mudança tem de acontecer, sob pena de a história passar e ficarmos a vê-la desfilar. Urge decidir já.

Então os sem-terra sobem no caminhão, porque aquele era o dia marcado para a ocupação, levando consigo seus pertences amarrados em dois ou três fardos apenas. O barraco onde moravam como meeiros fica para trás, vazio. O que virá agora? Quanto tempo terão que esperar? O destino do caminhão, por força de segurança, fica no sigilo. Mas o coração se enche de esperança.

y 15b: Arrependei-vos — metanoia — indica mudança de vida, mudança de rumo. Não implica deixar de ser, mas começar a ser outra coisa; reformar a vida a cada dia, como sugere Lutero. Aqui kairos e metanoia se implicam mutuamente. Há momentos na vida em que a mudança é exigida.

y. 16: Jogavam as redes ao mar, pois eram pescadores — aqui sugere-se a rotina da vida. O movimento constante do tempo cronológico, uma mera sucessão de fatos que se repetem. Pode-se imaginar os pescadores diariamente no movimento de lançar e retirar as redes na expectativa da sorte e da providência de uma boa pescaria. O ritmo se mistura com o movimento das ondas, amanhã será igual a ontem. Não há nada de novo.

Pode-se pensar na vida cíclica, na sazonalidade do plantar e colher do homem do campo. Não se pode negar a dignidade do trabalho e da labuta diária pelo pão, mas há que se denunciar uma vida sem propósito, em que o trabalho é destituído da sua força criadora. É a diferença entre a vida do meeiro plantando para o outro, plantando o que o outro quer, e o agricultor assentado na sua terra planejando o seu futuro... Aqui vou colocar a horta, lá o potreiro, aqui vai ser a reserva...

Temos aqui a tensão entre chronos e kairos. O evangelho de Jesus irrompe no nosso cotidiano, cabendo-nos tomar decisões, mudar a história.

y. 17: Vinde em meu seguimento... — é preciso o convite... Vem agora (deute), vem comigo! A resposta do discípulo não é uma confissão oral da fé em Jesus, mas sim um ato de obediência, diz Bonhoeffer. A fé pressupõe a obediência. Aqui o discípulo é arrancado de sua relativa segurança de vida e lançado na incerteza completa. Sai-se do domínio das possibilidades finitas para o domínio das possibilidades infinitas (i. é, para a única realidade libertadora). Como assinala Cristo: Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus. (Lc 9.56-62.)

Mas também vale o inverso: a obediência pressupõe a fé — aquele que é chamado tem de sair da situação em que é impossível crer para outra em que é possível a fé. Se Pedro ficasse atrelado à alienante situação junto às redes poderia de fato seguir honestamente a profissão. Mas, se queria aprender a crer em Deus, teria que seguir após o Filho de Deus feito homem e caminhar com ele. É necessário esse primeiro passo, para que se possa crer. Só o crente é obediente e só é obediente o que crê.

V. 18: E imediatamente , deixando as redes, eles o seguiram — trata-se da simplicidade que obedece e deixa-se confiar no novo, no desconhecido. Eles deixaram tudo e se foram... Quando poderíamos viver tal desprendimento? Quando a graça consegue arrancar-nos deste mundo para vivermos o projeto do Reino. São diversos os textos em que Jesus radicaliza o convite e as condições de seguimento. Citaríamos o encontro com o jovem rico, ou mesmo as exigências da vida apostólica (Lc 9.57-62) — Deixa que os mortos enterrem seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o Reino! Tais textos põem-nos a questão hermenêutica: deveríamos imitar a total obediência e o desprendimento dos discípulos? Não. Não se coloca aqui ênfase na radicalidade, mas na espontaneidade da decisão. Também não podemos sustentar que a decisão e obediência só se dariam sob as condições propícias de pobreza ou talvez de celibato; ela se dá, isto sim, na espontaneidade da fé. Cabe lembrar que os mesmos discípulos mais tarde voltaram às redes e careceram de novo do encontro com o Cristo, agora ressurreto (Jo 21.1ss.). Podemos assim refletir sobre tudo aquilo que prende a nossa fé às condições de nosso cotidiano, roubando-nos a ação da graça em nossas vidas.

2. A Prédica

Quando conhecemos pessoas que vivem plenamente a utopia que carregam consigo, quase não conseguimos mais divisar onde está o indivíduo e onde está a história que ele compartilha com muitos outros. A fé naquilo que ele persegue o transfigurou.

Poderíamos falar das relações entre fé e obediência ou entre chamado e seguimento. Para tal ajudaria contar histórias, convidar pessoas para darem testemunhos sobre como elas saíram do lugar e se puseram a caminho no seguimento de Jesus. Contar também como a fé transforma pessoas. Citei no início desta reflexão o caso dos sem-terra no sudoeste do Paraná em sua abertura para a esperança, 'leríamos outros exemplos entre agricultores/as? Poderíamos começar citando exemplos de agricultores/as que tiveram a coragem de trabalhar de modo diferente, coletivamente ou em associação. Talvez relatar a mudança de vida daquele/a que experimentou a novidade de participar de sua comunidade... Então pode-se fazer aí o paralelo com a experiência do seguimento de Jesus.

Poderia-se ainda apontar para o Batismo (colocar-se ao lado da pia batismal) como o marco de uma caminhada com Cristo e da necessidade da conversão. Não só no Batismo, mas diariamente, conversão é retomada de rumo, é a correção de nossa velha natureza para o seguimento e discipulado. Lembrar que os discípulos voltaram para as redes no mar da Galiléia antes do encontro com o Ressurreto e, então, começaram a agir sob o poder do Espírito Santo.

3. Bibliografia

BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo, Sinodal, 1980.
STEUER, Aline. Auxílio Homilético sobre Mc 1.12-15. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1993. vol. XIX, p. 79-82.


Autor(a): Walter Marschner
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Epifania
Perfil do Domingo: 3º Domingo após Epifania
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 14 / Versículo Final: 20
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17665
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O que o Senhor planeja dura para sempre. As suas decisões permanecem eternamente.
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