Marcos 16.14-20

Prédica

03/03/1987

Marcos 16.14-20

Martim Lutero

Finalmente apareceu Jesus aos onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração, porque não deram crédito aos que o tinham visto já ressuscitado. E disse-lhes: Ide por todo o mundo pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado. Estes sinais hão de acompanhar aqueles que creem; em meu nome expelirão demônios; falarão novas línguas,' pegarão em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre enfermos, eles ficarão curados. De fato o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-se à destra de Deus. E eles, tendo partido, pregaram em toda a parte, cooperando com eles o Senhor, e confirmando a palavra por meio de sinais, que se seguiam.

A parte mais importante neste evangelho é a ordem que Cristo, o Senhor, dá a seus discípulos dizendo: Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. E uma ordem especialmente incisiva e poderosa: o Senhor não envia seus discípulos a qualquer cidade ou aldeia, não os envia só à terra dos judeus, ao povo de Israel, não os envia só a Jerusalém, aos sacerdotes e levitas, não os envia a um reino ou principiado dos gentios, mas envia-os a todo o mundo, a todos os reis, príncipes, senhores, e a todos os homens que vivem debaixo do céu, sejam eles judeus ou gentios, nobres ou plebeus, homens ou mulheres, jovens ou velhos, para que todas as pessoas o possam ouvir, para que ninguém se possa desculpar dizendo que não escutou.

Em resumo: o evangelho deve ser pregado por toda a parte, em todo o mundo. Mesmo que os apóstolos não tenham chegado pessoalmente a todo o mundo, nem tenham visto todos os recantos da terra, sua pregação chegou a todo o mundo, como está escrito no Salmo 19.4: Por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até os confins do mundo¨. A palavra e a pregação dos apóstolos, conforme havia ordenado Cristo, chegou a todo o mundo, conquanto que sua pessoa e seus pés não tenham chegado a todo o mundo. Nossos pais e antepassados ouviram a mesma palavra antes de nós (apesar de que era pregado com maior clareza numa época do que em outra); nós a estamos escutando agora, depois deles. A palavra vai caminhando sempre, através de outras e mais outras pessoas. Os apóstolos deram o início, pregando-a em todo o mundo; os que lhes seguiram os passos continuam a pregá-la - até o dia derradeiro.

Mas qual é o conteúdo do evangelho que deverá ser pregado a toda criatura? ¨Quem crer e for batizado, será salvo¨. Ele não diz: Quem guardar a lei de Moisés, os livros dos juristas, as sentenças dos sábios, mas: quem crer no perdão dos pecados, ou, o que dá no mesmo, quem crer em mim, este será salvo. Isso é que vocês deverão pregar a toda criatura, a todos os reis, imperadores, príncipes, nobres, plebeus, homens, mulheres, jovens e velhos, para que creiam em mim, uma vez que queiram ser salvos. E como se quisesse dizer. Por suficiente tempo o mundo tem sido atormentado com leis, justiça e obras, através das quais ninguém consegue ser salvo, já que ninguém é capaz de cumpri-las. Mas agora quero resumi-lo: Ser salvo quer dizer crer em mim.

Se a esta altura alguém quisesse dizer. Qual, então, é a função do direito secular, ou a função da lei e dos dez mandamentos de Deus? Será que a justiça do mundo e da lei não tem nenhum valor? Resposta: A justiça do mundo e da lei deverá permanecer. Pois para este fim Deus ordenou que houvesse governo secular, que houvesse pai e mãe, dando juízo, entendimento e sabedoria a todas as criaturas, para que tal justiça venha a ser praticada. Mas já que esta justiça do mundo, devido à natureza humana corrompida, não acontece, ou acontece de forma insuficiente, impossibilitando a qualquer pessoa que se salve por ela, Cristo envia ao mundo uma pregação mais elevada, cujo teor é quem crer e for batizado, será salvo¨.

Essa é uma pregação diferente da dos juristas e da lei. Ela, com breves palavras, tranca o inferno e abre o céu. Mal são duas palavras: ¨crer¨ e ¨será salvo¨. Mas essas duas palavras trazem consigo um poder que supera todos os poderes, despojam o pecado do seu vigor, o inferno de sua vitória, afastam todo medo, pavor e timidez, refrigeram o coração aflito, vivificando-o. Desta forma o mundo inteiro não é capaz de falar, a saber que por meio de uma só palavra afaste pecado, morte, diabo, inferno, todos os livros de jurisprudência mais a lei de Deus em sua íntegra, que gratuitamente abra o céu e prometa salvação - e tudo isso sem merecimento e sem exigência de aquisição - livre, grátis, dado. Mas Cristo tem o poder de efetuá-lo através de seu evangelho, e ordena pregá-lo a toda criatura.

Essa é uma ordem sem par, que Cristo, através dos apóstolos, expede para todo o mundo. Se pudéssemos crer isto hoje, cobriríamos de amor os apóstolos e os pregadores que executam tal ordem, carregando-os nas palmas das mãos. Se conseguíssemos considerar como palavra de Deus aquilo que pregam os apóstolos e seus seguidores, cada um que o escuta ergueria as mãos dizendo: Senhor Deus, graças eternas sejam dadas a ti, por me deixares viver este tempo, por me permitires ouvir tais coisas. Quero obedecer-te de todo o coração, quero servir-te alegremente com meu corpo e com meus bens. Mas mesmo que o evangelho vá sendo pregado e ensinado, o que falta é que se creia nele.

¨Crer¨, contudo, não significa apenas falar do evangelho e pronunciar as palavras. Significa, antes, confiar de coração na palavra, ficar firme em tentações, em perigo de more, em perseguição - frente a homens, morte e diabo, e dizer Eia, aí se acha a promissão; eu vou ficar com ela, dando em troca corpo e vida, bens e honra, e tudo quanto possuo. Quando alguém se fia desta forma na palavra e na promissão de Deus, fazendo-o de todo o coração, isso se chama fé.

De tal fé o mundo nada sabe. Ora, qual fé! muitos dizem: Crer é coisa tão simples, tão fácil! Mas, caro amigo, se a coisa for tão simples e tão fácil, comece e tente de vez até onde vai chegar, principalmente numa hora em que o diabo investir contra o seu coração e angustiar você com todo o seu poder. Aí você vai fazer a experiência que crer em Cristo dá trabalho e esforço, assim que, quando a morte o sobressalta, você possa dizer. Mesmo assim eu não tenho medo de ti. Pois eu creio em Jesus Cristo e fui batizado nele, por isto o céu está aberto para mim, etc. Pois a fé se atreve, ousadamente, em Cristo, alegre e feliz, não teme a morte, não empalidece perante o juízo de Deus. Mas enquanto você ainda continuar triste e desolado na tentação, enquanto continuar temendo a morte e a empalidecer perante o juízo de Deus, será seguro sinal de que ainda lhe está faltando a fé.

Tais hipócritas menosprezam a doutrina acerca da fé, achando que crer para eles é coisa de nada: E que eles jamais experimentaram o que é sentir o coração desolado e a consciência assustada. Por isso é que vão seguindo o seu caminho com tanta segurança. Mas quando morte e pavor os sobressaltam, caem no desespero de vez. E então que eles ficam sabendo qual a arte que leva à fé, a saber não é coisa de língua, que pronuncia meras palavras, nem é algum raciocínio vazio e podre; mas é levantar a cabeça, tomar ânimo e coragem, é teimar em Cristo, em contraposição a pecado, morte, inferno, lei e má consciência. Quando a lei o culpar e acusar, você dirá: Discuta lei com quem quiser. Agora não posso ocupar-me com você. De momento nada quero saber acerca de meus pecados. Você poderá pregar-me o quanto quiser que justiça tem de ser feita. que eu vou fazer é voltar-lhe as costas dizendo: A justiça que fique onde bem entender. Não quero tratar dela agora, mas volto-me para cá, para Cristo, ouvindo a sua pregação: Quem crer e for batizado, será salvo¨. Isso é que quer dizer fé.

Contra tal doutrina de fé e salvação o diabo vai lutando com todo o seu poder, através de seus falsos apóstolos e suas quadrilhas. Estes acrescentam seus comentários dizendo que as coisas devem ser entendidas da seguinte forma: Quem crer e fizer boas obras, será salvo. Aí mais uma vez será necessário que você esteja preparado, distinguindo bem as coisas, e que diga: Sei muito bem que a fé pratica boas obras, quando for autêntica, e que não se trata de fé verdadeira se ela não for seguida de boas obras. Mas abrir o céu e ser salvo - isso é coisa da fé, não das obras. Antes de tudo, preciso ter o tesouro principal da salvação. Quando, porém, pela fé em Cristo, meus pecados me tiverem sido perdoados, quando o céu houver sido aberto e quando eu tiver sido salvo, aí é que eu digo: Faça-se justiça!

Assim será necessário distinguir bem a doutrina da fé e a doutrina das boas obras, deixando cada parte permanecer em seu devido lugar. Pois mesmo sendo necessário tratar-se da doutrina das boas obras, estas se comparam meramente com as folhas, as maçãs ou as peras que uma árvore carrega. A fé, porém, é a árvore que produz ambas as coisas, folhas e frutos. As boas obras deverão permanecer aqui por baixo, entre os homens, servindo ao próximo. A fé, porém, sobe às alturas e lida com Deus, recebe perdão dos pecados, vida e salvação - ofertados pelo evangelho, em Cristo. Esta fé, no entanto, como já dissemos, não é nenhum pensamento simples e vazio, antes é viva confiança, assim que nos fiamos na promissão, de todo o coração, teimamos nela, e tomamos coragem na luta contra pecado, morte e diabo.

Por isso, digo eu, o mundo nada disto entende. Contudo, o juízo está aí, qual violento estrondo de trovão, derrubando por terra tudo que não for da fé em Cristo. Quem não crer, será condenado, seja judeu ou gentio, monge ou freira, bispo ou barbeiro, imperador, rei ou príncipe, burguês ou camponês, sem nenhuma exceção, faça o que quiser. Se não crer, isso é, se não conhecer a Cristo e nele não teimar na luta contra pecado, morte e diabo, ele está condenado. Frente a isto nada adianta, circuncisão nem lei de Moisés, capuz de monge nem tonsura de padre, missa nem peregrinação, jejum nem oração de qualquer obra boa. Pois está escrito: ¨Quem não obedecer ao Filho, não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus¨ (João 3.36).

Mas bem como a fé não é nenhum pensamento sonolento nem alguma ilusão humana, antes é uma viva confiança na graça de Deus, confiança radicada no coração, fonte da qual emana tudo que é bom, assim também a descrença não é mero pensamento ou sonho, mas sim uma fonte de pus existente no fundo do coração, tendo por consequência uma multidão de outros pecados: as pessoas vão por seu caminho, seguras e altivas, desprezando a Deus, odiando e invejando o próximo, cometendo toda sorte de males contra ele, e mesmo assim não sentindo com isso a voz da consciência, ou, quiçá, atemorizando-se e caindo em desespero. Pois as obras da descrença não são ocultas, mas manifestas, como Paulo diz (Gálatas 5.19), ao enumerar as obras da carne. Por isso a descrença não é nada de manso, que jaz no coração descansado e festejando, mas brota para fora produzindo quaisquer tipos de maus frutos que se possam imaginar. Mas, por seu lado, também a fé não é coisa morta, mas é algo de vivo e poderoso, que faz o coração ser corajoso e alegre, e teima contra o pecado e a morte dizendo: Não me quero assustar tanto assim. Pois eu tenho um varão, Cristo. Este disse: ¨Quem crer e for batizado, será salvo¨. Com isso eu permaneço, e confiantemente ouso tudo por ele.

Tal fé, como já dissemos, não pode ser aprendida de uma só vez, em sua totalidade. Também no coração dos santos continua existindo enorme fraqueza; assim aqui vem escrito acerca dos 11 apóstolos, que eles ainda são de corações duros quanto a crer, e que assim vão sendo censurados por Cristo. Eles creem, mas a sua fé é fraca, e se Cristo não tivesse regado a plantinha deles, ela teria murchado. Por isso não passam de ingênuos os que acham que a fé vai sendo derramada na pessoa de uma vez, como que a baldes. Se eu quisesse censurar algum deles afirmando que não tem fé, ele se incendiaria em cólera dizendo: Então você acha que eu sou um turco descrente ou pagão? Pois logo que ouvirem alguém mencionar a fé, pensarão: nenhuma descrença mais permanece dentro deles. Mas não se diz somente acerca dos onze o que vem escrito aqui: ¨Jesus censurou sua falta de fé e a dureza de seu coração¨, antes se diz a mesma coisa de ti e de mim e de todos nós coletivamente - que não cremos e que temos um coração duro. Pois se crêssemos, nosso coração seria mais corajoso e mais alegre, e não se assustaria com tanta facilidade. Da mesma forma, nós seríamos mais piedosos e mais prontos para praticar qualquer obra boa. Mas já que continuamos tristes e amedrontados, e, por causa disto, frios e preguiçosos para fazer o bem, e já que em nenhuma parte demonstramos progresso, será sinal seguro de que nosso coração continua cheio de descrença. Portanto não posso excluir-me deste texto, admitindo que eu e meus semelhantes ainda continuamos atolados em descrença e dureza de corações. Mas já que nos agarramos à palavra dita por Cristo: ¨Quem crer e for batizado, será salvo¨, o texto nos ajudará a prosseguir.

Por tal razão a palavra deve ser tratada, aprendida e praticada constantemente, para que, ao chegar a tentação, fiquemos firmes. Onde você quiser ser seguro e sonolento, sem vontade de exercitar-se na palavra e na fé, o diabo não vai demorar em derrubar você por uma tempestade, levando-o de roldão, como que por aguaceiro. Mas onde você lidar diligentemente com a palavra, exercitando-se na fé, com o tempo você será uma pessoa que constantemente haverá de regar a plantinha, de forma que ela não murche, mas se torne capaz de resistir ao diabo. Por isso a fé não pode ser aprendida totalmente de uma só vez, mas ela quer ser praticada sempre, e a palavra quer ser tratada constantemente. Pois a palavra e o Espírito Santo são a água com a qual a plantinha vai sendo regada.

Assim devemos aprender este evangelho, entendendo qual seja a diferença entre a doutrina acerca da fé e as outras doutrinas. Outras doutrinas, que lidam com obras, são doutrinas infernais, que pregam para dentro do inferno. Mas a doutrina acerca da fé é doutrina celestial, mais sublime do que todas as demais. A lei deverá ser observada, sem dúvida. Mas já que somos incapazes- de observá-la, agarramo-nos em Cristo, para que, pela fé que temos nele, sejamos salvos. E nesta fé vamos indo, fazendo o que conseguimos fazer. Mas isso não é possível aprender de uma só vez, de forma plena. Por isso a palavra quer ser tratada constantemente, e a fé quer ser praticada. Para isto Deus nos dê sua graça em Cristo.

Amém.


10 Sermões sobre o Credo - Martim Lutero

Prefácio de Lindolfo Weingärtner

O Primeiro Artigo do Credo Apostólico

Mateus 6.24-30

O Segundo Artigo do Credo Apostólico

Lucas 2.1-14
Lucas 22.7-20
João 19.13-30
Marcos 16.1-8
Lucas 24.13-35
Marcos 16.14-20
Mateus 25.1-13

O Terceiro Artigo do Credo Apostólico

Atos 2.1-13
João 10.12-16
  


Autor(a): Martim Lutero
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 16 / Versículo Inicial: 14 / Versículo Final: 20
Título da publicação: 10 Sermões sobre o Credo / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1987
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 28384
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Mesmo que não sejamos cristãos tão bons como deveríamos ser, e somos ignorantes e fracos tanto na vida como na fé, Deus ainda assim quer defender a sua Palavra, pela simples razão de ser a sua Palavra.
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