Marcos 6.6b-13

06/08/2000

Prédica: Marcos 6.6b-13
Leituras: Amós 7.10-15 (16-17) e Efésios 1.3-14
Autor: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: 8° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 06/08/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Pentecostes


Introdução

A leitura do Evangelho de Marcos continua sendo um permanente convite para ver no Filho do homem revelado no Evangelho a vida e a prática de Jesus de Nazaré. Mais do que uma releitura da prática de Jesus pela comunidade, este Evangelho é um testemunho de fé, de uma vida comprometida com os valores do reino de Deus por causa de Jesus, o Cristo.

Mapeando o terreno

Depois da brilhante abertura de seu Evangelho (Mc 1.15), o evangelista nos brinda com uma série de conflitos (2.1-3.6) enfrentados por Jesus. Na sequência (3.7-8.26) Marcos apresenta parábolas, sinais e milagres orientados para o discernimento da comunidade. Neste contexto temos, espremido entre a narrativa da morte de João Batista (Mc 6.14-29) e o escândalo causado por Jesus entre seus conterrâneos (6.1-6), o relato do envio dos discípulos.

Missionários itinerantes

O texto de Mc 6.6b-13 deve ser lido no contexto de um fenômeno muito amplo e diversificado presente no cenário em que o cristianismo deu seus primeiros impulsos missionários.
Segundo G. Theissen (p. 59), o cristianismo itinerante era um fenômeno amplo no âmbito do cristianismo primitivo, embora não estivesse circunscrito a ele. Aos carismáticos itinerantes devemos a configuração e transmissão de uma conduta ética pautada por uma existência sem pátria, sem propriedade e sem direito à defesa.

Sabemos que no Novo Testamento o fenômeno não se restringe apenas ao círculo dos doze. Conforme Clevenot, Marcos constitui diversos círculos de pessoas em torno de Jesus segundo certa importância e proximidade. Ao círculo de Jesus Marcos contrapõe o círculo que se estrutura em torno do templo. O templo é cercado pelos sumos sacerdotes, os letrados e senadores (11.27). Depois vem o círculo dos fariseus (2.16), seguido pelo círculo da multidão.

No campo de força onde Jesus é o centro, o primeiro círculo é ocupado por Pedro, Tiago e João (9.2; 13.3). Em seguida vêm os apóstolos, os doze escolhidos (6.30; 10.23). Numa dimensão mais distante Marcos menciona os acompanhantes de Jesus (4.10). No círculo seguinte estão aqueles que se aconchegam ao redor de Jesus (3.32,34). Por fim, Marcos ainda menciona as pessoas provenientes de todas as partes (1.28; 1.45).

Portanto, no contexto dos diferentes círculos que se estruturam em torno de Jesus conforme o Evangelho de Marcos, os doze ocupam uma posição estratégica privilegiada em função da missão que lhes é confiada.

Além do destaque dado por Marcos aos doze, vale lembrar que tanto Paulo, Barnabé (At 14.4), Andrônico e Júnias (Rm 16.7) quanto muitos outros missionários da Igreja primitiva também se enquadram na categoria de missionários itinerantes. O fato de esses carismáticos itinerantes serem denominados de diferentes formas — apóstolos, discípulos do Senhor (Papias) ou simplesmente doze discípulos —, mostra que por trás dessa variedade se esconde um fenômeno com características diversificadas. Na base desse fenômeno podemos ver uma preocupação cristã em se diferenciar dos filósofos populares cínicos e dos pedintes ambulantes que circulavam por trilhas semelhantes às percorridas pelo cristianismo primitivo.

Ao missionário itinerante cumpre uma missão especial: ser a voz de Jesus. Ele transmite suas palavras. É o enviado de Jesus. O conteúdo da pregação dos carismáticos itinerantes é uma palavra de Jesus. Neles está presente a consciência da representação. Por isso devem ser acolhidos como o Senhor.

O texto

V. 6b: Ao contrário do conceito de missão que se torna hegemônico posteriormente na Igreja, a comunidade de Marcos vê seus desafios missionários em suas imediações. Não são os confins da terra, nem as nações, mas a vizinhança, as aldeias do interior da Galiléia os destinatários da missão de Jesus.

V. 7: Na onda do misticismo a teologia por vezes tem negligenciado o poder do mal presente no mundo. A comunidade de Marcos nos testemunha rum extrema clareza que os discípulos são enviados tendo poder sobre os maus. Em outra oportunidade o espírito mau também é chamado (k- impuro, demônio, Satanás ou Belzebu. É o contrário do Espírito de Deus. O espírito da maldade se faz presente nas pessoas e organizações que permitem a dominação, a exploração e a prática de males que atentam contra a vida. Jesus confere aos seus enviados o mesmo poder que ele tinha, a mesma força de Deus que o fez enfrentar todas as manifestações do mal.

Jesus enviou seus discípulos dois a dois. Esta prática reflete a estratégia missionária da comunidade de Marcos. Ninguém é enviado sozinho. Missão exige companhia.

V. 8: A ordem de não levar nada está inserida no contexto dos missionários itinerantes. Porém dois aspectos se sobressaem aqui. Primeiro, a afirmação dos doze. Ao negar que levem suprimentos para a jornada, Marcos afirma a condição dos enviados. Eles fazem uma opção de vida. Na opção afirmam o projeto. Segundo, a identificação. Aos discípulos é permitido somente levar o bordão. Estão proibidos o alforge, a sacola para pedir esmola e a carteira, a bolsa usada por qualquer viajante para guardar dinheiro. Na negação está a identificação dos mensageiros de Jesus. Eles não se igualam aos filósofos populares e mendicantes da época, nem aos comerciantes e peregrinos da região.

V. 9: No versículo anterior a recomendação diz respeito à missão. Agora está relacionada com o missionário. Ao destacar-se sandálias e túnica novamente é introduzido o aspecto distintivo do missionário cristão. Antes de ter uma mensagem, ele próprio é uma mensagem. O evangelho passa por sua apresentação e comportamento ético. A sandália também destaca o aspecto militante da boa nova. Tal qual os soldados romanos na época, também os discípulos devem estar prontos para a batalha. Na túnica novamente é destacada a questão da renúncia evangélica.

V. 10: Neste versículo Marcos chama a atenção para o fato de que as pessoas que acolhem o evangelho merecem toda a atenção por parte dos discípulos. Este acolhimento se reflete na hospitalidade. Sabemos pela Primeira Carta de Pedro que a hospitalidade foi uma das marcas do cristianismo primitivo, pelo menos na Ásia Menor.

V. 11: Marcos destaca neste versículo o aspecto conflituoso da missão cristã. Os discípulos devem ter consciência de que a adesão ao projeto de Jesus não é ponto pacífico neste mundo. Pelo contrário, há forças e poderes que lhe fazem oposição. Para os discípulos, a recusa do evangelho não deve ficar na surdina. Sempre e quando houver manifestação explícita da não-aceitação, é preciso manifestar a indignação. Por isso, faz-se necessário sacudir a poeira.

Vv. 12-13: Na sequência o evangelista descreve a atividade dos enviados. A pregação consiste em proclamar a necessidade de conversão, em expulsar demônios e curar doentes. Nestas três ênfases da missão apostólica é destacada a estreita vinculação entre evangelho, exorcismo e cura. Ao contrário do que se poderia pensar num primeiro momento, o óleo não remete para a prática que conhecemos como unção dos enfermos, mas para o aspecto medicinal. Na história do bom samaritano o óleo aplicado nas feridas da vítima de violência nos ajuda a compreender a prática dos discípulos aqui narrada. Naquele tempo, o óleo tirado da oliveira tinha valor medicinal. Embora nosso texto não mencione o tipo de óleo, é importante atentar para esta prática de uma medicina popular presente na missão dos enviados de Jesus.

No que diz respeito à expulsão de demônios, certamente haveria necessidade de aprofundar bem mais a questão para não cair no reducionismo de acreditar que o demônio se limita apenas a possessões como as caracterizadas no meio pentecostal e carismático. Demônio para Jesus é bem mais do que uma simples entidade que se apodera de um indivíduo. A comunidade de Marcos viveu sua fé na contingência de fazer frente ao demônio.

Acentuando aspectos

Pelos menos dois aspectos se destacam nesta passagem de Marcos. Primeiro, a questão da conduta ética dos discípulos. Embora em alguns aspectos sua prática possa ser identificada com comerciantes, filósofos populares e peregrinos mendicantes, os enviados de Jesus se distinguem pela renúncia implícita nas opções que fazem.

O segundo aspecto está diretamente relacionado com a prática de Jesus. Aos enviados compete dar continuidade à prática dele. Certamente nem toda a prática de Jesus está contemplada na prática dos discípulos. No entanto, para a comunidade de Marcos parecem ser fundamentais o poder sobre espíritos maus, a proclamação que chama à conversão, a expulsão dos demônios e a cura.

Pensando na pregação

A partir do texto de Mc 6.6b-13 muitas opções se apresentam ao pregador. Uma possibilidade seria motivar a comunidade de hoje a se inspirar nas prioridades da comunidade de Marcos para definir suas próprias prioridades a partir da prática de Jesus.

Outro caminho poderia seguir por alguns indícios que nos são apresentados no texto. Primeiro, onde começa a missão? Nós, por via de regra, estamos tão condicionados pela perspectiva missionária lucana que facilmente perdemos de vista os desafios locais e regionais da missão. Estamos tão afoitos para sair e ir que deixamos de perceber que as redondezas também são um vasto campo missionário. Em tempos de mundo globalizado parece que a dica missionária da comunidade de Marcos se torna ainda mais consistente. Como diz o ditado tão em voga: Quem quiser ser global, que cante na sua aldeia. Marcos nos desafia a tornar eficaz a evangelização na própria terra. Vale destacar que o evangelista apresenta este relato depois de constatar que ninguém é profeta em sua própria terra (6.4).

Uma segunda sinalização do texto aponta para o aspecto metodológico da missão. Como somos enviados? Certamente a comunidade de Marcos tinha a clareza para perceber que naquele terreno missionário havia necessidade de unir forças. Como diz a canção, sozinho, isolado, ninguém é capaz. Este aspecto nos desafia como Igreja a repensar nossos ministérios pensados em função de estruturas que individualizam. Nessa mesma questão metodológica também transparece o desafio da pobreza apostólica. Como nossas opções de vida dão credibilidade à mensagem? Até onde é possível coadunar exigências institucio¬nais com a radicalidade da exigência do evangelho? É preciso lembrar que os carismáticos itinerantes cristãos primitivos eram marginais (Theissen, p. 49). Basta verificar que conceito nós temos hoje acerca de pessoas sem moradia fixa e sem renda regular para constatar o conceito que os missionários cristãos deveriam ter junto à população.

Uma terceira luz do texto aponta para uma questão pastoral pouco refletida em nosso jeito de ser Igreja: como lidamos com conflitos, com a rejeição do evangelho? Até que ponto nós como missionários nos indignamos diante da negação do evangelho? Lembremo-nos de que não se trata de uma negação racional ou filosófica. Trata-se de uma negação prática que na comunidade de Marcos passa pela hospitalidade.

Bibliografia

CLEVENOT, Michel. Lectura materialista de la Bíblia. Salamanca : Sígueme, 1978.

MOSCONI, Luis. O Evangelho segundo Marcos. Belo Horizonte : CEBI, 1989.

THEISSEN, Gerd. Sociologia da cristandade primitiva. São Leopoldo : Sinodal, 1987.

WALKER, Décio, KONZEN, Léo. Evangelho segundo Marcos. Belo Horizonte : CEBI, 1990.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Flávio Schmitt
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 8º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 6 / Versículo Final: 13
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12821
REDE DE RECURSOS
+
O meu Deus é a minha força.
Isaias 49.5
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br