Marcos 7.31-37

Auxílio Homilético

07/09/1997

Prédica: Marcos 7.31-37
Leituras: Isaías 35.3-7 e Tiago 1.17-27
Autor: Gerd U. Kliewer
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 07/09/1997
Proclamar Libertação - Volume: XXII

 

1. O Texto

A localização geográfica no v. 31 mostra que o autor não está familiarizado com a geografia da região. Não faz sentido passar pela região das Dez Cidades, indo de Tiro ao mar da Galiléia. O autor quer destacar a continuidade com a perícope anterior, que descreve uma cena acontecida na região de Tiro. No mais, o texto original apresenta um relato compacto e dinâmico. As variantes não afetam nada essencial. As traduções de Almeida, da Bíblia na Linguagem de Hoje e da Edição Pastoral mantêm a dinâmica do texto. As três versões interpretam as palavras cuspindo tocou a língua dele no v. 33 do texto original no sentido de que Jesus teria passado um pouco da sua saliva na língua do surdo-gago. Bem pode ter sido assim, tendo em vista também o relato no capítulo seguinte (Mc 8.22-25), no qual Jesus passa saliva nos olhos do cego para curá-lo.

2. Comentando o Texto

V. 31: Jesus está voltando de uma excursão para além da sua terra natal, a Galiléia. Antes de iniciar a sua caminhada para Jerusalém, para a cruz, ele deixa claro que a sua missão não se restringe à sua gente na Galiléia, aos judeus. Inclui também os estrangeiros, os gentios. É esta a mensagem que Marcos quer passar através da descrição geográfica pouco acertada neste versículo: Tiro, Sidom, Decápolis — as Dez Cidades — são terra dos outros, dos impuros, dos que não são gente como nós.

V. 32: Entre essa não-gente há pessoas que têm fé em Jesus Cristo. Crêem que ele pode ajudar, que nele há poder de curar. E trazem o surdo que, devido à sua deficiência auditiva, não consegue falar direito. Pedem que lhe imponha as mãos. O surdo não vem sozinho. Como poderia? Não ouve o que as outras pessoas comentam, não escuta as histórias que as outras pessoas contam desse Jesus com quem está o poder de curar. Vê o movimento, o rebuliço, mas não entende. Precisa ser trazido.

V. 33: Jesus dedica-se a ele. Leva-o em separado, para longe da multidão. Por quê? Não seria uma oportunidade de revelar mais uma vez diante de toda essa gente quem ele é? Isso seria transformá-lo em objeto, usá-lo para fins escusos! Não, Jesus leva o surdo-gago em separado para mostrar-lhe que está à sua disposição. Quer estar frente a frente com ele, sentir o seu problema, sem interferência das outras pessoas, comunicar-se com ele. E como o surdo não ouve, apela para o tato. Enfia os dedos no ouvido dele, como se estivesse dizendo: Esta sua falta de audição agora é o nosso problema comum. E o toque na boca, com ou sem saliva, tem o mesmo sentido: Vamos ver se podemos fazer alguma coisa para melhorar a sua fala. O surdo-gago sente e vê estes gestos e entende. Não há nenhuma necessidade de ver os gestos de Jesus como mágicos, como prática de curandeirismo.

V. 34: Jesus olha para o céu, com um profundo suspiro. Pede orientação, pede força a Deus. Essa atitude evidencia que o poder de cura está com Deus, que Jesus, Filho de Deus encarnado em pessoa humana, tem que pedir a cura a Deus. Só então ele pronuncia a ordem: Abra-se!

V. 35: E os ouvidos do surdo se abriram e sua língua ficou livre. Assim, sem estardalhaço, acontece a cura. Não há uma expulsão de demónios, como em outros relatos do Evangelho de Marcos (Mc 1.21-28; 5.1-20; 7.24-30; 9.14-29). Há quem queira entender a expressão foi desfeita a amarração da sua boca no texto grego como vestígio de que a ideia de possessão demoníaca está presente, mas parece-me que tal interpretação exagera. Também não se pergunta pela fé do surdo. Ele foi entregue às mãos de Jesus, e este, com o poder de Deus, lhe restaurou a audição e, em consequência, a fala.

V. 36: O relato da cura termina aí. Mas Jesus, como em várias outras oportunidades, pede aos que estão presentes que não espalhem a notícia da cura. Mas não adianta. A notícia sobre Jesus que cura os doentes se espalha.

V. 37: O povo, porém, percebe que ali está alguém que é mais do que um simples curandeiro, dos quais havia muitos naquela época. Reconhecem nele o Messias, o enviado de Deus, anunciado pelos profetas. Vêem que aí se realiza a profecia de Isaías 35: Os cegos verão e os surdos ouvirão. O reino de Deus que restaura a saúde e a justiça e faz com que todas as pessoas ouçam a palavra de Deus está aí. Como ele faz tudo tão bem!

3. Refletindo sobre a Prédica

É a terceira vez que este texto é trabalhado em Proclamar Libertação. A primeira vez em PL IV, p. 163-171. O autor, Baldur van Kaick, destaca especialmente a questão do seguimento e do segredo messiânico (v. 36), e a partir destes aspectos desenvolve a sua sugestão de prédica. A segunda vez em PL X, por Nelso Weingärtner. Este pergunta pelo significado dos milagres de Jesus e os interpreta como sinais do reino de Deus. Exorta a comunidade a colocar sinais semelhantes junto aos marginalizados.

As duas abordagens são válidas e podem ser aproveitadas também hoje. Mas não as quero repetir. Por isso sugiro pregar, a partir deste texto, sobre a questão da cura de doentes na comunidade cristã. É uma questão que mexe muito com os membros das nossas comunidades. São convidados a participarem das igrejas que prometem milagres e praticam a cura de doentes nos cultos, ouvem os relatos dos vizinhos que dizem ter visto como uma pessoa desenganada pelos médicos foi curada. Eles mesmos são afligidos por doenças e outras tribulações e procuram auxílio que não encontram em sua comunidade. O/a pregador/a deve uma resposta à comunidade, e creio que o texto ajuda a dá-la. Quais os elementos que ele oferece?

a) A cura do surdo-gago acontece fora dos limites do povo judeu. Provavelmente ele era gentio. Em continuação ao relato da perícope anterior sobre a mulher estrangeira (vv. 24-30) temos a afirmação: a salvação que Jesus traz não se restringe aos que estão dentro da comunidade.

b) O doente é trazido a Jesus por outras pessoas que crêem no poder de Jesus. Ele não vem sozinho.

c) Jesus dá atenção especial ao doente. Leva-o em separado para comunicar-se só com ele. Faz isso pelos sentidos que funcionam: tato, paladar, visão. Pede a compreensão, a colaboração dele. Não o usa como objeto para demonstrar o seu poder de cura diante dos outros.

d) Jesus se comove, sente compaixão. Suspira. E pede poder do alto, de Deus para ajudar esse homem. Não cura por própria força, mas com a força que Deus me dá. E fala uma palavra de poder, uma ordem:' 'Abra-se! E a cura acontece.

e) Jesus proíbe que se faça propaganda com essa cura. Mas não consegue impedir que a notícia se espalhe.

f) Os que estão perto e os que ouvem reconhecem: aqui acontece o que Deus prometeu aos profetas: audição para os surdos, visão para os cegos, saúde para os doentes. Deus está agindo em Cristo Jesus!

Colocados assim, os itens acima quase parecem uma orientação, uma regulamentação de como a comunidade cristã deve lidar com a questão da cura de pessoas doentes. Precisa-se somente colocar comunidade crista onde «te Jesus. Pode-se fazer isso?


4. Comunidade Terapêutica

Afirmo que sim. O apóstolo Paulo nos diz que somos o corpo de Cristo e cada um é parte deste corpo (l Co 12.27). Na nossa teologia diacônica ensinamos: Cristo não tem outras mãos do que nossas mãos, não tem outros pés do que os nossos pés... Esse corpo de Cristo está a serviço. Recebeu a tarefa de curar. Por que Deus não lhe daria também o poder de curar? Comunidade cristã, portanto, por vontade de Deus, é comunidade terapêutica, comunidade que cura. Mas ela realmente exerce essa função na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)? Coloco alguns aspectos que podem ajudar:

a) As comunidades da IECLB deixam de lado, afastam pessoas doentes e atribuladas. Se alguém tem um problema, uma doença, a primeira coisa que faz é afastar-se das atividades da comunidade. Pastores e pastoras conhecem essa atitude: o casal que entra em crise desaparece da igreja. A família que se desestrutura, também. A filha portadora de deficiência é escondida. O culto dominical é uma reunião das pessoas sãs. Qualquer dor de cabeça é motivo para faltar. A maioria dos membros da IECLB acredita que só pode chegar ao culto, à convivência da comunidade e à mesa do Senhor com a sua vida moral, espiritual e corporal em ordem. Cura se procura em outro lugar. No médico, no hospital — o que não está errado —, mas também no curandeiro, na benzedeira, na umbanda, no espiritismo...

b) A oração pelos doentes nos cultos está se tornando prática mais frequente. Mencionam-se também o nome da pessoa e a doença. Mas geralmente ora-se por doentes ausentes. Pessoas doentes não são trazidas para o culto. Felizmente pelo menos as pessoas portadoras de deficiência mais e mais estão exigindo seu espaço. Às vezes há até pessoas dispostas a trazer doentes no seu carro para o culto, mas os próprios doentes negam-se. O que se pode fazer para integrar na celebração do culto as pessoas doentes e atribuladas?

c) Temos medo de tocar em pessoas doentes. No mínimo sentimos desconforto. A pessoa doente sente esse desconforto nosso. Pouco se usa, na IECLB, a imposição das mãos aos doentes, apesar de ser uma prática recomendada no Novo Testamento. Nas visitas a pessoas doentes não se deve ter receio de praticar o que propõe Tg 5.14s. E por que não levar alguém doente ao culto para que lá receba a bênção com imposição das mãos?

d) Existe algum pastor ou pastora da IECLB que, diante de um doente, tem coragem de pronunciar uma palavra de ordem, em nome de Deus, como: ' 'Abrase! Levante-se! Xô, Satanás!? Pastores da Igreja Universal do Reino de Deus fazem isso sem muito escrúpulo. Eu não teria coragem. Sentir-me-ia como se estivesse usurpando o lugar de Deus. Mas posso estar enganado. Precisamos refletir sobre essa questão.

e) Que esperamos do culto? Que os nossos membros esperam do culto? Certamente não esperam cura das suas doenças. Nem solução para os seus problemas psíquicos. Esperam orientação, comunhão, algum consolo. Esperam que o culto não dure mais de uma hora. E os pastores e pastoras? Estão conscientes de que a palavra de Deus é viva e poderosa e corta mais do que qualquer espada afiada dos dois lados (Hb 4.14)? Uma comunidade que não tem fé no poder de cura que recebeu de Deus poderá ser terapêutica?

f) Cura acontece sob múltiplas formas. Não somente por meio de milagres espetaculares. Poderiam as comunidades da IECLB tornar-se terapêuticas de maneira mais racional e silenciosa? Escreve o colega Leonídio Gaede: ' 'Enquanto os 'crentes' curam na frente de microfones e câmeras, nós curamos em silêncio na busca de medicina e alimentação alternativa; enquanto os 'crentes' amontoam muletas e fazem reportagem sensacionalista, nós curamos organizando PPDs.

O primeiro milagre não é a cura, mas o fato de termos saúde. Pessoalmente creio que a minha convivência e participação na comunidade cristã, as orações lá feitas por mim e outras pessoas reduzem em muito a minha conta no médico e no hospital. E sei que Deus também fará o milagre, se assim achar necessário e certo.

g) A teologia luterana desde a sua origem valorizou as palavras de Jesus e viu as suas obras milagrosas somente como confirmação delas. Lutero, no prefácio ao Novo Testamento, escreve:

O Evangelho de João e as cartas do apóstolo Paulo, principalmente aos Romanos, e a Primeira Carta de Pedro são o verdadeiro cerne do evangelho (...) Porque nestes textos você não encontra a descrição de muitas obras e milagres de Cristo, mas encontra descrito, de maneira magistral, como a fé em Cristo vence pecado, morte e inferno e dá vida, justiça e salvação, o que é a verdadeira causa do evangelho (...) Pois se tivesse que viver sem uma das duas, a obra ou a pregação de Cristo, então prefiro ficar sem as obras. Pois as obras não me adiantam nada; mas as suas palavras dão a vida, como ele mesmo diz (Jo 5.24). (Ap. Beintker, p. 68. Tradução do autor.)

Quais as consequências dessa ênfase teológica para a comunidade terapêutica? Certamente apoiaremos a maneira discreta com que Jesus quer ver (ratada a divulgação das curas que faz. Mas se a comunidade terapêutica realmente acontece entre nós, não será possível esconder o falo.

h) A comunidade na qual Jesus Cristo cura é o novo céu e a nova terra (Ap 21.1) que já está aí e que ainda esperamos. A promessa de que os surdos ouvirão, os cegos verão já se cumpriu e continua se cumprindo. Deus, em Jesus Cristo, tem poder de curar. Está livre para fazê-lo da maneira que quiser. Através da acolhida, do abraço fraterno que o doente recebe na comunidade. Através da perícia do/a profissional. Ou através do inexplicável. A comunidade terapêutica prestará o seu serviço sob o poder daquele que dá e mantém a vida, conforme a sua bondosa vontade, sabendo que tudo de bom que recebemos e tudo que é perfeito vem do céu. Tudo isso vem de Deus, o criador das luzes do céu. Ele não muda, e não há nele nem sombra de mudança (Tg 1.17). Haverá curas? Quem crer, verá.


5. Bibliografia

BEINTKER, H. Leben mit dem Wort. Erlangen, 1985.
KAICK, Baldur van. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1979. vol. IV, p. 163-171.
KIRST, Nelson et al, eds. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1984. vol. X, p. 408-412.


Autor(a): Gerd Uwe Kliewer
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 16º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 31 / Versículo Final: 37
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 16634
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