Marcos 9.43-48

Auxílio homilético

29/09/1991

Prédica: Marcos 9.43-48
Leituras: Números 11.4-6,10-11, 16,24-29 e Tiago 5.1-6
Autor: Nestor Paulo Friedrich
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/09/1991
Proclamar Libertação - Volume: XVI

1. Considerações iniciais

Participei de um estudo do Evangelho de Marcos por ocasião do Curso Intensivo do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) no 1° semestre de 1989. Na ocasião o assessor foi Sebastião Gameleira Soares, responsável pelo comentário do Evangelho de Marcos a ser publicado na coleção Comentário Bíblico Latino-Americano. O presente estudo reflete muito daquilo que foi visto naquela oportunidade, principalmente na segunda parte.

2. Contexto maior

O texto de Mc 9.43-48 faz parte do bloco maior que corresponde a Mc 8.22-10.52. Neste contexto encontramos os três anúncios da paixão. O bloco começa com a cura do cego de Betsaida e termina com a cura do cego de Jericó. O 1° bloco maior de Mc (1.14-3.6) culmina com a cegueira e oposição dos fariseus e herodianos, que irão conspirar contra a vida de Jesus. O 2° bloco maior (3.7-6.6a) termina com a cegueira e incompreensão dos habitantes de Nazaré. O 3° bloco termina com a cegueira dos próprios discípulos de Jesus (8.14-21). A cegueira tem papel importante em Mc. Jesus não é compreendido! Jesus encontra muita resistência, tem dificuldade de curar seus discípulos da cegueira quanto à proposta do Reino. Esta levanta adversários dispostos até mesmo a matar. Com a cura do cego, Mc aponta para a urgência e necessidade de abrir os olhos para a realidade que está à frente. Xavier Alegre constata que mesmo que Mc aponte para a atuação com poder de Jesus (4.21; 5.1-20; 5.21-43; 6.34-44), esta não leva os discípulos e os que cercam a Jesus a automaticamente crer nele. Ao contrário, parece que quanto maior o poder revelado por Jesus, tanto maiores a oposição e a incompreensão dos que o rodeiam (Xavier Alegre, p. 14).

Aspecto novo que surge neste bloco é a figura do CAMINHO. Imediatamente após a confissão de Pedro (8.29) o relato muda bruscamente de rumo. Primeiro, geograficamente, da Cesaréia de Filipe (8.28), atravessa a Galiléia (9.20), passa por Cafarnaum à margem do lago (9.33), depois segue rumo à Judéia (10.1). Esse caminho que começa na Cesaréia de Filipe termina em Jerusalém (cap. 11), centro de todo poder. Lá estão o templo, o Sinédrio, lá está concentrado todo o poder político e estão acumuladas todas as riquezas.

Neste caminho a Jerusalém percebem-se fatos interessantes. Não é uma caminhada fácil, mas marcada por tensões, por confrontos. Há um conflito de perspectivas, caminhos que não se cruzam e levam em direção diferente à proposta por Jesus. Alguns exemplos disto são Mc 8.32; 8.33; 9.30,33,34; 10.13,24,26,32.

O ensinamento de Jesus sobre o caminho vem após cada anúncio da paixão. A cada ensinamento sobre o caminho há um fracasso dos discípulos:

1o. anúncio: 8.31 — Fracasso: não expulsam espírito (9.14-29)
2° anúncio: 9.30-32 — Fracasso: quem é o maior? (9.33-37)
                                                    querem recompensa (10.28-31)
3° anúncio: 10.32-34— Fracasso: querem poder (10.35-40)

Na caminhada rumo a Jerusalém Jesus ajuda os discípulos a ver. A realidade que eles começam a perceber é monstruosa, implica associar-se ao destino de Jesus. A proposta de Jesus está sob a ameaça da perseguição, da cruz. O problema não é apenas que Herodes persegue, mas a perseguição condiciona a não se libertar o discípulo da ideologia dominante. O problema não é só desviar, mas também desviar Jesus. O nome de Jesus queremos que seja só nosso (9.38-40).

Onde está a dificuldade de aceitar a proposta de Jesus? Há dois obstáculos com os quais não poderemos chegar à paz!

1°: a vontade de poder (9.33-37; 10.35-40);

2°: a vontade de riqueza (10.17-31).

Enquanto não superarmos a vontade de riqueza e poder não conseguiremos nada. São dois condicionamentos: 1° econômico (riqueza) e 2° político (poder), formadores da ideologia. Em contraposição Jesus apresenta três grandes símbolos:

1. os pequenos: a criança (9.36-37; 10-13-16), mulher (10.1-12);

2. o pobre (9.42; 10.17-27);

3. o cego (8.22-26; 10.46-52).

Neste bloco de Mc 8.22-10.52, percebe-se como o fio condutor é o tema do caminho = seguimento/discipulado sob a cruz: ver! Tudo isto corresponde ao assumir uma nova prática: perder a vida, romper com espíritos impuros (que emudece, ensurdece, cega e aliena), ser o último e servidor, não se fechar, não escandalizar os pequenos, optar pelo marginalizados, romper com a riqueza, com o poder tirânico e dominador. O seguimento a Jesus no caminho da cruz implica uma determinada maneira de viver e não só uma compreensão intelectual da mensagem de Jesus (Xavier Alegre, p. 19). Fé é sinônimo de prática.

3. Contexto menor

O que temos neste bloco menor de Mc 9.33-50? O evangelista juntou uma série de ditos! Hans-Ruedi Weber escreve que Mc fundiu incidentes distintos como Mc 9.33-35 e 9.36-37, mas que podem ser lidos e compreendidos separadamente. O presente bloco, portanto, é uma coleção de ditos e incidentes unidos uns aos outros que servem como instrução para a comunidade (Weber, p. 43).

Cada uma destas partes está interligada por palavras conectivas especiais, o que facilitava a memorização, uma vez que na tradição oral estas passagens eram transmitidas juntas. Exemplo destas palavras conectivas são em meu nome (vv. 37, 38 e 41), criança e pequenino (vv. 37 e 42) (Weber, p. 43). Todos estes ditos conduzem ao mesmo tema, o seguimento, o discipulado.

O cenário de nosso texto é a casa (9.33). A casa em Marcos tem um lugar importante. É o lugar da comunhão de Jesus com os seus seguidores, pessoas mais chegadas. A casa é o lugar do ensino, da instrução exclusiva.

Inicialmente a proposta de texto para pregação não estava limitada aos vv. 43-48, mas sim aos vv. 38-50. Levando em conta o que já foi colocado antes, creio que o texto deva ficar delimitado aos vv. 43-48. Penso nestes vv. porque os símbolos mão, pé e olhos — o que corresponde à totalidade da pessoa — automaticamente nos remetem aos outros ditos! Outras informações sobre o texto, quanto à tradução e aparato crítico, podem ser encontradas no PL II, páginas 138-143.

4. Meditação

Todo o contexto maior revelou a dificuldade dos discípulos de entenderem a proposta de Jesus e sua missão. Verdadeira confissão de fé somente acontecerá diante da cruz (15.39). O contexto é marcado pela tensão entre Jesus e seus seguidores. Mc reflete a situação de uma comunidade perseguida. A perseguição promovida por Nero em 64 d.C. marcou as comunidades cristãs profundamente. São tempos de duras experiências. A proposta da cruz reflete esta situação terrivelmente concreta da opressão romana.

A proposta do Reino que Jesus faz é contrária à experiência feita com a dominação de terror imposta pelo romanos. Pressupõe uma mudança de valores, de visão, de caminhada, de ação. Os imperativos dos vv. 43, 45 e 47 apontam para isto, As mãos, pés e olhos englobam a totalidade da vida do discípulo.

A caminhada se faz na comunidade dos pequenos (Mc 9.30-49). Acolher a criança e para não escandalizar precisa arrancar o olho (visão), mão (serviço) e pé (caminhar junto). Isto significa o conjunto da antropologia, ou, a ideologia — economia — política. O importante é não macular os pequeninos (como faz o capitalismo). (CEBI, p. 29.)

É preciso mudar toda a maneira de agir, a maneira de ver, caminhar; esta nunca poderá prejudicar o irmão.

Michel Clévenot faz uma análise interessante ao afirmar que mãos, pés e olhos refletem três níveis diferentes da prática de Jesus. A cada nível Mc se refere a uma função específica do corpo humano. As mãos e também o toque apontam para o trabalho que transforma (curas) e devolve à vida (quer dizer, ao trabalho, ao amor). Segundo Clévenot, esta prática se dá ao nível econômico, o que é embasado pela acusação dos fariseus (3.2), conforme os quais curar é trabalho, portanto, proibido no dia de sábado. Os pés apontam para o movimento, direção, a figura do caminho. O deslocamento de Jesus não é apenas geográfico, mas tem um rumo, tem dimensão política, e os olhos ajudam na análise da situação para sair da ideologia dominante. Os olhos se voltam para os pequenos (Clévenot, pp. 140-141).

5. Experiência com o texto

Era uma vez...! Comunidade evangélica localizada numa cidadezinha de interior! Comunidade sempre em evidência! Ponto de referência para todo e qualquer evento! Bailes, comícios, reuniões, etc. Certo dia, por ocasião de uma festa de repercussão regional, dentre as muitas atrações programadas, uma foi enfiada pela porta dos fundos. Tratava-se de uma exposição de armas da Brigada Militar nas dependências da igreja daquela comunidade evangélica. Eram fuzis, metralhadora, cassetetes, granadas, etc. E agora? Houve uma situação de mal-estar, indignação! De outro lado também houve satisfação! As reações foram as mais diversas. Enumero as que foram a favor e contra a referida exposição. A favor:

1. Em outros anos também fizeram uma exposição de coisas antigas, entre as quais havia fuzis e espadas velhas.

2. Havia um grande interesse por parte da Brigada Militar em mudar a sua imagem negativa perante a sociedade.

3. Ora, disse outro, a tarefa da comunidade não é servir? Então, empresta o lugar pra eles mostrar o que têm!

4. Isso não faz mal algum!

5. Foi bom, deu para ver como é uma capa de chuva dos brigadianos!

6. Foi instrutivo. Até joguinhos de educação para o trânsito a gurizada ganhou! (Obs.: As crianças foram as maiores frequentadoras da exposição!)

7. O argumento decisivo foi: Tudo depende dos olhos com que você olha. O feio está dentro de você! (Com essa você justifica qualquer coisa.) Os argumentos contra foram:

1. A exposição fere os princípios cristãos!

2. A tarefa da Igreja é comprometer-se com o desarmamento e não com o armamento!

3. A tarefa da comunidade é a de promover a vida e não os instrumentos da morte!

4. As armas de um lado e a cruz de Cristo de outro não combinam com a mensagem de amor de Cristo. Armas devem ser destruídas e transformadas em instrumentos de trabalho (Mq 4.3).

5. Outros observaram que aquelas armas eram as mesmas usadas contra os agricultores sem terra, os movimentos populares e grevistas que lutam por melhores salários, vida mais digna. Perceberam que aquelas armas nunca são usadas contra quem é grande, tem poder, dinheiro, é patrão, latifundiário, da UDR! Mas sempre são usadas contra os pequenos, aqueles que a própria sociedade marginalizou!

Em meio ao conflito, às muitas discussões que aconteceram, o texto de Mc foi importante porque fez brotar uma série de questões referentes à nossa vida como discípulos, como comunidade!

PÉS: Qual é o nosso papel como comunidade? Projetar o nome de um município, como queriam alguns? Não seria a nossa tarefa projetar os valores do reino de Deus, da vida, do seu amor e perdão? Aonde queremos chegar? Que caminho estamos percorrendo?

MÃOS: Qual é a prática em nossas comunidades? Elas transformam? São práticas em função de nosso próprio caixa? Quem é o objeto desta prática, de nosso toque das mãos?

OLHOS: Qual é a visão, a perspectiva que a nossa vida pessoal e da própria comunidade reflete? Nossos olhos estão voltados para quem? Nosso umbigo?

O texto é extremamente rico pelo seus símbolos! É rico igualmente para uma reflexão sobre o discipulado em meio à realidade em que vivemos. A experiência que fiz com este texto coincidiu com uma série de acontecimentos vividos e sofridos juntamente com outras pessoas. Creio que a grande conquista foi a oportunidade que tivemos para refletir sobre o papel da comunidade e a responsabilidade de cada um em meio a esta caminhada. O texto de Mc e as questões acima levantadas foram igualmente importantes para uma avaliação do meu próprio pastorado!

6. Subsídios litúrgicos

1. Saudação:

Cristo não tem mãos

Cristo não tem mãos,
só as nossas mãos
para realizar seu trabalho hoje.
Ele não tem pés,
só os nossos pés
para conduzir pessoas em seu caminho.
Ele não tem lábios
para contar às pessoas sobre sua morte.
Ele não tem ajuda,
só a nossa ajuda
para levar pessoas a ele.
Nós somos a única Bíblia
que o público ainda lê.
Nós somos para os pecadores o evangelho,
para os zombadores a confissão de fé.
Nós somos a última mensagem de Deus,
escrita em palavras e ações.
(Ani Johnson Flint)

2. Leitura bíblica: Tiago 5.1-6.

3. Hinos: Cancioneiro Quero Cantar ao Senhor n° 1: hinos n° 1; 10; 12; 16. Cancioneiro Quero Cantar ao Senhor n° 2: hinos n° 4; 8; 10; 12; 19.

4. Orações: Creio que estas devem refletir a situação concreta da comunidade c de seu discipulado. Neste sentido creio ser importante interceder para que Deus abra nossos olhos para conseguirmos perceber a realidade de conflitos, injustiças cm que vivemos. Que nos encorage a assumirmos a causa do evangelho, de seu reino.

7. Bibliografia

Atas do Curso Intensivo de Bíblia do CEBI. 1989. Tema: Evangelho de Marcos (as¬sessor: Sebastião Gameleira Soares).
ALEGRE, Xavier. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. N° 8 — 1988. CEBI.
CLÉVENOT, Michel. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro, 1979.
Evangelho de Marcos — Estudo. CEBI. Relatório da apresentação dos assessores Pe. Frei Gilberto Gorgulho e Pastor Verner Hoefelmann.
WEBER, Hans-Ruedi. Jesus e as Crianças. São Leopoldo, 1986.


Autor(a): Nestor Paulo Friedrich
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 19º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 43 / Versículo Final: 48
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1990 / Volume: 16
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13065
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