Mateus 18.1-5

Auxílio Homilético

31/12/2012

Prédica: Mateus 18.1-5
Leituras: Isaías 55.6-11 e Hebreus 13.8-9b
Autor: Antonio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: Véspera de Ano Novo
Data da Pregação: 31/12/2012
Proclamar Libertação - Volume: XXXVII

Para meus curumins Pedro Gabriel e Vitória Luiza

1. Introdução

Aprendi com meu filho de 10 anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi.

(Oswald de Andrade)

O menino pergunta ao eco
onde é que ele se esconde.
Mas o eco só responde: “Onde? Onde?”
O menino também lhe pede:
“Eco, vem passear comigo!”
Mas não sabe se o eco é amigo
ou inimigo.
Pois só o ouve dizer “Migo”.

(Cecília Meireles)

As crianças são parâmetro da salvação. Especialmente os “criadinhos”, os pequenos serviçais, que trabalham na casa dos patrões. Elas são as que melhor encarnam o espírito desses despossuídos de tudo, que possuem somente a esperança de esperar o reino de Deus. Por isso mesmo são seu alvo preferencial – não único, nem privilegiado –, já que privilégio é sempre a negação do coletivo. Sobretudo e especialmente quando os privilegiados somos nós. Ou nos arrogamos a isso. Ou ainda pior: tomamos de assalto essa condição.

O ensino tornado parábola na fala de Jesus provoca a reflexão dos discípulos – homens e adultos –, e a própria forma de instrumentalizá-la é quase um desacato. Mas essa ação – tornar central o periférico – não é inusitada e nem nova em Jesus. Suas andanças e curas pela Galileia, que lhe valeram os epítetos de “galileu” e “nazareno” e que por si já deslocam o centro da reflexão para a periferia, que os olhos da época se recusavam a focar, como se o treinamento ideológico e o condicionamento cotidiano lhes atraíssem o olhar, que traem a lógica divina. A seu modo.

É essa lógica divina dos primeiros cinco versículos do capítulo 18 do Evangelho de Mateus que coloca a exigência para compreender o sentido da pregação do reino de Deus e seu significado na prática pastoral proposta.

Ela encontra sua gênese no Dêutero-Isaías (55.6-11), quando o profeta pregava no exílio, chamando o povo a vir ao encontro de Iahweh, a deixar caminhos maus, buscando dele a compaixão e o perdão, a dar-se conta de que sua lógica circunstancial é diferente da dele, determinando caminhos igualmente distintos. Por isso são chamados aos caminhos que estão acima dos próprios numa economia divina abrangente e que já se realiza enquanto é anunciada, que tem assegurado o fim pelo próprio Iahweh, que a si chama todos os fatos e que retorna ao mesmo Senhor em nome do qual o profeta falou, efetivada, realizada, com a palavra proferida cumprida e a vontade tornada realidade.

E chega à piedade e à observância pessoal como a fé que se deve guardar, a memória que evoca convicções, provê os critérios para distinguir o verdadeiro do falso e que se desdobra num modus vivendi que agrega trabalho, prática de piedade e autêntica espiritualidade.

Assim, a mensagem bíblica baseia-se na experiência do povo no exílio babilônico, costurando dores, vivências, incertezas, que, para quem soube esperar, foram aos poucos se tornando certezas. É essa experiência vivida que é retomada na pregação e prática de Jesus, cuja presença é ela mesma a base do amálgama que reúne a memória da dor, da invocação e do resgate e que séculos depois se torna apelo e resposta às dores dos contemporâneos, na qual toda essa saga da experiência do povo encontra a metáfora da criança tornada símbolo da experiência livre, da humanidade comum e da fragilidade assumida.

2. Exegese

Essa perícope (Mt 18.1-5) compõe o quarto discurso do Reino e dá normas referentes ao conjunto da igreja a partir da comunidade local, ao que parece sem guardar muitas relações com os textos que a antecedem e sucedem. A imagem que surge é a de uma criança colocada no centro da roda. Surpreendentemente, não é a imagem de um homem adulto, astuto, com seus vícios de personalidade (egoísmo, orgulho, desespero, violência e ódio), mas a de uma criança.

O texto começa com a pergunta surgida dos discípulos reunidos em torno de Jesus: “Quem é o maior no reino dos céus?” (v. 1). A pergunta não era nova, já que surgiu em outras ocasiões e sempre provocando debates, disputas e até gesto saudaciosos, marcados pelas articulações, acercamentos do poder ou esforços de corrupção, com vistas à obtenção de resultados. A circunstância acontece na mesma casa em que estavam Jesus, Pedro e outros discípulos.

Ele chamou a criança, colocou-a no meio da roda (v. 2) e disse a palavra que é o centro da perícope: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (v. 3). Aqui indica o caminho da conversão de vida a partir do parâmetro que são as condições da criança.

Em seguida, ele destacou mais um elemento na condição da criança “ser pequenino” e estabeleceu uma relação com a condição de valor e importância no reino dos céus: “ser o maior”, medida usada na pergunta que provocou o debate. Chegando a dizer que quem se tornar pequenino como a criança será o maior no reino dos céus.

E, por fim, colocou um critério ainda mais definitivo para entender a importância da presença da criança, por ela (significante) e pela mensagem que anuncia (significado), referindo-se à aceitação do evangelho. Receber aquela pessoa que pela sua simplicidade porta o evangelho é receber o próprio Jesus. Essa imagem de humanidade frágil é a portadora da mensagem e de seu sentido, chegando mesmo a quase se confundirem.

3. Meditação: Por que a simplicidade não excita?

A sofisticação atrai mais do que a simplicidade. Pelo menos as pessoas que preferem utilizar o saber adquirido para defender os próprios interesses, alcançar posições de influência, força e mando e assegurar aparentes vantagens. Como a sociedade se baseia num modelo extremamente competitivo, que desenvolve vícios como arrebatar, acumular e assegurar vantagens, isso é tornado um princípio de vida, assim como o lucro, para as pessoas que julgam o enriquecimento um parâmetro absoluto.

Nesse contexto sociocultural em que se encontram as igrejas, os apelos às vantagens e aos lucros são tão evidentes, perpassam de tal modo as diferenças entre grupos humanos e marcam tão claramente as sociedades, que, no mais das vezes, a busca pela vantagem influencia mais fortemente os que julgam defender os valores do evangelho do que o contrário.

A criança mencionada no texto, tornada medida para explicitar a condição dos que são chamados a testemunhar o reino de Deus, não tem boa condição social, não é de família abastada e nem tem o futuro assegurado. Ao contrário, é alguém da família dos servidores da casa, “um ‘criadinho’ [que ele] colocou no meio da roda de conversa. E disse: se não mudardes e vos tornardes como esse pequenino, não entrareis no reino de Deus. Quem quer que se torne tão pouca coisa como esse pequenino, esse é o maior no reino de Deus e quem o acolhe por causa de mim acolhe a mim” (MATEOS; CAMACHO, p. 205).

Aqui o texto faz um afunilamento para a figura da criança de até 12 anos, trabalhadora e já integrada ao mundo do trabalho por meio da família. Esse paidion (diminutivo de pais), o moço, o menino é um servidor da casa. Trata-se da mesma palavra para designar o moço do serviço, o moço do bar, a moça do caixa. Aristófanes descreve socialmente a função dessa criança, chamando-a de um escravinho, um criadinho, pequeno, menino de uma classe social de servidores, um jovem servente. É esse que Jesus põe no meio da roda, faz o centro das atenções e transforma em modelo para seus discípulos. Com isso ele estabelece um choque e provoca um momento de reflexão (MATEOS; CAMACHO, p. 205). Essa intervenção toma o ar de exortação, que possibilita reavaliar a expectativa que cada um tem em relação à sua pertença ao grupo, ao sentido da existência do grupo para Jesus, às tarefas que o grupo assume diante da pregação sobre o reino dos céus, sua posição diante do anúncio da salvação que é confiada à igreja.

Pedagógico, o método de Jesus para provocar a reflexão sobre a condição de cada um e seu papel no grupo não é limitador, nem despotencializa os discípulos e nem tem o efeito moral de incapacitá-los para a tarefa que lhes foi confiada. Mas relaciona as condições reais das pessoas com os objetivos a serem alcançados, gerando a reflexão que estabelece o princípio Realidade. E como tudo no evangelho, não pressiona, não força e nem violenta. Mas deixa o tema aberto.

O escritor e arte-educador Bartolomeu Campos de Queiroz explicitou a mesma contradição através de uma personagem na obra Onde tem bruxa tem fada, na boca de quem pôs a ipsissima verba abaixo, ao narrar:

Maria foi levada para a sala de interrogatório. Assentou-se diante do delegado e ouviu a seguinte sentença:
– Fada não é nome nem sobrenome. Entrou na cidade sem passaporte, sem carteira de identidade, sem carteira profissional, sem título de eleitor, sem cartão de crédito e CPF. Não tem endereço de residência nem CEP e diz ter como profissão realizar desejos. Não é filiada a nenhum sindicato e ensinou menino a ler e escrever sem técnica de professor. Construiu casa sem empréstimo, avalista e projeto em lugar proibido. Falou mal da esperança. Contou segredo no coração dos meninos. Sorriu no momento da prisão, desrespeitando as autoridades. Com certeza, não foi informada de que vivemos em uma democracia. Por tudo Maria do Céu é culpada e permanecerá presa até que se prove o contrário.
(74. ed. São Paulo: Moderna, 1995, p. 34)

A ideia do menino servidor é especialmente difícil de ser aceita por extratos da sociedade sempre associados ao poder, dos que se julgam membros de uma casta especial – que Lutero chamou de Geystlich Stand (estamento espiritual) em À nobreza cristã da nação alemã – e que toma quase como um desacato a sugestão de despossuir-se do que julga ter. Para muitos, fazer-se menino, novo e servidor significa renunciar a todas as ambições pessoais. Para muitos, muito! Mesmo sabendo que essa é a condição para entrar no reino dos céus. Diriam até que, se fosse uma condição afetiva, psicológica, seria possível pensar. Ao menos em algumas circunstâncias. Mas como “opção pela bem-aventurança”? Tornar-se tão pouca coisa – “humildade sociológica, nem psicológica”. Entender que ser “o que serve, não o que manda, é o maior!” (MATEOS; CAMACHO, p. 206).

4. Imagens para a prédica

Por se tratar de uma criança, evoco memórias infantis. Neste momento em que a comunidade de fé também busca justiça ecológica, lembremos as palavras de Bartolomeu Campos de Queiroz em Por parte de pai (Belo Horizonte: RHJ, 1995, p. 71-2):

Meu avô me convidou, naquela tarde, para me assentar ao seu lado nesse banco cansado. Pegou minha mão e, sem tirar os olhos do horizonte, me contou:

O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem pena. Mastiga rios, árvores, crepúsculos.
Tritura os dias, as noites, o sol, a lua, as estrelas. Ele é o dono de tudo. Pacientemente, ele engole todas as coisas, degustando nuvens, chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histórias e saboreia os amores. Nada fi ca para depois do tempo. As madrugadas, os sonhos, as decisões duram pouco na boca do tempo. Sua garganta traga as estações, os milênios, o ocidente, tudo sem retorno. E nós, meu neto, marchamos em direção à boca do tempo.
Meu avô foi abaixando a cabeça, e seus olhos tocaram em nossas mãos entrelaçadas.
Eu achei serem pingos de chuva as gotas rolando sobre meus dedos, mas a noite estava clara, como tudo o mais.

5. Subsídios litúrgicos

Saudação:

Querida comunidade: nesta véspera de ano novo, queremos celebrar pensando na comunidade que desejamos ser no ano que vem. Uma comunidade mais jovem, mais alegre, mais confiada na graça. Se possível, uma comunidade com alma de criança!

E a pregação de hoje vem a calhar. Ela se baseia no momento em que Jesus provoca uma refl exão a partir do testemunho de uma criança. Esse texto nos chama a também pensar em colocar as crianças no centro de nossa vida comunitária. Que diriam nossos filhos, filhas, netos e netas e as demais crianças a respeito de nosso trabalho?

Que tal perguntar-lhes se eles se sentem bem nesse espaço que construímos para a celebração? Se são felizes aqui, se guardam boas memórias, se sentem alegria em encontrar os amigos, se sentem liberdade para sentir, alegrar-se, cantar, conviver. Se eles experimentam como o melhor aquilo que nos esforçamos por oferecer.

Perguntar também se se sentem bem, se os demais os tratam com respeito e carinho, se entendem que são parte da comunidade que se reúne aqui. Digamos a eles: a presença de vocês é fundamental para experimentarmos a comunhão com Deus. Queríamos viver a fé com esse deslumbramento que vocês têm. E mais: queremos aprender a confiar em Deus com a mesma segurança e esperança de vocês.

Confissão e lamento pelos pecados:

Ajuda-nos a viver como crianças cujas vidas estão confiadas às tuas mãos e cuidado. Ajuda-nos a crer que a igreja é um lugar seguro, diferente de todos os demais da sociedade. E que aqui podemos experimentar e testemunhar nossa fé em ti. Enquanto tivermos dificuldade para viver desse modo, pedimos-te: Tem piedade de nós, Senhor!

Oração do dia:

Ajuda a confiar sempre em tua graça, a ser graciosos conosco mesmos e com as pessoas à nossa volta. E também com os outros filhos e filhas, que aqui vêm buscar consolo, esperança, graça, perdão e amor. Ajuda a ser uma comunidade que acolhe, abre os braços, cria espaços para os diferentes, estimula a partilha e dá as mãos para orar e trabalhar. Na tua esperança, pedimos. Amém!

Bibliografia

DANIELI, Giuseppe. Mateus. Trad. Luiz João Gaio. São Paulo: Paulinas, 1983.
MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. O Evangelho de Mateus. Trad. João Resende Costa. São Paulo: Paulinas, 1993.
RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Trad. Werner Fuchs. Curitiba: Evangélica Esperança, 1998.


Autor(a): Antonio Carlos Ribeiro
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Silvestre/Véspera de Ano Novo

Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 18 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 5
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2012 / Volume: 37
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 25454
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