Mateus 4.1-11

Auxílio Homilético

09/03/2014

Prédica: Mateus 4.1-11
Leituras: Gênesis 2.15-17; 3.1-7 e Romanos 5.12-19
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 1º. Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 09/03/2014
Proclamar Libertação - Volume: XXXVIII

Toda tentação em nós foi vencida por Cristo

1. Introdução

Jesus foi sem pecado, mas não sem tentação: sem pecado, dada a sua natureza divina, mas acossado pelas tentações, dada a sua natureza humana. Nelas, Jesus confrontou-se com suas sombras. E não foi brincadeirinha! “Antes, ele foi tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15). Normalmente, a superacentuação de sua divindade faz-nos achar que Jesus tirou aquelas tentações todas de letra, que elas não mexeram com ele. Se bagatelizarmos as tentações de Jesus, além de negar-lhe a humanidade, teremos problemas em reconhecer e lidar com nossas tentações, pois todas as tentações de Jesus também nos acometem. Se heroizarmos Jesus nesse ponto, capitulamos de antemão frente às nossas tentações. Como cristãos, somos imitadores de Cristo e até mesmo corpo de Cristo, tendo a promessa de, assim como ele, revestidos de Cristo, não sucumbir às tentações.

O poder corrompe. Jesus tinha poder, mas resistiu à tentação de usá-lo para trilhar o caminho da glória; não se corrompeu, seguiu a via-crúcis, uma tolice para os gregos e um escândalo para os judeus. Teria podido transformar pedras em pão quando teve fome (poder econômico). Teria podido certificar-se e demonstrar prestigiosamente a sua filiação ao Deus Criador, atirando-se do pináculo do templo (prestígio social). Teria podido ter todos os reinos do mundo a seus pés (poder político) se adorasse satanás ou, pelo menos, teria podido restaurar o reinado davídico, como se esperava do messias. Teria podido convocar o exército dos anjos celestiais para evitar ser preso. Teria podido descer da cruz... Contudo, todo o seu poder foi amorosamente aplicado em servir. Quem quiser ser o primeiro entre vós, seja o que sirva a todos e todas. O hino cristológico de Filipenses 2 expressa-o de maneira concisa e poética. Para o caminho da cruz olhamos neste primeiro domingo da Quaresma.

2. Considerações exegéticas

Inicio essas considerações remetendo às excelentes contribuições de Walter Altmann no PL IV, de Augusto Kunert no PL XXVII e de Sílvia Genz e Dalcido Gaulke no PL XXXII. Resumo e complemento em pontos o que deles me pareceu mais importante destacar.

Com que forças Jesus está lutando no deserto? Quem é o diabo? Ele é o confundidor (diabolos vem do verbo grego διαβάλλειν = lançar em várias direções, confundir; o contrário de συμβάλλειν = lançar ao mesmo ponto, a modo de se unir, que dá origem à palavra símbolo). Talvez ele seja apenas um personagem-recurso cênico, encarregado de verbalizar as expectativas messiânicas populares que apoquentam Jesus diante de seu ministério. O confundidor foi esperto: planejou pegar Jesus justamente num momento de fragilidade. Todavia, engana-se redondamente quem o pensa vulnerável. Depois do jejum, Jesus está com sua percepção muito aguçada, com seu entendimento muito preciso, com presença do Espírito e com sua língua afiada.

As tentações de Jesus acontecem no deserto, onde as possibilidades estão todas em aberto, onde o caminho se faz ao caminhar. A tentação vem associada ao desamparo e à sensação de solidão e de abandono. No deserto, Jesus decidiu que seu reino não seria como os reinos deste mundo. Foi o que ele respondeu quando inquirido se era de fato o rei dos judeus. Jesus optou pela via contrária ao poder na sociedade de Estado. Será que nessa opção ainda está contida outra afirmação implícita: quem almeja o poder através da subjugação, da razão de Estado e da imposição tem que adorar satanás? Maquiavel manda lembranças.

As tentações de Jesus procedem das bases de sua fé. O tentador faz propostas extraídas das Sagradas Escrituras, por exemplo do Salmo 91.11s. Jesus também responde com citações bíblicas, originárias de Deuteronômio 8.3b; 6.16. Além de ser uma batalha espiritual decisiva para toda a vida, o confronto tem dimensões de um embate bíblico, uma contenda hermenêutica. Daí se aprende que citações bíblicas estão sujeitas a uso deturpado. Podem ser utilizadas para o contrário do reino de Deus.

As tentações de Jesus acontecem dentro de um contexto social e político da espera pelo messias. Espera-se um líder político na sucessão davídica (Davi tornou-se rei de Israel, egresso das camadas populares), que sacie o povo de pão, que comprove sua competência e poder com ações espetaculares e demonstrações de ser o escolhido de Deus e que restaure a soberania de Israel sobre os povos ao redor, pelo menos sobre o território original. A entrada festejada dele em Jerusalém e a grande decepção expressa pelos discípulos de Emaús confirmam essa expectativa até mesmo entre os discípulos mais próximos. A tentação do confundidor faz coro com as esperanças messiânicas populares: voz do povo, voz de Deus. As três respostas de Jesus podem ser lidas em escalonamento crescente. Cumprindo a última da adoração somente a Deus, as outras estarão automaticamente contempladas. Cumpre o primeiro mandamento e lembra o Shema Israel. Remonta à sociedade tribal sem Estado. Tem a marca da crítica profética à monarquia.

O povo de Israel passa pelas mesmas tentações e recebe os dez mandamentos, a constituição da primeira aliança. Como Moisés e Elias, Jesus opta por iniciar seu ministério com um período de oração no deserto. Decide-se pelo caminho da cruz, a constituição da nova aliança. O primeiro inimigo a vencer é o tentador, o confundidor que atua sobre ele a partir dos valores do mundo ao redor e a partir das sombras do subconsciente. Não estão em jogo apenas determinadas atitudes morais ou piedosas de Jesus, mas toda a sua vida e obra. Por isso o texto está localizado entre o batismo de Jesus e o início de sua atividade pública. A pessoa de Jesus não tem valor próprio. Ele é a sua obra.

Não quero deixar de refletir sobre um aspecto geralmente esquecido. No deserto, Jesus estava jejuando e não passando fome. Entre jejuar e passar fome há uma diferença enorme. Além de ser um ato de vontade, o jejum é uma decisão livre de não se alimentar. Exige preparo mental e corporal para alcançar os efeitos depurativos de corpo e mente. Quando alguém que começou a jejuar sentir que está passando fome, deve interromper o jejum imediatamente. Muito diferente é a situação de pessoas empobrecidas, obrigadas a passar fome, porque o pão foi transformado numa mercadoria. O alimento físico é para elas condição para a sua dignidade de imagem e semelhança a Deus. Negar-lhes essa condição é uma afronta ao Criador. Dizer-lhes a frase de Jesus “nem só de pão viverá o homem...” é de um cinismo inominável. Diferente ainda é a situação de pessoas que passam fome de barriga cheia. Passam fome, pois se alimentam de modo errado. É o caso de muitas pessoas obesas por causa do consumo de chips, enlatados, frituras, refrigerantes, doces, alimentos industrializados (desnaturalizados) e fast-food em geral.

Para compreender melhor a relação entre o texto da prédica e as leituras litúrgicas, valho-me de outro texto bíblico, que, dependendo do enfoque que se queira dar à pregação, poderia substituir uma das leituras. Trata-se do texto de Tiago 1.13ss: “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria concupiscência (epithimia), quando essa o atrai e seduz. Então, a concupiscência, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte”.

Ou seja: o pecado inerente à humanidade e a consequente morte eterna foram vencidos por Cristo. Através de um homem (Adão) o pecado entrou no mundo e através de outro homem (Jesus) ele foi tirado. Jesus, igual a nós em humanidade, sujeito à tentação, é distinto de nós na condição sem pecado. Jesus é o novo ser humano, o segundo Adão. O pecado original, o pecado como condição inevitável do ser humano, bem como seu salário, a morte, foram eliminados através da morte e ressurreição de Cristo. Não foram extintas a tentação e a concupiscência. Não fomos eximidos de fazer escolhas. O livre-arbítrio humano foi mantido. A tentação pela concupiscência ficou. Por isso vigiai e orai para não cair em tentação.

3. Meditando a caminho da prédica

A doutrina do pecado original, elaborada principalmente por Agostinho, extrapola os limites, o caráter e os objetivos da pregação no culto. A maioria dos teólogos e filósofos mantém hoje uma distância crítica frente ao conceito de pecado original. Um importante filósofo chamado Paul Ricoeur afirmou: “Nunca se dirá o bastante quanto mal fez à cristandade a interpretação literal, seria necessário dizer ‘historicista’, do mito adâmico” (RICOEUR, 2008, p. 22). Aqui um desafio ao pensamento: nas sociedades indígenas brasileiras antes da invasão europeia não se conhecia a noção de pecado original, ou seja, que o ser humano já nasce em pecado. Imagine-se como essa “ausência” (da perspectiva europeia) se reflete na vida e na cultura indígenas, no seu bem viver livre, leve e solto e que consequência isso tem para a noção de redenção. Porém isso é assunto para outro estudo.

Aqui está em foco a tentação. Ela é inevitável, mas oramos para que Deus nos dê forças e discernimento para vencer as tentações. “Não nos deixes cair em tentação” não pede para que Deus elimine a tentação de nossa vida (“nenhuma tentação é mais terrível do que a de não sermos tentados” – BONHOEFFER, 1968, p. 83), mas para que não nos deixe sucumbir diante dela. Se você cair em tentação, não apenas você individualmente, mas também o reino de Deus é prejudicado, nada menos do que isso. Jesus mostrou que as tentações são vencíveis. Essa é a boa notícia. Toda tentação em nós foi vencida por Cristo.

As tentações correspondem a âmbitos da vida cotidiana, do imaginário, dos desejos tanto a nível individual como social: a) a tentação de utilizar o seu potencial para apenas resolver suas próprias necessidades e/ou tornar-se o milagreiro do povo; b) a tentação de sublinhar seu prestígio social, aparecer como protegido de Deus, protagonizar um espetáculo circense para ser aplaudido como herói das massas. Esse é o cara!; c) a tentação de aumentar seu poder sobre outros, viver bem explorando outros, ter reinos subjugados pagando tributos ou dívida externa. Em todas as respostas, Jesus remete a Deus como aquele a quem pertencem todos esses âmbitos. A espiritualidade não está dissociada da economia, da sociedade, da política. Esse é o evangelho também para nós.

Enquanto no âmbito religioso a tentação tem uma conotação negativa, o comércio atribui-lhe um significado positivo: para intensificar o comércio, os marqueteiros incentivam ceder à tentação de comprar e ser feliz. A palavra tentação também assumiu um sentido de atração física pelo sexo oposto, à qual chega a ser cafona resistir. A tentação pode aparecer como oportunidade, como “o cavalo encilhado passando na frente da gente...” e que pode não passar outra vez. A tentação será tanto mais eficiente quanto menos for percebida. Da difusa subconsciência tem de ser trazida à criteriosa consciência, e então pode ser trabalhada. Caso contrário, fica ali na sombra, comandando tudo, seduzindo a agir por impulsos, sem que a pessoa se dê conta.

Quem já não foi acometido por ideias megalomaníacas a seu próprio respeito? Desde pequenos, miramo-nos em alguns ídolos de sucesso. Levar vantagem, estar por cima, vencer, demonstrar poder, mostrar aos outros que grande cara a gente é, adquirir prestígio social, respeito e até o temor dos outros, ser comentado nas rodinhas de conversa e na grande mídia... A tentação adora a megalomania e está centrada em si mesma. Mais adiante, na juventude, talvez apareçam ideias messiânicas de resolver os problemas do mundo, do país ou pelo menos da família... Essa tentação também contém aquela ideia de que acidentes e tragédias só acontecem com os outros, “comigo nunca vai acontecer”, pois, afinal, sou uma pessoa de fé. As novas igrejas não hesitam em espetacularizar a fé para demonstrar através de grandes eventos o seu poder. Todas as vezes em que na história a igreja ocupou espaço de poder junto ao Estado, ela se desviou de seu ministério humilde de serva e cometeu barbaridades em nome de Deus.

Mas essa é uma proibição no paraíso. Nós o sabemos por experiência própria: ela aguça nossa curiosidade. O que acontece se...? A voz da serpente em nós desenha cenários: vocês serão como Deus. Só uma experimentadinha não pode fazer mal. Adão e Eva comem do fruto proibido, e a serpente tinha razão. A absorção do conhecimento do bem e do mal imediatamente fá-los constatar sua nudez, expõe seu despreparo, sua incapacidade. Agora tinham lançado mão de uma propriedade divina, criadora – distinguir entre bem e mal –, embora continuassem a ser apenas criaturas. Para isso não estavam preparados. Sobrestimaram-se com o conhecimento do bem e do mal, algo fora de sua capacidade. A ordem paradisíaca foi derrubada. Em que áreas hoje a ciência humana está sendo tentada a ser igual a Deus? O conhecimento genético certamente pode ser benéfico, mas nada garante que a manipulação genética não vai gerar uma grande confusão incontrolável e que não seja submetida – como, aliás, já está sendo – a interesses lucrativos e dominação.

Especialmente para os jovens: O que quero fazer da minha vida? O que o mundo me oferece de possibilidades? Poder ou serviço? Buscar garantir o pão farto, buscar prestígio, buscar poder? Servir – independente de qual profissão se escolher – dentro do projeto de Deus para a sua criação na confiança de que tudo o mais nos será acrescentado? O primeiro inimigo a vencer é o tentador, o confundidor que atua sobre nós a partir dos valores do mundo ao redor. Qual é o critério principal para sua escolha profissional? O confundidor também já lhe assoprou: “O que tem de mal em ser ambicioso?”

Quando um governo aposta todas as fichas em apenas providenciar pão para o povo – e geralmente também circo –, é necessário ter uma postura de cautela. Enquanto escrevo, eclodem as manifestações de rua no contexto da copa das confederações. Que o povo todo tenha pão é o óbvio indiscutível de qualquer política. Ter alimento é um direito humano – Deus dá o pão de cada dia –, que não pode continuar sendo transformado em mercadoria. Para qualquer governo, é necessário, mas insuficiente como grande programa. O fato de que não seguiram ações estruturantes ao “bolsa família” desvelou o tiro curto e o efeito insuficiente do Fome Zero. Com intenção ou não, prevaleceu a perpetuação no poder.

Em nossa sociedade de Estado, temos a instituição dos partidos para lidar com o poder. Sua finalidade é chegar ao poder de Estado. E podemos observar como uma eterna repetição que, quando chegam ao poder, até aqueles com os programas mais democráticos de base acabam cedendo à tentação e se corrompem. Em nome da governabilidade, fazem-se alianças diabólicas que confundem todos. As manifestações do povo nas ruas pedem desculpas pelos transtornos, mas querem mudar o país; estão dizendo claramente: vocês e seus partidos não nos representam. As muitas manifestações mundo afora, o movimento occupy, os indignados, as crises na Grécia, na Síria, no Egito, na Turquia... o que estão sinalizando? Será que estamos no limiar de uma nova organização social pós-Estado? As campanhas eleitorais são eivadas de mentiras, calúnias, baixarias de todo tipo. Não admira que no senso popular a política é tida como suja. Jesus propõe aos cristãos a política e a economia do amor, que vão além da sociedade de Estado.
Não estão construídas sobre a competição e a concorrência, mas sobre a cooperação e a solidariedade.

4. Subsídios litúrgicos

Recomendo a substituição da leitura da epístola por Filipenses 2.3-11 ou Tiago 1.13-15.

Oração de coleta:

Deus, Todo-Amoroso! Tu que acompanhaste o teu povo no deserto, assististe Moisés, Elias, Jesus diante de seu ministério, para que vencessem as tentações, olha também para as tentações que hoje nos perturbam e confundem, auxiliando-nos em nossas decisões de vida, para que sejamos teus fiéis seguidores, corpo de Cristo tentado, mas não caído neste mundo e proclamemos a tua glória.
É o que te pedimos...
Na oração do Pai-nosso, o ministro pode pedir à comunidade para parar por um instante depois do “e não nos deixes cair em tentação”, propondo dizer esse pedido mais duas vezes, seguido de breves pausas, e então finalizar a oração.

Bibliografia

BONHOEFFER, Dietrich. Tentação. Porto Alegre: Metrópole, 1968.
RICOEUR, Paul. O pecado original – Estudo de Signifi cação. Covilhã: Luso-Sofiapress, 2008. Disponível em: . Acesso em 05 de julho de 2013.


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Autor(a): Hans Alfred Trein
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 1º Domingo na Quaresma
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 11
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2013 / Volume: 38
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 29823
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