Mateus 6.25-34

Auxílio Homilético

15/09/1985

Prédica: Mateus 6.25-34
Autor: Valdir Raul Steuernagel
Data Litúrgica: 15º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 15/09/1985
Proclamar Libertação - Volume: X

 

O que seria o Sermão do Monte senão a declaração definitiva de que Jesus é Rei e a convocação para que a comunidade do Rei viva de uma maneira nova.

l — A fé que se anuncia e se vive

Eis-nos mergulhados em pleno Sermão do Monte. Creio-o importante para a vida da Igreja hoje.

Com o seu toque na vida ele quebra a hegemonia doutrinária da Igreja Ocidental. Como filhos de Constantino definimos o que é Igreja em termos dogmáticos e achamos que a vida cristão se resume a um feixe de doutrinas e à administração dos sacramentos. A vida nas suas mais variadas expressões, a escala de valores, o estilo de vida, o dia-a:dia parecem não ser afetados. Crer é então, nos diz Driver, um assentimento intelectual e a conversão uma mudança de orientação intelectual.

O Sermão do Monte nos leva a passear pela realidade da vida, mostrando que a forma como se vive é fundamental na dinâmica do Reino.

Para entender o texto em pauta é preciso que nos perguntemos pela compreensão do Sermão do Monte dentro do seu contexto e nos nossos dias.

No decorrer da história, as interpretações foram variando e por vezes procuraram colocar o seu significado longe da vivência comunitária. Por exemplo: o Sermão do Monte não é para todos os cristãos, mas apenas para uma camada superior (o clero); ele não pode ser levado ao pé da letra mas quer fazer brotar uma disposição interior e espiritual no homem; o importante são as intenções; ele deve ser vivido no futuro, quando Jesus já tiver voltado.

Creio que o Sermão, que tem sua mensagem centralizada no Reino de Deus, aponta para a pessoa de Jesus. É intento deste formar uma comunidade na qual se procura viver o Reino em todas as suas dimensões e com todas as suas consequências.

Eis alguns pontos que podem ser setas indicadoras na compreensão do Sermão do Monte:

a) é necessária uma vontade reorientada (arrependimento);
b) é necessária uma disposição de seguir o Mestre voluntariamente (discipulado);
c) a proposta do sermão é comunitária (comunidade);
d) a nova vida comunitária se reflete, necessariamente, para fora (testemunho);
e) o amor deve ser a marca fundamental nesta nossa vida;
f) os discípulos devem exceder em justiça aos demais;
g) o amor busca o próximo, num estilo de vida marcado pela reconciliação.

II — O texto no contexto

É bom verificar o contexto anterior. Vamos descobrir Jesus iniciando o seu ministério público e portando a bandeira do Reino de Deus, diante do qual convoca para o arrependimento (4.17). Vai além de João Batista (cap. 3), quando se torna o arauto do Evangelho, associando a Palavra à ação (v. 23).

O cap. 2 nos mostra o marco sócio-polftico dentro do qual Jesus haveria de viver e o conflito que iria se estabelecer. O rei dos judeus é uma ameaça para o rei Herodes.

O cap. 3 coloca Jesus dentro da tradição profética, onde se pede a volta a Deus e a uma nova prática de vida. Ao final, Jesus é declarado o Filho amado, em quem se cumpre a expectativa messiânica.

O cap. 4 o mostra diante de opções messiânicas, optando pela centralidade do Reino em torno do qual começa a formar uma nova comunidade para a qual os primeiros discípulos são convocados.

O Sermão do Monte, a partir do cap. 5, é apenas um dos vil rios sermões que encontramos no Evangelho de Mateus, onde se acentua em 5.1-10 os valores do Reino; em 5.21-48 a justiça do Reino, em 6.1-34 a espiritualidade do Reino e em 7.28-29 instruções e advertências sobre a vida do Reino.

III - Olhando o texto

O assunto específico deste texto não pode ser entendido devidamente se não o relacionarmos com os versículos anteriores, a partir do 19. Os vv. 19 a 34 tratam da propriedade-ansiedade que não é apenas uma questão jurídica, econômica ou social, porque tem uma dimensão espiritual. Quer dizer que a questão da propriedade se decide na presença de Deus. Assim como a prática da piedade (6.2-4), da oração (6.5-15) e do jejum (6.16-18), também a vida na sua relação com o ter, vestir, comer e beber é algo que se decide na presença de Deus, o qual tem direito sobre as áreas da nossa vida.

Nos vv. 19 a 34 poderíamos apontar três ênfases:

a) não acumuleis tesouro na terra... ajuntai tesouros no céu (19a,20a);

b) não andeis ansiosos pela vida (25,28,31);

c) buscai em primeiro lugar o Reino de Deus (33).

Em função da delimitação do texto abordaremos os dois últimos pontos.

Não andeis ansiosos pela vossa vida

(comer, beber, vestir, dia de amanhã: vv. 25,31,34)

A ansiedade poderia ser descrita como uma característica dos nossos dias. Úlcera, enfarte, enchaqueca são alguns dos sintomas ex¬teriores de uma sociedade que criou a sua própria indústria para aplacar as conseqüências da ansiedade.

Ela não parece, no entanto, ser propriedade privada dos nossos dias. Já Jesus estava lutando com ela. A frequência da palavra ansiedade e preocupação no texto aponta para o fato de que parece fazer parte da natureza do homem ser vítima das mesmas.

Qual seria o problema da ansiedade? Ela produz uma corrida que cega e leva à insensibilidade. Na relação com as pessoas, leva a uma concentração idólatra de apego e ganância e, em relação ao Reino, produz uma fidelidade dividida.

No texto ela é uma ansiedade direcionada: é a comida, bebida, vestuário e segurança futura. A primeira reação seria considerá-la como banal. Mas, quanto não gira em torno dessas poucas palavras: o que vamos vestir?, comer?, beber?, o que vamos fazer amanhã?, o que acontecerá no futuro?, qual a segurança?

Há um encontro fraterno? É preciso comer. Há uma festividade? É preciso roupa nova. O amanhã? É preciso garantir o futuro.

Não são estes os pontos cardeais da nossa sociedade de consumo?

A palavra de Jesus rompe com este círculo de desgaste egoísta da vida. Para deixar mais claro a sua postura ele faz uso de provérbios semitas e ditos de sabedoria popular.

Não é a vida mais do que alimentos? (v. 25)

Claro que é, responderiam todos. Mas como é na realidade? Se tirarmos os pratos fartos da mesa, a moda das vitrines o que vai restar? Quanto da nossa vida é ocupado com estas duas palavras: comer e vestir.

Observai as aves do céu. (v. 26)

Os frágeis passarinhos são chamados para darem uma lição aos fortes homens. Não eles, mas Deus que é a garantia deles e lhes possibilita a vida livre. A ansiedade não liberta mas escraviza. Libertar-se dela é ganhar a liberdade. Esta, porém, só é ganha quando se vive na perspectiva daquele que cuida das aves e para quem as pessoas são muito mais importantes.

O modelo apregoado não é o da preguiça. As aves trabalham, mas nem por isso deixam de depender do sustento de Deus. Este é o caminho.

Acrescentar à vida um côvado. (v. 27)

Quem puder fazê-lo levante a mão. A pergunta nos deixa desnudos e boquiabertos — é mesmo. Além de tudo, a ansiedade é enganosa. Aparentemente ela é essencial para a vida, mas na realidade ela não a aumenta nem a torna melhor. Torna-a febril e tensa e, por isso, pior e mais curta.

Buscai em primeiro lugar o Reino e a sua justiça (v. 33)

Esta é uma palavra conclusiva. É um resumo alternativo não apenas em relação a comida, bebida, vestuário e futuro ou propriedade, bens e dinheiro, mas à vida em geral.

Falar da ansiedade não é um mero exercício lírico que detecta um ponto nevrálgico de uma sociedade fechada em si. É um processo de desmascaramento de uma grandeza que instala a anti-vida na relação com Deus, com o próximo e consigo mesmo.

A alternativa é o Reino de Deus, manifesto na pessoa de Jesus, e se constitui numa declaração de vida. Esta não é uma proposta passiva, ingênua ou alienante de quem não quer nada com nada e resolve curtir a vida. É, pelo contrário, um desafio interno de entrega a Deus, na certeza de que dele vem o sopro da vida, a sobrevivência diária e a garantia do futuro.

Buscar o Reino é buscar o valor essencial da vida e a justiça. Quando Paulo diz na Carta ao Romanos que o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça e paz e alegria no Espírito Santo (Rm 14.17), ele está em sintonia com o Sermão do Monte. O Reino e a justiça andam de mãos dadas (Mt 5.10-11). Cristo e a justiça são as duas caras de uma mesma moeda.

A busca do Reino produz justiça, que não é um valor abstrato mas se manifesta na horizontalidade da vida, nó relacionamento dos homens entre si. A justiça afasta a ansiedade porque produz harmonia pessoal e comunitária.

Saber que Deus garante a sobrevivência muda a confirmação da vida. Por que ficar correndo atrás das coisas de forma egoísta e gananciosa se os recursos finais e fatores essenciais não estão nas nossas mãos? Por que querer para si se do outro lado o irmão está de mão vazia, gerando-se assim uma desarmonia individual e social violenta? Por que não se comprometer com o Reino que é justiça, paz e alegria, no contexto da comunidade e a partir dela?

Eu creio que o desafio da busca do Reino deve ser compreendido no parâmetro da comunidade de Jesus. Não se trata de uma chave mágica que, acionada, torna a vida feliz. Trata-se, isto sim, de ser comunidade de fermento novo, que se torna um sinal do compromisso de Deus com a humanidade (testemunho) e um desmascaramento de um fermento velho que produz injustiça e morte (denúncia). É um passo arriscado no mundo no qual nós vivemos. Mas é um passo de fé que gera a vida e tem em Deus sua razão de ser (Mc 10.29-30).

Cremos que a comunidade primitiva (At 4) e as comunidades às quais Paulo (Rm 12.13; Ef 5.8-10), João (1 João 3.16,18) e Tiago (Tg 1.15-17) escreviam procuravam caminhar nesta direção. (Driver).

IV — Luz para a prédica

1. A palavra de Jesus é revolucionária e afeta radicalmente não só a nossa maneira individual, familiar e comunitária de viver, mas apresenta um questionamento de toda uma sociedade que está edificada sobre estacas de competição ansiosa.

2. Cito, de forma adaptada, um parágrafo de Juan Driver (p. 118): Apesar da radicalidade da proposta de Jesus, a tendência da Igreja tem sido a de suavizar a sua radicalidade. Jesus fala da dificuldade de os ricos entrarem no Reino de Deus (Mt 19.23) mas a Igreja geralmente tem-se esforçado para facilitar a entrada. Ainda que Jesus e os apóstolos advertissem para o perigo da propriedade e do dinheiro para o povo de Deus (1 Tm 6.10,17,19; Tg 4.13-5.1) a Igreja, ao contrário, tem buscado posição na sociedade através de uma boa base econômica e institucional ou pela base econômica dos seus membros. A base econômica e o poder financeiro têm sido considerados sinais de virtude e bênção entre os cristãos, em vez de perigo e tentação.

3. A dimensão da denúncia e do desmascaramento, na dimensão tanto pessoal quanto social, tem de estar necessariamente presente. Mas é pouco se fizermos só isso. É necessário contextualizar e anunciar o Evangelho.

4. Na contextualização precisamos pensar desde a questão de poupança, open, over..., que representa uma doença financeira num Brasil bancário, até a indústria da segurança num país de pivetes, marginalizados e desempregados. Os nossos dias são diferentes dos de Jesus mas, quem sabe, o que nós chamamos de necessária segurança econômica ele chamaria de preocupação angustiante e o que qualificamos de lucro justo ele diria ser usura. Como equacionar esta questão é algo que precisaria ser avaliado, de preferência no contexto da comunidade. O ponto divisor certamente seria que quando o lucro de um se torna carga injusta para o outro o pecado se instala.

5. Se a prédica disser apenas não, geraremos rejeição e revolta. É preciso propor o Evangelho. A mensagem deve chamar à conversão, ao mergulho na descoberta de uma vida nova onde é possível viver e ser comunidade de irmãos em justiça, alegria e paz. Isto é muito bom e necessário. Será sopro novo no mormaço tradicional de muitas de nossas comunidades e descanso para a vida agitada de dias atropelados

V — Subsídios litúrgicos.

1. Confissão de pecados: gratidão pela oportunidade de culto em expressão de louvor e comunidade; estar na presença de Deus como pessoas dispersas que simplesmente estão juntas e têm muito pouco em comum; vir de uma semana na qual um buscou os seus interesses e não teve tempo para olhar ao lado; rogar uma experiência de comunidade e descanso.

2. Assuntos para a oração final: o reconhecimento de que a ansiedade está presente em demasia na nossa vida; a gratidão pelo confronto com a Palavra que não apenas mostrou o pecado da corrida louca e egoísta, mas também o Evangelho; a força para abraçar o Reino, a justiça e o irmão no objetivo de ser uma comunidade de esperança no contexto da desesperança; aprender a ter uma comunidade agraciada onde todos são importantes e têm espaço.

VI – Bibliografia

DRIVER, Militantes para un mundo nuovo. Barcelona, 1978.


Autor(a): Valdir Raul Steuernagel
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 16º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 25 / Versículo Final: 34
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1984 / Volume: 10
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14672
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