O Pai Nosso - A Terceira Parte

Auxílio Homilético

23/03/1982

Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu

Ervino Schmidt

I — Introdução

Em cada culto oramos juntamente com as demais petições do Pai Nosso também esta: Seja feita a tua vontade... É curioso! Parece que estas palavras são especialmente difíceis de serem pronunciadas em oração. Até poderíamos encontrar quem as quisesse omitir simplesmente. Por que será que nos encontramos ai num certo embaraço? O que é que nos perturba?

Entendemos que orar significa diálogo com Deus, falar com ele. Mas se orarmos Seja feita a tua vontade, então poderá parecer que todo o nosso orar, em última análise, acaba desembocando no incógnito, no escuro. E isso está próximo da entrega a um destino cego. Muitos entendem que a única coisa que nos resta é subjugação a uma vontade desconhecida. Submeter-se ao destino — frase corrente no nosso pais — é, no meu entender, semelhante ao submeter-se à vontade divina quando esta é compreendida como algo obscuro, ameaçador e arbitrário. Em amplas camadas populares entregar-se ao destino poderá até conter algo de sabedoria, algo que auxilia a sobreviver. Não adianta opor-se constantemente às dificuldades da vida. Não adianta revoltar-se sem fim! Eterno descontentamento poderá estraçalhar a pessoa. Chega o momento onde não dá para aguentar a luta. É melhor entregar-se, entregar-se ao destino. Mas isso é resignação.

Até o filósofo Nietzsche teve pensamentos semelhantes. Disse certa vez: Não aguentas mais o teu destino despótico? Ama-o! Não tens outra escolha (citado conforme Thielicke). Por trás dessas palavras está o reconhecimento de que o homem se destrói, quando se opõe ao destino. Por isso o conselho de abandonar a oposição! Não há outra salda. Não há outra escolha. Fazer a tentativa de amar o que, no fundo, se gostaria de odiar, eis a solução. Amando o inimigo de nome destino talvez se consiga uma certa tranquilidade consigo e o mundo. Esse raciocínio, porém, não faz parte do Pai Nosso. Ele não é cristão

II — A boa e misericordiosa vontade do Pai

Deus é o Senhor. Ele é soberano. Mas ele não espera de nós que nos subjuguemos a ele cegamente como a um destino. Exige renúncia de nós mesmos, dos nossos próprios desejos. Sua vontade, não a nossa deve prevalecer. Conta que nos abandonemos confiadamente a ele. Mas Deus não é um tirano. Sua vontade não é obscura e nem arbitrária. Lutero, no Catecismo Menor, fala da boa e misericordiosa vontade de Deus. Deus é fiel à sua criação. Ele tem um projeto para o mundo; Ele nos convida a nos deixarmos envolver neste projeto. O Deus vivo nos chama, não nos força. Ele nos chama para criarmos com tle um mundo em que vale a pena viver. Sua vontade não é um mortífero não ao homem, mas seu gracioso SIM. Neste sentido se trata realmente de boa e misericordiosa vontade de Deus. Mas que isto é assim, homem algum jamais descobriu a partir de si mesmo. Nem Lutero descobriu isso a partir de seu próprio esforço. Sabemos das tribulações e dos dolorosos momentos de procura, pelo quais passou a Reformador até que chegou ao reconhecimento do Deus bondoso. Sabemos das suas tentativas de agradar a Deus. Mas também aqui vale o que, depois, ele canta: Perante ti não têm valor virtudes e cuidados. Qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12.2), não se tornou patente a partir de elucubração humana. Deus mesmo o manifestou. E o fez de maneira definitiva naquele que nos ensinou a orar o Pai Nosso. Deus se tornou homem. Está do nosso lado! Ele é o Emanuel, o Deus conosco. Assumiu a nossa culpa. Entregou o seu Filho por nós! Deus não quer a morte do pecador, mas que este se converta e viva (Ez 18.23,32; 33.11; 2Pe 3.9). A vontade de Deus é, por assim dizer, um nome: Jesus Cristo. E nada poderá apagar este nome! A boa vontade de Deus não poderá ser desfeita por nada e por ninguém. Ela é irrevogável. Lutero na sua explicação do Pai Nosso diz muito acertadamente que ela é feita sem a nossa prece, mas suplicamos nesta petição que seja feita também entre nós. Assim, a nossa prece manifesta o desejo que a vontade de Deus, que esse nome se torne poderoso entre nós. Que isso vem a suceder não está ao nosso alcance. Isso só pode ser Implorado. O que Deus quer, se torna transparente em Jesus Cristo, não no que nós realizamos ou somos, pois ai sempre há ambiguidade. Em Cristo vemos que a vontade de Deus não oprime, mas liberta. Nele vemos que seus pensamentos para conosco são de paz. Nele vemos que a sua vontade é amorosa. Amor é dom! Deus nos ama. E neste sentido tudo o que vem dele possui a estrutura de pro-posição e não de imposição; é um aceno de um convite e não o mando de uma ordem (Boff,82),

III — A nossa própria vontade

Se nós oramos seja feita a tua vontade afirmamos indireta-mente que vivemos num mundo onde a vontade de Deus é desrespeitada. Se oramos esta petição, dizemos que a humanidade se rebela contra a vontade de Deus. Ilustremos isso um pouco, falando da nossa situação de hoje. Vivemos num mundo que segue de maneira unidirecio-nal os parâmetros da eficiência, da produção e do consumo e, com isso, desrespeita a dignidade humana e a vontade de Deus. O homem corre sérios riscos de ser destruído. Falamos muito de progresso. Mas os homens cada vez mais são esmagados por ele. O que se chama de progresso, na maioria das vezes, não é a criação de condições mais dignas para os seres humanos. Vivemos em um mundo em que se desrespeita o valor da pessoa humana. Isso não corresponde à vontade de Deus. Se olhamos às nossas voltas e para nós mesmos, notamos que se atribui tão alto valor às coisas que estas acabam ocupando o lugar reservado para as pessoas. Por todos os meios se tenta convencer as pessoas do valor dos objetos. Claro, a finalidade é a venda. E o meio para adquirir qualquer coisa é o dinheiro. Tudo o que se pode comprar passa a ter um valor extraordinário. Quem, por exemplo, veste roupas com etiquetas afamadas, vale mais. E estas peças são caríssimas. Logo: somente quem tem muito dinheiro pode comprá-las. Quem dirige um carro último lançamento é mais cotado do que quem aparece com um fusca velho e bastante usado. É realmente difícil convencer alguém que o dinheiro não traz felicidade. O dinheiro parece ser onipotente. Marx analisou bem quando escrevia: O que existe para mim através da mediação do dinheiro, aquilo que eu posso pagar... tudo isso sou eu, o possuidor do dinheiro. O que faz uma pessoa ser aceitável, o que lhe dá valor é o dinheiro que possui e o que é capaz de comprar. Essa coisi-ficação do homem, certamente, não é a vontade de Deus! Numa interpretação latino-americana da nossa prece, encontrei as mesmas constatações que acabamos de fazer. Efetivamente, assim como se encontra, a nossa história humana não pode corresponder à vontade de Deus; a justiça se encontra amordaçada, os ricos se fazendo cada vez mais ricos à custa dos pobres, reduzidos cada vez mais a combustível do processo produtivo das elites económicas e sociais. A poucos é dado ter um projeto de vida; a grande maioria não faz o que gostaria ou aquilo para o qual estaria talhada, mas o que lhe vem determinado por sua situação social. Há um protesto surdo e clamoroso que se ergue ao céu, provocado pelo excesso de sofrimento e de opressão do homem pelo homem ou dos poderosos em cima dos mais fracos. Não há fantasia que consiga exorcizar os fantasmas deixados nas mentes de mi Ihôei, quebrados pelas soluções e afogados pelas lágrimas (Boff.p.60).

Outra situação: O conhecido teólogo luterano Helmut Thieiicke Interpretou o Pai Nosso numa série de sermões em Stuttgart. Foi durante • Segunda Guerra Mundial. Nos semblantes dos fiéis se estampava O medo. O terror dominava. Não raras vezes, os cultos tiveram que ser Interrompidos devido a impiedosos ataques aéreos. O angustiante toque da sirene dissolvia o grupo dos fiéis. Mas eles voltavam a se reunir Ai Igrejas iam desaparecendo uma após a outra. Os cultos tinham que ser transferidos. Exatamente o sermão sobre seja feita a tua vontade... foi interrompido devido à aproximação de bombardeiros. A Igreja semi-destruida que ainda servia para abrigar os fiéis foi, pouco depois, totalmente arrasada. Restaram apenas escombros. Quando as pessoas saiam dos abrigos antiaéreos, muitas vezes, não mais encontravam suas casas. Familiares desaparecidos! Lutas angustiantes. Pânico l Gritos! Cenas que nunca se tornarão conhecidas em toda a sua brutalidade! Pode isso ser a vontade de Deus? Thielicke não fica preso àquilo que acontece às nossas voltas. Ele escreve: Mas nem precisamos logo olhar para fora. O que se agita no nosso própíio coração: os pensamentos revoltosos que não sossegam, a ansiedade, o medo, o egoísmo no nosso relacionamento com o próximo, enfim, tudo o que se passa em nós — em pensamentos, palavras e ações ou mesmo em sonho — será de fato vontade de Deus? (p.59). Não é a nossa própria vontade que nos faz tão profundamente infelizes? Não é também dela que gostaríamos de ser libertados quando clamamos seja feita a tua vontade?

IV — A vontade de Deus visa a totalidade da sua Criação

Impera, como vimos, nossa própria vontade, nossas tentativas de auto-afirmacão. Imperam os poderes deste mundo. Impera injustiça e pecado. Vemos como, muitas vezes, os melhores projetos, as melhores Intenções e as causas mais dignas são dolorosamente derrotadas. Triunfa o desonesto. Não se quer permitir que o seu nome seja santificado. A vontade do diabo, do mundo e da nossa carne não querem permitir que venha o reino de Deus. Mas é exatamente aí que somos chamados à luta. Não somos chamados a fugirmos do mundo. Bonhoeffer chama atenção que se trata no Pai Nosso de uma oração da comunidade que sofre e luta no mundo, oração pelo género humano e pela realização da glória de Deus. Na vontade de Deus, no reino de Deus somente pode crer quem caminha amando simultaneamente a terra e a Deus. (Numa palestra proferida em 1932). Temos que aprender a pronunciar Deus e o mundo a um só tempo. Não podemos nos afastar do mundo, pois Deus a ele exatamente se voltou em sua benignidade. A cruz se tornou expressão máxima para a proximidade de Deus. Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê, não pereça mas tenha a vida eterna (Jo 3.16), Deus nos conclama como seu povo a fazermos a sua vontade em todos os lugares. O reino de Deus não é nem será uma região da criação, mas a criação toda (céu e terra) transfigurada. A vontade de Deus cobre, portanto, a totalidade de sua criação (Boff, p.87). Ela também se estende sobre todas as dimensões da existência humana. Em outras palavras: vivência da fé tem a ver com todas as esferas em que se desdobra a vida dos homens.

Hoje falamos muito em estruturas. Isto quer dizer que a vontade de Deus também tem a ver com as relações sociais, com os mecanismos económicos, políticos e culturais. Nenhum espaço deve ficar fechado à transformação intencionada pelo reino de Deus; em tudo deve começar a fermentar a novidade do novo céu e da nova terra (Boff, p. 87). Tudo isso está encerrado na expressão assirn na terra como no céu. Traduzimo-la, até aqui, praticamente por mundo em sua totalidade. Certamente isso confere. Mas há nessa expressão ainda um sentido que vai além. Nele queremos deter-nos, ao menos um pouco.O mundo está dividido consigo mesmo, porque se opõe a Deus. Mas a vontade de Deus está presente nele, pois o mundo lhe pertence. Por outro lado, é o mundo desfigurado, separado de Deus. Antigamente os homens usaram a concepção de dois espaços diferentes para expressar esta experiência. Era uma concepção de mundo diversa da nossa. Julgamo-la ingénua. Mas mesmo que, cientificamente, seja ultrapassada, a maneira como aí se fala da realidade é extremamente profunda. Nós é que somos os ingénuos se não mais conseguimos entender o que se quer dizer com a correlação Céu-terra. Onde nós homens não conhecemos nada mais do que a nossa própria vontade, ali há a mais profunda contradição contra a vontade de Deus. E tudo é sem perspectiva. O verdadeiro centro do homem não é o seu eu, mas o tu divino. Somente nesta orientação há real perspectiva de vida para o homem e para o mundo todo. Lutero disse: O reino de Deus vem, na verdade, por si mesmo. Sua instauração não depende de nós. Mas somos considerados dignos de participarmos dele bem concretamente. Somos encorajados a pedir: Seja feita a tua vontade. Somos encorajados a pedir, em oração, que passe o mundo sem perspectivas e que Deus venha a ser tudo em todas as coisas (1Co 15.28).

Para retomar o que dissemos no início: Orar seja feita a tua vontade de nenhum modo é um submeter-se a uma vontade obscura e autoritária. È, isso sim, a única coisa sensata. Ê o abandonar-se confiante à boa e misericordiosa vontade do Pai.

V — Subsídios litúrgicos

SI 95.1-7:

Vinde, cantemos ao Senhor, com júbilo,
celebremos o Rochedo da nossa salvação.
Saiamos ao seu encontro, com ações de graça,
vitoriemo-lo com salmos.
Porque o Senhor é o Deus supremo,
e o grande rei acima de todos os deuses.
Nas suas mãos estão as profundezas da terra,
e as alturas dos montes lhe pertencem.
Dele é o mar, pois ele o fez;
obras de suas mãos os continentes.
Vinde, adoremos e prostremo-nos;
ajoelhemos diante do Senhor que nos criou.
Ele é o nosso Deus, e nós povo do seu pasto,
e ovelhas de sua mão.

Confissão de pecados: Senhor, nós temos o privilégio de, a toda hora, podermos vir a ti em oração com tudo que nos aflige. Perdoa-nos que investimos tio pouco do nosso tempo, para a oração. Não queremos enumerar as nossas desculpas. Em vez disso, pedimos: Dá-nos renovada alegria para a oração. Ptrdoa-nos quando não perguntamos pela tua vontade.

Absolvição: Não andeis ansiosos de cousa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e peia súplica, com ações de graças. Pois perto está o Senhor aos que têm o coração quebrantado (Fp 4.6; SI 38.18).

Oração de coleta: Senhor, onde tua palavra é proclamada, ali tu mesmo estás presente. Louvamos-te e agradecemos-te que nos fazes saber qual é a lua vontade para conosco e o mundo. Abre nossos corações também hoje para que possamos entender quais são os teus desígnios.

Oração final: Senhor, dirigimo-nos a ti, porque Jesus Cristo, teu Filho nos encorajou para isso. Agradecemos-te que tu falas conosco, que tu quebras o silêncio.

Dá, Senhor que a tua comunidade reconheça a tua vontade e a pratique. Afasta de nós toda divisão, discórdia e intransigência para que não venhamos a encobrir tua vontade. Ajuda-nos a testemunharmos a tua vontade de maneira clara. Faze-nos ver todo o alcance daquilo que queres de nós. Tua vontade acontece quando existe uma comunidade que confessa e santifica o teu nome, espera o teu reino e faz a tua vontade. Fortifica-nos na fé.

Não como nós queremos, mas como tu queres, Senhor!
Amém

Leituras bíblicas: Lucas 11.5-13 1 Timóteo 2.1-6a

 

VI — Bibliografia

BOFF, L. O Pai Nosso. A oração da libertação integral. Petrópolis, 1979.
EBELING, G. Vom Gebet. Predigten ueber das Unser-Vater. Siebenstern Taschenbuchverlag. Muenchen und Hamburg, 1967.
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Matthaeus. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol 1. 2 ed., Berlin, 1971.
JEREMIAS, J. O pai-nosso. A oração do Senhor. São Paulo, 1976.
THIELICKE, H. Das Gebet das die Welt umspannt. Stuttgart, 1946.
WEBER, O. Prédica sobre Mateus 6.1 Ob. In: Wort und Antwort. Neukirchen-VIuyn, 1966.

Proclamar Libertação – Suplemento 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Ervino Schmidt
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1982 / Volume: Suplemento 1
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7302
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