Oséias 11.1-4, 8-9

14/11/1999

Prédica: Oséias 11.1-4, 8-9
Leituras: I Tessalonicenses 5.1-11 e Mateus 25.14-30
Autor: Elaine Gleci Neuenfeldt
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14/11/1999
Proclamar Libertação - Volume: XXIV
Tema:

 

O profeta e seu contexto

Oséias (Javé salva) foi profeta na época do rei Jeroboão II, conforme Os 1.1 (aproximadamente 783-752 a.C.). Exerceu sua atividade no Reino do Norte (Israel). Provavelmente foi camponês e levita. Casou-se com Gômer e teve dois filhos e uma filha.

A situação do tempo de Oséias se caracteriza por um milagre econômico, com uma grande expansão (conforme 2 Rs 14.23-28). Durante o reinado de Jeroboão, Israel controla as rotas comerciais e há um grande crescimento do comércio nacional e internacional. Essa onda expansionista requer defesa militar; o Estado precisa de soldados para o exército que garantam a defesa do território e a soberania. A Assíria, a potência militar, política e econômica da época, ameaça invadir Israel, o que finalmente acontece em 722 a.C. com a destruição de Samaria, capital do Reino do Norte (cf. 2 Rs 17). O Estado necessita de defesa, e para lograr isso é necessário uma política de incentivo da reprodução no interior das famílias. Estas deviam gerar filhos para o Estado e exército. A eira, que era um espaço comunitário, usado para secar os cereais, e que ao mesmo tempo servia de lugar de encontro das pessoas, onde compartilhavam e conversavam, virou lugar de prostituição (Os 4.10-14). Os principais responsáveis por essa situação, segundo Oséias, são os sacerdotes, o Estado — a corte do rei (Os 4 e 5). São eles que levam o povo à prostituição. Cobram tributo dos camponeses e servem aos deuses estrangeiros, o que significa aceitar e promover a estrutura injusta da sociedade de onde esses deuses são originários (L. Mosconi, p. 36-37).

A realidade de prostituição marca a vida pessoal do profeta. Ele recebe a orientação de casar-se com Gômer, uma prostituta, e ter filhos com ela, para assim denunciar, a partir de seu testemunho pessoal, a situação em que vive o povo. Buscando interpretar essa ação de Oséias, resgatando a dignidade da mulher, podemos levantar algumas propostas. Deus nos ama assim como somos, porque amou a Israel como se fosse uma prostituta. (Tânia M. V. Sampaio, p. 37.) Segundo este estudo, Gômer está na casa de seu pai, ou sua mar Deblaim, e somente as mulheres virgens, preparadas para o casamento c que são situadas assim. Não existe uma condenação à prostituta, à mulher (4.14), pois os acusados são outros (4.4-11,15-19), principalmente os sacerdotes. A mulher corre atrás de amantes em busca de pão, água, lã, linho, azeite, que nada mais são do que gêneros de primeira necessidade. Isso nos leva a perguntar pelos motivos por que as filhas e noras estão sendo prostituídas — que são as necessidades de sobrevivência, de comida para si e sua família. Além disso, existe a urgência do Estado de aumentar as fileiras de soldados no exército; para tanto, o jeito (• interferir na vida familiar. O ritmo da casa com gravidezes de 3 em 3 anos, para dar tempo de amamentar os filhos, como fez Gômer entre o nascimento de sua filha e de seu último filho (1.8), não serve à necessidade do Estado. (Id., ibid., p. 43.) Por isso, a eira, que é o espaço comum onde as pessoas se encontram, é utilizada e manipulada pelo Estado como lugar de prostituição, garantindo uma maior produção de mão-de-obra.

Toda essa situação pessoal de Oséias influencia a sua vocação. Sua subjetividade, seus sentimentos, suas frustrações servem de analogias para a sua pregação. Essa experiência subjetiva determina a sua experiência e relação com Deus. É a partir dessa experiência pessoal de Oséias com Gômer e com Deus que queremos analisar o texto previsto para a prédica: Os 11.1-4,8-9.

O texto

O texto utiliza uma linguagem muito carinhosa e cheia de símbolos para descrever a relação de Deus com seu povo. O v. l faz referência ao tempo do Egito e à ação libertadora de Deus. Os vv. 3 e 4 são uma clara descrição de uma atitude materna de Deus. Deus guia o povo, ensina a caminhar, cuida, os cerca com laços de ternura e amor, encosta seu rosto, toca com sua face. Como se fossem crianças de peito lhes dá de comer (amamenta). Estes são todos gestos que lembram uma mãe amorosa que ama, cuida e protege seu/sua filho/a. A linguagem do texto é corporal, é através dos gestos que Deus manifesta o seu amor.

O texto é uma comprovação do amor materno de Deus. Apesar da desobediência do povo, apesar de sua rebeldia, Deus não vai deixar de amar e de manifestar esse amor concretamente. Meu coração está comovido, cheio de compaixão por ti (v. 8). A imagem que ele nos traz é a de um Deus já conhecido desde o êxodo, que ouve, vê e sente o sofrimento do povo. Um Deus próximo, carinhoso, cuidadoso, como uma mãe.

Sugestões para a prédica

Sugiro enfocar a prédica no tema do amor materno de Deus ( as reflexões sobre a imagem de Deus estão baseadas em R. Nauta e R. R. Ruether), que é o tema central do texto bíblico. Para tanto quero compartilhar algumas reflexões.

A imagem de Deus que mostra o seu amor como uma mãe não aparece unicamente em Oséias. Isaías (42.14; 49.15; 66.7-13) também tem ricas imagens de Deus como mãe ou como mulher em dores de parto. No NT, o Evangelho de Lucas (13.34) usa uma imagem de Deus como uma imagem de Deus como uma galinha que abriga seus pintinhos debaixo de suas asas. Um exemplo bem concreto de como Jesus usava nas parábolas exemplos que ampliavam a percepção acerca de Deus é onde compara o reino de Deus com a mulher que varre e busca por toda a casa a moeda perdida, e que, quando a encontra, faz festa com suas amigas. Interessante é observar que este texto está no meio de outros dois, muito conhecidos e trabalhados: o da ovelha perdida e o do filho pródigo Num, Deus é como o bom pastor que se preocupa com suas ovelhas, e no outro, é como o pai misericordioso que aceita seu filho de volta. Estes dois textos são trabalhados já no culto infantil e até nos grupos adultos das igrejas (mulheres, estudos bíblicos, etc.), mas, surpreendentemente, o texto que compara o reino Deus com a atitude de uma mulher, que está justo no meio, não é muito conhecido e trabalhado. Será essa omissão mera coincidência ou uma leitura androcêntrica (centrada no homem) da Bíblia? Afirmo que é omissão premeditada, com a intenção de preservar a perspectiva patriarcal da Bíblia.

Na Bíblia encontramos diversos símbolos que foram usados para melhor expressar a experiência que se teve com Deus. O profeta Elias encontra Deus não no vento forte, não no terremoto, nem no fogo, mas na brisa suave e delicada que sopra em seu rosto (l Rs 19.11-13). Em Dt 32.11-12, Moisés, em seu canto, descreve a Deus como uma águia que ensina seus filhotinhos a voar. Parece que para falar da experiência com Deus só as palavras não são suficientes, é necessário utilizar outras formas de comunicação, os gestos, os sentimentos, os sentidos, enfim, o corpo.

A imagem mais usada e conhecida sempre foi a de Deus como um Pai — Deus Pai Todo-Poderoso. Mas essa não é a única descrição possível de Deus. Falar de uma imagem única e exclusiva — a de Pai - significa reduzir Deus a um campo limitado de experiência. É mais: expressar a Deus exclusivamente como Pai exclui a possibilidade de as mulheres se sentirem como seres à Sua imagem. Orar a um Deus que tem exclusivamente uma imagem masculina implica, para as mulheres, negar a sua própria imagem, negar a sua corporalidade e criação à semelhança divina. E nem sempre a experiência com o pai em casa (na família) é positiva; existem casos de pais violentos, que maltratam, ou ausentes. Essa experiência com o pai terreno pode trazer más lembranças e, conseqüentemente, uma rejeição, no caso de referir-se a Deus unicamente como Pai. A forma que usamos para falar sobre nossa experiência com Deus tem profundamente a ver com a imagem que temos de nós mesmas/os, com a nossa auto-estima. A maneira como vivemos nossa fé é determinada pela experiência que temos com o sagrado, com Deus. Neste sentido, podemos questionar a forma como fomos ensinados/as, como nos falaram de Deus desde a nossa infância. Normalmente, se ensina às crianças que Deus vê tudo, ouve tudo, está em todo lugar; se se comportam mal, Deus castiga; se são boas (isto quer dizer: passivas!), Deus fica contente (posso agradar a Deus por minhas obras). Muitas/os têm a imagem de um Deus velhinho, de barba branca que está em cima de uma nuvem. São metáforas de um Deus Juiz, Pastor, Pai, Todo-Poderoso, sempre masculino!

Ao absolutizar a imagem exclusivamente masculina de Deus se legitima a autoridade do homem sobre a mulher, de ver nele a imagem Dele. Portanto, para ser fiel à experiência profética de Oséias e de tantos outros relatos na Bíblia devemos buscar a partir da própria experiência formas de manifestar a presença e o amor de Deus. Partir da vida cotidiana é fundamental para se falar da experiência com Deus. Isso implica não buscar somente figuras abstraias e distantes de Deus, mas sentir e expressar desde a casa, a cozinha, a rua, o trabalho. A diversidade é importante para ampliar ao máximo as possibilidades de imagens de Deus. E quando falamos em imagem é necessário cuidar para não transmitir uma ideia equivocada, estática, construída; a imagem é sempre uma analogia, uma tentativa de dizer como se experimenta Deus. Toda forma humana de falar como é Deus sempre é aproximação, nunca será suficiente para chegar à totalidade. Ensaiando e incorporando novas formas para expressar a experiência com o sagrado e transcendente estaremos num processo de transformação da linguagem, que é um aspecto importante da nossa concepção de mundo.

Outro ponto importante na discussão sobre o lado materno de Deus é a necessidade de repensar em todos os aspectos a maneira como falamos de e com Deus. Não queremos simplesmente agregar uma expressão feminina, ao lado da masculina. Não se trata de enfeitar algo que já está desgastado, ou de remendar roupa velha com remendo novo. A questão implica refazer o molde de toda a roupa, ou transformar a forma de costurar. Ou seja, falar de Deus como Mãe e Pai quer resgatar uma outra experiência com Deus. Não um Deus distante, castigador, que tudo vê e julga, guerreiro, vingador, mas buscar um Deus que sofre junto, que ouve o clamor, que desce junto ao seu povo, um Deus carinhoso, compassivo, compreensivo, presente no cotidiano.

Seguem-se algumas dinâmicas que podem ser usadas durante a prédica, para levar em conta a experiência das pessoas da comunidade:

* Começar perguntando qual foi a imagem de Deus que foi recebida na infância. Como a mãe ou o pai, ou outras pessoas, falaram sobre Deus; qual a imagem que ficou mais marcada; se essa imagem ajuda ou atrapalha a relação com Deus hoje, na sua vida de fé; se crê que é suficiente para expressar toda a experiência com Deus ou é limitada. Essa dinâmica pode ser feita anteriormente num grupo de mulheres, de crianças, ou estudo bíblico e só seus resultados podem ser apresentados na prédica, com uso de cartazes.

* Depois, levantar entre as pessoas da comunidade quais são as formas de que se recordam que os textos bíblicos usam para falar de Deus. Como Deus aparece na Bíblia? Pode-se ajudar com alguns exemplos: Pastor, Senhor, Senhor dos exércitos, Soberano, etc. Buscar, num primeiro momento, as imagens masculinas.

* Depois, buscar exemplos de textos que trazem Deus como Mãe (ver os citados acima). Trabalhar mais concretamente o texto de Oséias, fixando-se em cada um dos versículos. Trabalhar também os textos onde a experiência com Deus é descrita com outras figuras, conforme os textos já citados.

Quero trazer aqui dois exemplos que escutei em momentos e contextos muito diferentes, quando trabalhei o tema da imagem de Deus: uma mulher, lá em Mato Grosso, num grupo que estava trabalhando debaixo de uma imensa mangueira, expressou: Deus é como essa árvore de manga, ela dá sombra para nos refrescar do calor, e quando temos fome, é só estender o braço e colhemos uma gostosa manga. Assim é Deus, nos abriga, protege e alimenta! O outro exemplo é de um camponês, analfabeto, aqui em El Salvador, que afirmou: ' 'Deus é como um perfume, a gente abre o vidro e ele se espalha, a gente sente o aroma mas não vê o líquido. Mas mesmo sem ver, você sabe que ele está ali e é gostoso sentir o cheiro!

Bibliografia

MOSCONI, L. Profetas da Bíblia: gente de fé e de luta. 2. ed. São Leopoldo : CEBI. 1995. (A Palavra na vida, 57/58).
NAUTA, Rommie. Dios masculino o femenino o ninguno de los dos? Xilotl : Revista Nicaraguense de Teologia : la mujer, Managua, v. 8, n. 15, p. 33-45, 1995.
RUETHER, Rosemary R. Sexismo e religião : rumo a uma teologia feminista. São Leopoldo : Sinodal, 1993. p. 46-65.
SAMPAIO, Tânia Mara Vieira. El cuerpo excluído de su dignidad : una propuesta de lectura feminista de Os 4 : por manos de mujer. RIBLA, San José, v. 15, p. 35-45, 1993.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Elaine Gleci Neuenfeldt
Âmbito: IECLB
Testamento: Antigo / Livro: Oseias / Capitulo: 11 / Versículo Inicial: 8 / Versículo Final: 9
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1998 / Volume: 24
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 6988
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