Religiosidade dos índios Guarani

01/12/1997

Religiosidade dos índios Guarani

Graciela Chamorro

Certamente, muitas famílias luteranas já ouviram falar ou até têm algum tipo de contato com os Guarani, indígenas que no Brasil ocupam preferencialmente os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul, além da costa atlântica. O que poucas famílias talvez saibam é que esses indígenas são bastante religiosos. Gostaria de expressar aqui um pouco da sua forma de crer, o que me foi possível conhecer graças a alguns anos de convívio e pesquisa com eles.


Como outros povos, os Guarani expressam sua fé celebrando, fazendo festas, o que na sua língua nativa eles chamam de arete.
Arete significa tempo-espaço (ára) verdadeiro (ete), o que equivale a dizer que as festas são a ocasião propícia para contar histórias, para lembrar o princípio das coisas, das pessoas, do mundo. É tempo de lembrar do Gênese, de reunir-se, de descansar, de recriar-se e recrear-se na criação, de encontrar-se com Deus. Nesse sentido, o termo guarani arete possui o sentido profundo que o termo sábado possui no Antigo Testamento. Sábado é o dia ou o tempo santo e os Dez Mandamentos nos apresentam o próprio Deus dando o exemplo de descanso sabático depois de seis dias de trabalho. O sábado é pois uma ordenança da criação. Como diz uma teóloga da nossa igreja, sábado é a presença da eternidade na história, e este fato nos capacita para recordar que temos uma alma adicional.

As festas

Mas como são as festas dos Guarani?

São cheias de canto, de dança e de muita reza. É que para eles, antes de tudo só existia movimento. A palavra como que embalava em seu murmúrio o que seria o modo de ser das coisas:

¨Jerosy¨, dança, é o começo de tudo. Quando a terra se levantou, já havia dança. Ela é o começo de tudo, é o começo do milho também. Por isso, temos que dançar para dar-lhe seu começo, ao milho e a todas as plantas. Por isso, Deus, nosso dono, também dança e deixou para nós motivo para dançar, para dar seu começo às coisas, à terra e às gentes.

Hoje, quando os Guarani celebram, é como se toda a comunidade imitasse (fiea' ã) de novo alguns fatos do passado que foram muito importantes para eles. É como se nas festas a lembrança e o desejo fossem tão fortes, de modo que ao contar (papa) como as coisas foram criadas, eles estivessem repetindo a criação ou alguns momentos importantes da sua história. Fazendo uma comparação podemos dizer que é, para nós cristãos e cristãs, como celebrar o nascimento do menino Jesus. Cantando os hinos de Natal e fazendo o presépio vivo é como o Deus-criança nascesse de novo, na manjedoura, em Belém. E o seu nascimento nos faz bem, nos reanima e nos fortalece na fé.

As migrações

Entre as fortes lembranças presentes nas festas dos Guarani estão as migrações que eles protagonizaram por motivos econômicos, ecológicos e religiosos, no passado. Certamente por isso, o caminhar é o movimento básico da liturgia do grupo. Caminhando eles rememoram as dificuldades enfrentadas pelos seus antepassados nas suas peregrinações e buscam inspiração para enfrentar a perseguição e o desterro que eles padecem hoje.

A importância que o caminho assume no pensamento-existência guarani nos faz lembrar as tribos palestinas seminômades. Para ela também a experiência de estar a caminho foi uma experiência revelatória e se tornou um ponto de referência da sua confissão de fé. Não podemos esquecer que o Deus de Abraão, Isaque e Jacó era uma divindade peregrina. Como essas tribos palestinenses, caminhando a comunidade guarani anima suas imagens primordiais, rememora e recria seus mitos e inicia as novas gerações no fascinante desejo de participar do Mistério. A divindade acontece na experiência do grupo, sem meditações complexas, sem templos ou sacerdotes. Sua presença é celebrada na partida, na chegada e durante a migração.

Hoje nos momentos mais significativos da celebração, é como se os caminhantes Guarani chegassem a lugares e fatos do passado que lhes provocam uma profunda emoção e ansiedade sobre o presente e o futuro. Assim fala, um dos líderes das festas:

Quando o canto-dança-caminhada chega neste ponto, ao lembrar daqueles que nos ensinaram nosso modo de ser, muitas vezes choramos, porque pensamos em nossos filhos, no destino da nossa palavra e da história que ela conta. Haverá alguém para liderar o canto-dança, alguém que encherá de bem as crianças?

Intimidade com Deus

Os grupos Guarani testemunham para nós, como outros grupos chamados primitivos, uma profunda intimidade entre o divino e o humano. Muitas vezes eles falam de Deus como um antepassado, um avô ou uma avó, um companheiro ou companheira de caminhada. Isso nos mostra, sobretudo, que a religião — antes de ser uma doutrina sobre um ser particular chamado Deus — no nível do seu mais profundo mistério coloca a pergunta sobre o significado da existência, sobre a realidade e a significação da nossa vida. Ameaçados pela civilização ocidental, pelo desterro, pelo tempo sem lugar, os Guarani teriam motivos suficientes para cair no desespero. Eles, porém, nos têm dado um belo testemunho de que vale a pena interromper nossa falta de esperança e festejar.


A autora é pastora da IECLB, e reside em Pato Branco, PR


Ver ìndice do Anuário Evangélico - 1998


 


Autor(a): Graciela Chamorro
Âmbito: IECLB / Organismo: Conselho de Missão entre Povos Indígenas - COMIN
Título da publicação: Anuário Evangélico - 1998 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1997
Natureza do Texto: Artigo
ID: 33112
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