Romanos 3.19-28

Auxílio Homilético

31/10/2002

Prédica: Romanos 3.19-28
Leituras: Isaías 62.6-7,10-12 e João 8.31-36
Autor: Silfredo Bernardo Dalferth
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2002
Proclamar Libertação - Volume: XXVII
Tema: Reforma

1. Introdução

O apóstolo Paulo faz uma investida teológica na interpretação do Primeiro Testamento, com o intuito de colocar judeus e não-judeus numa mesma situação teológico-antropológica.

Em que proporção ambos os grupos estão representados na comunidade de Roma não é possível saber. Por um lado, Paulo se autodenomina apóstolo dos gentios e, em Rm 11.13, dirige-se especificamente aos gentios. Por outro lado, ele pressupõe o conhecimento dos argumentos teológicos judaicos. Se não podemos afirmar nada sobre a proporcionalidade entre “gentios” e judeus, podemos, no entanto, constatar que, nos inícios, existia uma proximidade da comunidade cristã com a sinagoga em Roma.

Os argumentos de Paulo e a sua maneira de “conglomerar” citações do Primeiro Testamento surpreendem. Por que surpreendem? Na interpretação do Primeiro Testamento por si mesmo e da maneira corrente de sua interpretação na época de Paulo, Deus é a fonte da justiça e, em um sentido escatológico, uma espécie de “parceiro do direito”. Nas relações injustas, Deus garante a justiça aos injustiçados, sendo aqui sua intervenção simultaneamente de condenação e de ajuda salvífica. O conceito de justiça do Primeiro Testamento é, sobretudo, pragmático. Ele afirma a continuidade da norma teológica e do direito, como forma de organização social, a rigor, sem diferenciação entre justiça divina e a justiça da lei normativo-organizacional. A fidelidade a Deus é uma fidelidade comportamental, de tal forma que a pessoa pode subsistir perante os julgamentos.

2. Lei e Evangelho

Paulo coloca seis citações do Primeiro Testamento, entre as quais uma parte não se refere ao caráter antropológico da condição de pecado da humanidade. Até se referem à condição de pecado dos “gentios”.

Na Igreja, normalmente a polaridade entre a Lei e o Evangelho foi colocada numa polaridade entre judaísmo e cristianismo. No entanto, para Paulo a Lei não se restringe, de forma nenhuma, ao povo judeu, mas é, conforme a referência clássica de Rm 2.14-15, um dado antropológico humano, um parâmetro de convívio entre as pessoas.

Da mesma forma, a crítica à lei não se restringe aos judeus. Tanto judeus como “gentios” não conseguem cumprir a lei. Para Paulo a lei é justa, mas a pessoa justa não ganha a força de ser justa a partir da lei. Justa é a pessoa que corresponde à lei, mas corresponder à lei não vem da lei.

Em um sentido mais profundo, a pessoa é incapaz de cumprir a lei. Isto significa que, do ponto de vista humano, a justiça é impossível. Toda a humanidade está na mesma situação antropológico-existencial diante de Deus.

A partir de Cristo, existe uma nova realidade de justiça. Conforme a formulação teológica paulina, o conceito de justiça se refere à ação justa de Deus. Conforme o texto, esta justiça de Deus abarca toda a existência humana através da fé: a “justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo” será “para todos [e sobre todos] os que crêem” (Rm 3. 22). A fé recebe a ação da justiça de Deus e se dispõe a fazer parte da ação divina. A justiça de Deus é uma realidade em si e os que a aceitam são integrados nesta ação de Deus.

Por isso, a fé não é uma postura moral diante de Deus, mas um deixar direcionar a vida pela ação de Deus. O versículo 25 coloca o “instrumento de propiciação” (ou “propiciatório” – ilastérion) como aspergido de forma definitiva com o sangue de Cristo. Isto significa que a realidade da salvação é uma realidade definitiva em Cristo. Na fé recebemos esta salvação.

3. Justificação

Considerando o todo da teologia paulina, a justificação não é apenas um simples “declarar” justo, como se fosse justo quem não é justo. A justificação significa que o juízo misericordioso de Deus faz a pessoa ser justa. A justificação é o “ministério da justiça” (2 Co 3. 9) . É fundamental observar que, em muitas passagens, “justiça”, “dádiva” e “perdão” são colocados como sinônimos (Rm 5.17; 8. 10; 9. 30; 10.6).

Por um lado, o apóstolo Paulo conduz toda a humanidade para um denominador antropológico comum: ninguém é capaz de cumprir a lei. Com referência a si próprio, afirma que o ser humano está dividido: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7.19). Por outro lado, afirma que “quanto à justiça que há na lei” ser “irrepreensível” (Fp 3.6). Esta aparente contradição se resolve na própria distinção paulina entre o ser humano interior e exterior.

O ser humano consegue cumprir o legalismo formal exteriormente, mas não preencher a bondade da lei boa interiormente. Sendo a lei boa, o ser humano apenas consegue ver-se como “anti-espelho da lei”.

Do ponto de vista sistemático, surge a pergunta pela subjetividade (ação de ser sujeito) do ser humano na integração da ação divina. O ser humano não pode ser mero receptor da graça divina, mera objetividade da subjetividade de Deus. Paradoxalmente, a fé não é uma mera obra, mas o colocar-se por inteiro na graça de Deus. A fé não é uma parte de nós, mas uma resposta existencial, correspondendo ao amor de Deus por nós.

Como já visto, a lei não é somente uma heteronomia, uma ordem “extra-nos”, mas uma dimensão intrínseca do ser humano e, por conseqüência, também uma dimensão intrínseca do inter-relacionamento humano. Por isso, “o cumprimento da lei é o amor” (Rm 13.10). Com isso, o amor e a lei têm uma base essencial comum. O amor e a lei têm uma dimensão radical de comprometimento com o próximo. Sendo a lei boa, ela é a estrutura do amor.

A liberdade do amor e a lei são as dimensões simultâneas do relacionamento. Amor é relacionamento. Lei é relacionamento. A lei, porém, não consegue fabricar o amor. O maior sucesso da lei é o cumprimento exterior da lei, no sentido da negação, isto é, da proibição. Por isso, o ser humano é incapaz de cumprir a lei.

4. Graça

Direcionando a reflexão para a pregação do dia da Reforma, é importante atualizarmos o significado da graça. A graça de Deus, isto é, o amor incondicional e não-excludente de Deus para com toda a humanidade, diviniza e conquista as pessoas para serem parte de Deus e participantes de sua ação. A fé é corresponder à graça divina: tocado pela graça divina, o ser humano ama a Deus incondicionalmente em gratidão e louvor, com sentimento e ação.

Na verdade, não é possível amar injustos. O amor de Deus nos justifica, nos faz justos. O amor incondicional é um amor não-moral, ôntico, uma justiça acima de preceitos, que não condena, mas que vê a condição humana para que a humanidade de Deus em Cristo torne divino o ser humano.

A teologia paulina coloca como centro a ação de Deus, mais precisamente o poder salvífico de Cristo (Rm 7.7-25), que tira o ser humano do jugo da lei, que escraviza com pecado e morte. O ser humano, por si só, não tem capacidade da fé. A pneumatologia não permite que a própria fé seja transformada em uma obra.

A tematização antropológica e teológica que está proposta no texto, a universalidade do pecado e a ação justificadora de Deus animam a nossa imaginação luterana para desenvolver a pregação do Dia da Reforma.

Motivado pelo texto, ainda faço algumas considerações de caráter sistemático, que são importantes para a nossa identidade:

O simul iustus et peccator da Reforma é uma dialética experiencial. Nessa dimensão da justificação e santificação por Cristo, experimentamos que somos pessoas. Trata-se de uma dialética vivencial na perspectiva da justificação e santificação.

Do ponto de vista da alma, o ser humano já está “justificado o suficiente”. Mas a pessoa permanece na terra e “precisa reger o seu próprio corpo e lidar com as pessoas”. A luta do crente consiste em fazer o corpo “de igual forma” com o espírito. O Espírito Santo santifica os santos diariamente, “não apenas por meio do perdão dos pecados que Cristo lhes conquistou ..., mas também por meio de abandono, purificação e mortificação dos pecados, razão pela qual são chamados um povo santo”.

Fundamental é constatar que o perdão dos pecados não é um mero pedido de desculpas, mas é tudo “o que Deus tem para dar”. O perdão vence o pecado que, segundo Lutero, é a quebra do relacionamento com Deus e a perda do verdadeiro relacionamento com o próximo.

A justificação é expressão da “incondicionalidade da dádiva salvífica de Deus”. No entanto, a justificação não deve se limitar a ser entendida como um perdão individual dos pecados ou uma dimensão forense de declarar o pecador justo. A justificação é efetiva e santificadora na corporalidade da Igreja como corpo de Cristo.

Sem a centralidade e o governo da justificação por graça e fé, não é possível a existência da Igreja/comunidade. Assim como o pecado nos coloca em uma situação comum de afastamento de Deus, também a graça justificadora de Deus, independente de nossos méritos, nos congrega, em uma nova situação comum, como corpo de Cristo. A ação justificadora de Deus é o princípio formador do ser comunidade e Igreja. Assim, na Santa Ceia, somos transformados para ser, em conjunto, o corpo espiritual de Cristo. Caso não fosse a justificação por graça mediante a fé como realidade ancorada no próprio Deus, seríamos apenas um ajuntamento de pessoas com méritos maiores e menores, com fé maior ou menor. Não seríamos uma comunidade no estrito sentido do termo.

A justificação não é somente individual, mas fundamentalmente pertinente à vida comunitária e pertencente à Igreja como um todo. O crente está na comunhão de todos os justificados pela graça de Deus na fé e na sua vivência em amor. A justificação por graça e fé é um proprium e, a partir da inserção como membro no corpo espiritual de Cristo, um colectivum. A individualidade cristã é compreendida neste corpo da Igreja em Cristo, a saber, corpo eucarístico vivo.

O ser humano não aguenta a graça, porque nos movemos pela lógica do merecimento e da autoglorificação. Por natureza odiamos a graça. A graça nos despe de toda a glória e nos tira do pedestal de juízes, que é um sintoma de que queremos nos colocar no lugar de Deus.

Finalizando, o texto e as reflexões posteriores apontam para a realidade do relacionamento de Deus conosco. Pelo seu sentimento e ação, Deus move pessoas. O olhar e o coração justificador de Deus transformam a realidade, transformam a vida das pessoas, criam comunidade, lançam sementes para o seu Reino.

5. O culto

Enfatizar que a justificação é a justiça e o amor de Deus que acolhe as pessoas. Nesta experiência de acolhida no amor e na justiça de Deus acontece o novo: a comunhão, isto é, em Cristo pessoas se acolhem mutuamente. As pessoas passam a ser parte de Deus, membros do corpo de Cristo que vive na ação justificadora de Deus. Comunidade não é mera reunião de pessoas, mas corpo e parte de Deus. Deus vive a nova humanidade com seu povo. Assim como o pecado é um denominador comum que coloca todas as pessoas na mesma situação de afastamento, a graça é o denominador comum entre Deus e as pessoas, que coloca as pessoas na mesma situação de agraciadas e unidas na comunhão de Deus conosco.

Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Silfredo Bernardo Dalferth
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Dia da Reforma
Natureza do Domingo: Dia da Reforma

Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 19 / Versículo Final: 28
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2001 / Volume: 27
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7179
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