Romanos 5.6-11

20/06/1999

Prédica: Romanos 5.6-11
Leituras: Êxodo 19.2-8a e Mateus 9.35-10.8
Autor: Mauro A. Schwalm
Data Litúrgica: 4º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/06/1999
Proclamar Libertação - Volume: XXIV
Tema:

1. Observação preliminar

O texto de Rm 5.6-11 ainda não foi abordado pela série Proclamar Libertação. No volume XVII (p. 137ss.) há um auxílio acerca do texto imediatamente anterior (5.1-5), dedicado ao domingo e ao tema Trindade. Embora as perícopes possam ser tomadas em separado, há familiaridade de conteúdo entre elas, sobretudo entre os vv. 1-2 e 6ss. Os vv. 6-11 podem ser entendidos como um desdobramento argumentativo do apóstolo para ratificar sua afirmação em 5.1 de que temos paz com Deus, expondo as razões desta paz. Seria uma boa possibilidade, portanto, considerar o v. l na leitura do texto para a pregação. Isto poderia tornar mais claro o porquê explicativo inicial do v. 6. Não por último há uma relação estreita entre o tema paz (v. 1) e o tema da reconciliação presente nos vv. 10-11. Associá-los poderá ajudar na pregação!

Em relação ao contexto destaque-se que a perícope anterior (5.1-5) tematiza a questão do acesso que é aberto por Cristo à graça de Deus. Tematiza também como motivo de glória (a Deus) a possibilidade outorgada pelo Espírito Santo de superar as tribulações com base na esperança que não confunde (v. 5). O convite para gloriar-se em Deus é retomado no v. 11. Nas perícopes seguintes (5.12-14 e 5.15-21) o apóstolo anuncia a superação da morte e do pecado através de Cristo e a superação da lei mediante a justificação. Ele apresenta a obra de Cristo como vitória sobre o fruto da desobediência de Adão. São variações acerca de um mesmo tema: a salvação que procede de Deus.

2. Deixando o texto falar

Embora a mensagem anunciada por Paulo nesta perícope tenha seu eixo num único tema que perpassa todos os versículos, o texto pode ser subdividido em três blocos argumentativos. Sobressai a sua intenção de comunicar a radicalidade do ato redentor de Deus em Cristo; em síntese, poderia-se dizer que Paulo comunica a mensagem soteriológica do amor de Deus, e nada mais. Mas há três núcleos de conteúdo cuja percepção é importante:

a) Em primeiro lugar destaca-se uma ênfase nos aspectos teológicos, doutrinários, da mensagem da salvação em Cristo.

b) Num segundo momento Paulo desenvolve uma argumentação que procura levar os leitores a perceberem a profundidade dos enunciados feitos, mediante uma comparação.

c) Finalmente ele aponta para a vivência condizente em relação a essa mensagem, de parte dos e das integrantes da comunidade cristã.

Ad a) Ele aponta energicamente para o contraste entre a condição humana, o que Deus fez através de Jesus Cristo e o que este ato possibilita. É a mensagem que perpassa toda a perícope e está condensada nos vv. 6, 8, 9 e 10 (talvez também se possam usar as categorias de negativo e positivo para descrever o movimento do texto e de seu conteúdo):

[Veja quadro anexo]


Há dois vocábulos gregos comuns importantes no texto. As preposições hyper e diá indicam o núcleo da mensagem comunicada. Hyper aparece associada ao verbo morrer (apotanein): cf. vv. 6-8. Duas vezes (vv. 6 e 8) está em relação com a morte de Cristo, reforçando seu caráter vicário. Neste caso hyper poderia ser traduzido por em lugar de, a favor de. Isto é ratificado com o mesmo sentido nos vv. 9-11 pela preposição dia: di' autou, dia toü tanátou, di' ou: através dele, mediante a morte, por meio de quem. Assim o centro da mensagem reside na proclamação da ação realizada por Deus: através de Cristo e em favor de nós!

O v. 9 coloca sua ênfase no fato de que a justiça do povo de Deus não lhe é inerente, mas atribuída através da morte de Cristo (mediante o seu sangue). E esta argumentação aparece coroada pela expressão muito mais — agora (polo oün malõn — nün). Ou seja, se Cristo morreu por pessoas fracas, pecadoras e inimigas (antes de serem tornadas justas), muito mais agora, depois de terem sido tornadas justas, serão salvas da ira (castigo) de Deus.

Neste ponto há uma referência ao estado em que se encontram os destinatários e destinatárias da carta: Paulo os trata como novas criaturas, como quem não está mais na condição de inimizade em relação a Deus. E por esta razão o v. 10 repete com outras palavras o que fora destacado no v. 9, porém pela via positiva. Aqui fala-se sobre o ser salvo pela vida de Cristo. É uma alusão clara aos eventos não só da Sexta-Feira Santa, mas também ao Domingo da Páscoa: morte e ressurreição não podem ser entendidas em separado; ambas são instrumentos de reconciliação e salvação. O que houve de negativo na Sexta-Feira (escândalo da cruz e morte) é substituído pelo positivo do Domingo da Páscoa (ressurreição — vida). Em Rm 8.34 há uma alusão explícita a esses dois aspectos. O tema central, portanto, que está presente nos vv. 10-11 é o tema da reconciliação (katalagé). A este respeito Bultmann escreveu que o conceito katalagé aparece em Paulo paralelamente ao conceito dikaiosyne (justiça), como qualificativo da nova situação instaurada por Deus mesmo: reconciliação como decorrência da justiça, entendida sempre como justiça de Deus, alicerçada em sua graça. Ou seja, o termo reconciliação evidencia uma mudança absoluta na forma de relação entre Deus e o gênero humano: de inimizade passa à amizade (Bultmann, p. 284-286.) Em outras palavras, aquilo que no v. l fora qualificado como estado de paz com Deus! Werner Georg Kümmel o expressa bem quando explica da seguinte forma:

“Enquanto o pensamento da justificação era uma figura da vida jurídica, a imagem da reconciliação provém do âmbito do convívio pessoal. Reconciliação pressupõe que existe entre os homens uma inimizade que é anulada mediante a disposição do lado ofendido (ou também dos dois lados) para terminar com a inimizade, ou seja, justamente por meio de um reconciliar-se.” (Síntese teológica do Novo Testamento, p. 233.)

Ad b) O v. 7 tem uma estrutura de argumentação diferente, embora tam¬bém esteja a serviço da mensagem central: o apóstolo procura evidenciar a radicalidade do amor de Deus chamando seus leitores a se colocarem no centro da questão e a refletirem acerca de quão difícil é alguém oferecer a sua própria vida à morte por outras pessoas, e o faz de forma em certo sentido didática. Neste versículo ele não centra sua atenção na questão do conteúdo teológico da obra salvadora de Deus em Cristo. Destaca a tendência humana de preservar a própria vida. Considera que talvez apenas em situações muito extremas alguém concordasse em morrer por alguma pessoa boa. Desta forma ele procura fortificar nos destinatários e destinatárias de sua carta a convição de que o amor de Deus é infinitamente profundo, por oferecer a si mesmo em Cristo em favor daqueles e daquelas que nem sequer o mereciam.

O apóstolo Paulo usa dois vocábulos diferentes neste versículo, o que pode provocar certa insegurança acerca de seu propósito. Ele até cogita da possibilidade de se morrer pelo bom (agatou), mas entende ser difícil alguém entregar a vida pelo justo (dikaíou). Como entender esta variação terminológica? Pode ser que a argumentação de Paulo seja apenas parenética, com a intenção de provocar reflexão, sem maiores implicações em termos de conteúdo. Mas a Bíblia na linguagem de hoje traduz, dikaíou como pessoa que obedece às leis (aquela que as segue e cumpre, destacando-se por isso). Esta tradução ajuda a compreender a diferença entre a justiça humana e a justiça de Deus e poderia corresponder bem aos interesses do apóstolo em enfatizar o por nós que não depende da lei, senão exclusivamente do amor de Deus. Agatou (bom) seria aquela pessoa intrinsecamente (veja Taylor, p. 7) boa, pela qual pareceria óbvio aceitar-se entregar a própria vida. Mas Paulo não cogita desta possibilidade na nossa relação com Deus: ele deu seu Filho por inimigos! Ou seja, para ele não há nem a pessoa justa por força da lei nem a pessoa intrinsecamente boa. Assim o dikaíou só o é, em verdade, mediante a morte de Cristo (dikaioténtes vün — v. 9: tendo sido feitos justos agora). O que nas relações humanas poderia se dar por força do mérito ou de um valor intrínseco, na relação com Deus dá-se apenas por causa de sua misericórdia!

Ad c) A vivência decorrente e que corresponde à vida de fé é descrita no v. 11 como o gloriar-se em Deus (kauchómenoi en to Teõ), sendo esta a consequência prática para a vida dos e das que crêem na mensagem proclamada. O v. 11 sintetiza todo o conteúdo do texto em forma doxológica, residindo aí sua peculiaridade. Tudo o que foi escrito antes ainda não conclui a mensagem do apóstolo nem o compromisso da comunidade. Não basta saber disso: a atitude de fé conduz ao louvor, à expressão e manifestação de glória a Deus (este tema já estava presente em 5.2). Talvez se possa entender aqui a realização prática da adoração a Deus por aqueles que se sabem agraciados. É, em outras palavras, um convite ao culto, sendo este um dos componentes do ”comportamento evangélico neste mundo (Brakemeier, v. l, p. 12). Embora a perícope em questão não dê contornos claros para a questão ética, o gloriar-se em Deus do qual fala o v. 11 pode ser entendido como o primeiro passo em direção a uma vivência encarnada da fé cristã. O gloriar-se em Deus é público, comunitário, coletivo e não pode ser entendido dissociado da prática cristã do amor e da justiça. Bultmann afirma que a contrapartida ao ato reconciliador de Deus em Cristo é a resposta das pessoas a Deus no processo de reconciliação: viver como reconciliados (p. 286).

3. Escopo

É muito difícil que alguém morra por outra pessoa, mesmo justa ou boa, embora até possa acontecer. Mas Cristo, mesmo quando éramos fracos, pecadores e inimigos, morreu por nós e nos possibilitou a reconciliação com Deus através da sua morte bem como a salvação pela sua vida. H por tudo isso que nos gloriamos em Deus.

4. Os outros textos do dia (leituras)

O texto de Êx 19.2-8a, previsto como leitura do AT, tem como centro lambem uma questão de conteúdo fundamental: reportando-se ao que fez pelo seu povo (libertação do Egito), Deus espera da casa de Jacó e dos filhos de Israel que preservem a sua aliança, residindo aí a peculiaridade e a base da relação de entrega e vinculação. Se o texto de Êxodo tem sua força no velho acordo, o de Romanos tematiza o novo acordo: Jesus Cristo é o portador da graça de Deus, o qual nos quer como seu povo e age para que isto seja possível.

E o texto de Mt 9.35-10.8 concentra-se na tarefa de pregação, consolo e ajuda concreta recomendada por Jesus aos seus discípulos. Esta leitura complementa a mensagem do texto para a pregação do dia, indicando o aspecto prático e concreto do seguimento de Jesus, que é inerente e indissociável da glorificação por causa do conteúdo basilar da redenção. Ou seja, a fé cristã não se limita ao louvor pelo ato passado de Deus (êxodo, paixão e ressurreição de Cristo), ou pela experiência atual que dele se faz, mas ultrapassa os limites da confissão mediante o serviço (cuja motivação é a fé).

5. Entrando em diálogo com o texto

Ad a) O texto está carregado de conceitos cujo significado simbólico não é facilmente aceito nos nossos dias para descrever a relação entre as pessoas e Deus (fracos, inimigos, pecadores, ímpios, morte, ira). Vivemos num tempo em que ondas de religiosidade otimista procuram destacar unicamente o que há de positivo e de bom nas forças e energias do ser humano com vistas à sua própria redenção. Embora isto não seja algo novo, marca fortemente o perfil de nossa época, com muitas e variadas roupagens. Sob o ponto de vista religioso, aceita-se com mais facilidade quando se fala acerca das potencialidades humanas, as quais hipoteticamente podem levar a galgar as mais altas montanhas da espiritualidade (força, integridade, bondade, mérito, concentração). Justamente o tema da espiritualidade é, com facilidade, visto apenas sob o prisma metodológico, meramente como um conjunto de recursos para melhorar a qualidade da vida pessoal. E é preciso contar com a possibilidade de que pessoas em nossas comunidades estejam fortemente marcadas por essa tendência de pensamento. Criticamente se deveria observar que essa atitude religiosa tende a ocultar a angústia e amargura de uma realidade marcada por inimizade, morte, ira, violência, injustiça. Facilmente se cai no extremo de um faz-de-conta individualista e egoísta (se eu estou bem, tudo estará bem!).

Mas, em contrapartida, a pregação cristã muito frequentemente foi e ainda é marcada por uma tendência que se concentra apenas em divisar o mal, o desagradável e o (moralmente) feio nas pessoas, com a intenção de levá-las à conversão mediante uma espécie de terrorismo teológico. No ala de convencer as pessoas da necessidade de Deus, facilmente se apela para descrições desumanas da humanidade. Somos convidados hoje a olhar também para o outro lado! O que há de bom, de agradável e de belo no ser humano? Situamo-nos, portanto, num redemoinho de tensões que clamam por ser criativamente aproveitadas. Saber ouvir torna-se imprescindível para ajudar na tarefa de falar com competência e confiabilidade. O conteúdo do evangelho precisa ser anunciado de tal forma que as pessoas o compreendam e sintam-se animadas a acolhê-lo alegremente. A forma de fazê-lo pode tanto abrir como fechar “corações”.

A pregação de Paulo contraria a possibilidade de que as pessoas construam seu próprio caminho redentor. Sua ênfase está colocada na dependência absoluta do ser humano da ação de Deus. O negativo é superenfatizado para tornar compreensível o positivo. Há um contraste radical entre o antropológico e o teológico. Ou seja, o positivo só existe após a superação do negativo através de Jesus Cristo num feito de Deus mesmo. Isto faz com que o texto seja essencialmente doutrinário e torna mais complexa a sua pregação hoje. Mas o núcleo da mensagem paulina neste texto está no anúncio da oferta de Deus. Mais importante que a descrição que ele faz da situação da humanidade antes de Cristo (inimizade, morte, pecado), é a proclamação de que Deus cria uma possibilidade nova na qual predominam a amizade e a paz; ou seja, a reconciliação. Paulo escreve aos romanos como amigos (5.10). Como nos dirigiremos à comunidade para a qual temos a tarefa de pregar? Como será que seus/suas integrantes entendem a si próprios/as? Lembro o princípio da teologia de Lutero de que somos simultaneamente justos e pecadores. Não seríamos também ao mesmo tempo amigos/as e inimigos/as de Deus, até o dia em que ele nos libertará definitivamente das marcas deste tempo? Os raios do sol não podem ser bloqueados por uma peneira. Há muita inimizade a marcar os relacionamentos das pessoas entre si (pessoal e estruturalmente). Conseqüentemente, há muita inimizade com Deus (l Jo 2.9-11; 4.20-21). Não residiria nisto também um potencial profético para a pregação?

Ad b) Há dois aspectos em questão, portanto. Paulo, em certo sentido, até mesmo se refere a eles, com suas divagações no v. 7: há pessoas boas (agatou) e justas (dikaíou)! Ou seja, não é necessário que se negue a bondade humana. Também não se precisa negar o esforço do ser humano por justiça, sua tentativa de corresponder aos princípios elementares da sua fé. São dimensões antropológicas positivas. Inclusive busca-se sempre convidar as pessoas para a prática da bondade e da justiça (tanto na relação com o próximo quanto na relação com Deus), como categorias fundamentais para o equilíbrio da vida. Sem aprofundar a questão, creio que todos e todas nós também conhecemos algumas pessoas que nos parecem intrinsecamente bons c que mereceriam que por elas se realizasse o sacrifício da própria vida. Mas o que Paulo destaca é que nem a bondade nem a justiça fazem alguém ser justo na presença de Deus. Nem mesmo o seguimento da lei enquanto cumprimento da leira tem qualidade soteriológica. lista foi a polêmica central de Jesus e seus opositores fariseus, 'lambem foi pomo de discórdia entre Paulo e cristãos judaizantes, alguns dos quais se crê que também fizessem parte da comunidade de Roma (Brakemeier, v. l, p. 8-10). Não por último convém ressaltar que essa ênfase foi um dos pilares da teologia de Lutero. Para ele não são as obras que determinam o perfil da santidade. E a fé que dá sentido às obras realizadas! Ou seja, uma espiritualidade centrada em métodos e em exercícios não necessariamente realiza aproximação com Deus. Mas convém colocar a questão também inversamente: a ausência de forma na vivência da espiritualidade implica o seu esvaziamento! Até porque não conseguimos viver apenas de conteúdos. Carecemos de estilos, de formas, de concreticidade. Neste ponto provavelmente nós precisamos alterar rumos e estimular novas práticas.

Positivamente, há um elemento fundamental de resgate da identidade cristã nesta perícope. Num tempo de flutuações doutrinárias e de cruzamento de perspectivas religiosas, faz soar de forma contundente a base sobre a qual se funda a esperança cristã: que Cristo morreu por (hyper - em lugar de, a favor de) nós. Ou seja, mesmo que possamos compartilhar com outras manifestações religiosas de métodos, formas e estilos de vivenciar a espiritualidade, há um conteúdo fundamental que a norteia. Os elementos se entrelaçam, portanto. Trata-se de uma tensão com a qual precisamos aprender a conviver. Ainda que resgatemos a positividade antropológica, não é o ser humano que restabelece a relação com Deus. A reconciliação é dádiva. E não é dádiva para quem a merecesse (5.7-8). É dádiva ancorada no amor daquele que a oferece, não na virtude de quem a recebe.

Ad c) Percebo uma chance de alimentar a espiritualidade da comunidade cristã a partir do v. 11: somos chamados e convidadas a nos gloriarmos em Deus comunitariamente por causa da reconciliação (paz!, v. 1) proporcionada através de Cristo. Esta é a pedra angular da nossa existência como comunidade e o que nos caracteriza como cristãos e cristãs: cremos e depositamos nossa esperança em Jesus Cristo, morto e ressurreto. Tudo o mais daí se deriva e nisto se alimenta, inclusive nossa ética e envolvimento em favor da vida. Ao mesmo tempo é preciso ter presente que para muitas e muitos de nossos ouvintes, gloriar-se em Deus pode ser interpretado de forma unilateral como uma manifestação de emoções e sentimentos cúlticos desvinculados da concreticidade da vida. Há um necessário equilíbrio a ser resgatado neste ponto: o gloriar-se pelas convicções da fé quer alimentar não só o espírito, mas também a solidariedade comunitária e social. E esta, uma vez vivenciada por cristãos e cristãs, remete ao culto, no qual se consolida e retroalimenta mediante o celebrar comunitário. Falar em ' 'gloriar-se'' também pode suscitar dificuldades para a pregação. Não se trata de uma teologia da glória que deseja unicamente olhar para cima, para longe da realidade cotidiana de cruz e sofrimento. O gloriar-se do qual Paulo fala não pode ser entendido em separado do todo do evangelho, o qual nos convida ao envolvimento com a vida justamente onde e quando ela se acha ameaçada. Gloriamo-nos, portanto, não arrogantemente, mas em gratidão por podermos ser parceiros e parceiras de Deus em seu projeto de reconciliação.

6. Pensando na pregação

O que segue abaixo é um roteiro possível para a pregação, que deverá ser adaptado e enriquecido por cada pregador e pregadora. Reconciliação e gloriar-se em Deus são tomados como as duas vertentes temáticas centrais do texto também para a pregação.

a) Poderia-se iniciar a pregação propondo um diálogo com a comunidade (ou, se preferir, o/a pregador/a pode optar por falar para a comunidade desde o princípio): acerca de como se pode entender ou como se entende a palavra reconciliação e a expressão gloriar-se. A pregação / diálogo deveriam tentar extrair elementos variados e diferentes possibilidades de interpretar ambas as palavras, uma de cada vez. Falar de reconciliação pressupõe um estado de inimizade, ou pelo menos de dificuldades no relacionamento. Exemplos poderiam enriquecer plasticamente a compreensão. Há uma contribuição muito valiosa para pensar sobre os temas reconciliação e inimizade com Deus num auxílio homilético de Gottfried Brakemeier, em Proclamar Libertação, vol. XVI, p. 140-143, sobre o texto de 2 Co 5.(14b-18)19-21. Gloriar-se normalmente significa querer aparecer, até mesmo em termos de fé (parábola do fariseu e do publicano). Será que a comunidade tem outra compreensão para isto?

b) Explicar que todo o exercício anterior tem sua razão de ser num texto do apóstolo Paulo, no qual ambas as expressões aparecem. Após ter-se pensado / refletido sobre elas de forma genérica, vamos permitir que a palavra de Deus presente nas palavras de Paulo fale a nós.

c) Fazer a leitura do texto.

d) Tematizar de forma clara o conteúdo do anúncio de Paulo: 1) que Deus nos reconciliou consigo em e através de Cristo, restabelecendo a paz; 2) que esta é a razão do gloriar-se da comunidade cristã. É a reconciliação que nos faz ser e permite que continuemos sendo comunidade! Convém explicar como Paulo entendia essas duas dimensões centrais. O texto fala da possibilidade de amizade e de inimizade; merece ser refletido acerca de onde nós nos situamos como pessoas que integram a comunidade cristã. Ilustrar mediante exemplos comuns de situações entre pessoas que se reconciliam a partir da iniciativa de uma delas, ato muitas vezes imprescindível para que se chegue a gozar novamente de paz no relacionamento. Tal ato é composto por duas faces: o pedido de perdão e a respectiva oferta do perdão, destacando-se que nem sempre o perdão depende de um pedido para ser experimentado. Quando reiniciamos cada dia amorosamente com esposo, esposa, filhos e filhas, pai e mãe, colegas, etc., dando por esquecidas as querelas do dia anterior sem que seja preciso que nos peçam perdão por cada ofensa, estamos permitindo que aconteça reconciliação! Apontar para diferenças e/ou semelhanças entre o que foi falada no início da pregação e o que o texto anuncia.

Como exemplo lembro-me do seguinte fato da vida: uma reportagem televisiva mostrou cenas de uma filmagem casual. Uma mãe desesperada bate agressivamente em seu filho de 21 anos com um pedaço de madeira na tentativa de resgatá-lo, de reconciliá-lo consigo mesma e com a vida, libertando-o assim das drogas. A mesma reportagem mostrou a reação e o depoimento de ex-drogados, os quais destacaram que às vezes é necessário que pais e mães tomem atitudes enérgicas para resgatar seus filhos em nome da vida. A reconciliação não se obtém através de panos quentes!

Reconciliação, portanto, nem sempre é um processo indolor, sem sacrifícios. Também Deus reconcilia-nos consigo na morte e ressurreição de Cristo e nos torna, assim, seus amigos e amigas. Como o filho que precisou ser chamado à possibilidade de uma nova vida, também Deus nos chama em e através de seu próprio Filho (no madeiro)! Neste sentido é interessante lembrar uma afirmação de Bultmann segundo a qual a fé cristã na graça de Deus não consiste em pensar que Deus não seja juiz ou que ele não possa se irar, mas na convicção de sermos libertos da sua ira e de seu juízo (p. 288)!

e) Apresentar algumas consequências para a vida cotidiana e comunitária. Aproveitando exemplos que já tenham sido mencionados, destacar que a comunidade se caracterizará por um viver como pessoas reconciliadas; como gente que não é mais inimiga de Deus, que não precisa sê-lo. E que, em decorrência, busca a paz, nisto consistindo o seu gloriar-se. O texto fala de bons e justos; como podemos entender a nós mesmos? Gloriamo-nos por ser bons? Gloriamo-nos por ser justos? (Não esquecer que, no caso do texto de Paulo, justo está em correlação com estar de acordo com a lei.) Gloriar-se em Deus acontece na comunidade de culto, mas também e sobretudo no burburinho da vida confusa de nossos dias. Não nos gloriamos em Deus para aparecer ou nos considerar acima dos outros (qualificando a nós próprios como bons ou justos), mas para servir. O serviço a favor da vida é o instrumento prático de nossa proclamação. Neste ponto talvez se possam relembrar as leituras do dia: o texto de Êxodo fala de uma relação de fidelidade (conteúdo); e o texto de Mateus aponta para a perspectiva concreta de uma espiritualidade solidária (forma), que não se restringe ao seu lastro teórico (Mt 10.8). De um lado está Deus que nos torna seu povo, e de outro está o seu povo que o reconhece como Deus e age com base na sua palavra.

7. Pensando na celebração

Intróito: Salmo 138.1-2.

Hinos: O povo canta: 44 (a palavra indica por onde andar), 78 (palavra como ponte para o amor), 233 (reconciliar-se com o irmão); Hinos do povo de Deus (HPD): 206 (Jesus como amigo; encarnação como sinal de amor); 251 (cantar como expressão de louvor e glória a Deus); 158 (credo cantado).

A confissão de pecados poderia tomar Is 64.5-7,9 como referência: confessa nossa justiça como trapo de imundícia e questiona: Havemos de ser salvos? Suplica: Não te enfureças tanto, ó Senhor, nem perpetuamente te lembres da nossa iniquidade.

A proclamação da graça de Deus poderia basear-se no v. 8 de Is 64:

Mas agora, ó Senhor, tu és nosso Pai, nós somos o barro, e tu, nosso oleiro; e todos nós, obra das tuas mãos. (O HPD o apresenta também como hino: n° 194).
Imediatamente após a pregação, ainda do local de onde se pregou (púlpito?), se poderia proferir a seguinte oração: Querido Deus. Tu és para nós mãe e pai rico em misericórdia. Desde os tempos mais antigos declaras teu amor e cuidado por nós. Fazes de nós um povo de mulheres e homens, crianças e idosos, de sãos e enfermos, de culturas e peles diferentes. Tu nos reconcilias contigo. Quebras as algemas da inimizade e restauras a paz. Podemos viver como reconciliados e reconciliadas, como gente marcada por novidade de vida. Por isso nós suplicamos: sopra o vento animador de teu Espírito sobre nós e ajuda-nos para que seja quebrada a dureza de nosso coração. Que também entre nós possamos sair em busca de reconciliação verdadeira, aquela que supera as diferenças e restaura a vida. Que a tua paz, que de graça recebemos, de graça possamos compartilhar. Amém.

Bibliografia

BRAKEMEIER, Gottfried. Carta aos Romanos — l a 6. São Leopoldo : Comissão de Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1982. (Série Exegese, volume 3, fascículos l e 2).
BULTMANN, Rudolf. Theologie des Neuen Testaments. 6. Aufl. Tübingen : J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1968.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1982.  (Nova coleção bíblica, 13).
_. Síntese teológica do Novo Testamento. 2. ed. São Leopoldo : Sinodal, 1979.
TAYLOR, William C. Dicionário do Novo Testamento Grego. 5. ed. Rio de Janeiro : JUERP, 1978.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Mauro A. Schwalm
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 4º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 5 / Versículo Inicial: 6 / Versículo Final: 11
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1998 / Volume: 24
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7191
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O ponto principal do Evangelho, o seu fundamento, é que, antes de tomares Cristo como exemplo, o acolhas e o reconheças como presente que foi dado a ti, pessoalmente, por Deus.
Martim Lutero
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