Romanos 8.14-17

Auxílio Homilético

18/06/2000

Prédica: Romanos 8.14-17
Leituras: Deuteronômio 6.4-9 e João 3.1-17
Autor: Antônio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: 1° Domingo após Pentecostes (Trindade)
Data da Pregação: 18/06/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Pentecostes


Introdução

Abba

Esta é uma palavra tão pequenina, e no entanto abrange todas as coisas. A boca não fala assim, mas o afeto do coração fala desse modo. Ainda que eu seja oprimido pela angústia e terror de todo lado, e pareça estar abandonado e ter sido totalmente expulso da tua presença, contudo sou teu filho e tu és meu Pai, por amor de Cristo: sou amado por causa do Amado. Por conseguinte, esta pequena palavra, Pai, concebida efetivamente no coração, sobrepuja toda a eloqüência de Demóstenes, de Cícero e dos mais eloqüentes retóricos que já houve no mundo. Esta matéria não se expressa com palavras ou com oratória, pois nenhuma língua os pode expressar. (Martim Lutero.)

Todos nós já clamamos. Aos gritos ou aos sussurros. De forma pública ou recolhida. Por situações íntimas, como a doença do filho, ou públicas, como a violência presenciada nas ruas. E sob variados graus de pressão ou risco. Por isso sabemos que clamor não é coisa exclusiva do coração, mas é do corpo todo.

Estamos diante de um texto de profunda espiritualidade, escrito por Paulo, um homem marcado pelos seus atos, suas mudanças e as consequências daí advindas. O tema envolve visão do mundo, conflito de culturas e religiões diferentes.

O clamor ajuda a redescobrir a convicção de que não somos donos de nós mesmos. Com esse sentido de comunhão com o Pai, a disposição de aprender do que o texto tem a dizer e o interesse de colocar esse ensinamento a serviço do povo de Deus, sigamos.

Considerações exegéticas

A perícope vem do chamado corpus Paulinum, uma coleção dos textos das cartas de Paulo, ao qual os autores do séc. 2 se referem, especialmente Marcião e o Cânon Muratori. Essa epístola deve ter sido ditada a Tércio, um cristão colocado à sua disposição como secretário por seu hospedeiro Gaio, nos primeiros dias do ano de 57 d. C. Foi a última carta escrita por Paulo, antes de ficar preso em Cesaréia e Roma.

Essa epístola teve outras cópias, enviadas a outras igrejas, fato denunciado pelas edições que terminavam em 15.33 e 14.23, com ou sem o acréscimo da doxologia, e pela omissão das palavras em Roma no cap. l, vv. 7 e 15.

O texto que falta, o cap. 16, com saudações pessoais, teria valor apenas para a Igreja de Roma, onde foi guardado por Clemente como um tesouro, que conseguiu sobreviver à perseguição de 64 d.C. A linguagem da carta aparece na carta enviada por Clemente em nome da Igreja Romana à Igreja de Corinto em 96 d.C.

Análise do texto

O cap. 8 da Carta aos Romanos é dedicado a distinguir as coisas da carne das coisas do Espírito. Paulo insiste que é preciso deixar o Espírito conduzir, dirigir, impulsionar, controlar, mortificando as obras do corpo. Rejeitar essa intervenção é correr o risco de não apenas morrer, mas morrer sem a esperança da vida com Deus. Daí observar que se pelo Espírito fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis (v. 13).

Deixar-se guiar por Deus é a forma de os cristãos superarem sua condição de escravos (doulos) e passarem à de filhos de Deus, pela ação do Espírito. Essa atitude consciente não é passiva, mas exige envolvimento íntimo. A palavra usada no v. 14 (huioi Theou) expressa melhor a relação legal do filho como herdeiro que a usada no v. 16 (tekna Theou).

A palavra latina família designa não apenas os filhos, mas o conjunto de criados e escravos domésticos que vivem sob o mesmo teto. Paulo enfatiza a condição de filho para assegurar a herança, o que fará diferença entre os filhos e os demais membros depois da morte do senhor. Segundo Fitzmeyer, a palavra huiothesia foi um termo técnico do mundo greco-romano, criado para expressar o ato de uma pessoa assumir legalmente o status de filiação numa família natural. Para Paulo ela se equipara à condição dos cristãos batizados de se colocarem, pela fé, sob a pátria potestas (autoridade paterna) e assim tomarem parte da família de Deus na condição de filhos.

Escrevendo em tempos em que havia cristãos como escravos, Paulo contrasta esta condição, sob a tutela da lei, com a de filhos. Para isso usa as expressões espírito de escravidão (pneuma douleias) e espírito de adoção/ filiação (pneuma huiothesias) (v. 15). A diferença está na obediência e no destino futuro. Enquanto um bom filho está disposto a obedecer, um escravo está obrigado a tal. Ademais, um escravo não participa da herança, mas o filho sim, enfatiza Ziesler. Deus tem enviado o Espírito do seu Filho aos corações dos seus filhos, com a intenção de estabelecer um relacionamento íntimo, baseado em confiança, que possibilita a estes deixar-se conduzir por Deus.

A expressão espírito de escravidão compara-se a espírito do mundo (pneuma tou kosmou), usada em l Co 2.12, e espírito de covardia (pneuma deilias), usada em 2 Tm l .7, e contrasta-se com o espírito de adoção, que torna os crentes filhos de Deus e os capacita a chamarem a Deus de Pai. A ideia de adoção não é trazida diretamente por Paulo do AT nem está presente na LXX, mas é um desenvolvimento da ideia da eleição divina de Israel como seu povo escolhido — Israel é o meu primogênito (Êx 4.22) - que agora é adaptada à situação posterior dos cristãos como crianças adotadas de Deus, deixando de ser um povo e passando a fazer parte da família de Deus. Da mesma forma, o Espírito Santo recebido pelos cristãos não era espírito de servidão que os conduziria de volta a temores angustiados e medo do Senhor, que eles poderiam ter experimentado no paganismo ou no judaísmo.

No séc. l, um filho adotivo era um filho escolhido deliberadamente por seu pai adotivo para perpetuar seu nome e herdar seus bens. Sua condição não era inferior à de um filho natural, podendo desfrutar plenamente da afeição paterna e reproduzir dignamente a personalidade do pai. Se, do ponto de vista jurídico, passar da condição de escravo à de filho significava um salto, do ponto de vista da salvação, deixar-se guiar pelo Espírito significa obter acesso ao projeto de Deus, que é vida e liberdade. A crise daquilo que é denominado conversão de João Wesley veio quando, em suas próprias palavras, 'trocou a fé própria de servo pela de filho' (C. A. Anderson Scott, Words, 1939, p. 15, apud Bruce). Entre os direitos que a condição de filho dá está o de clamar.

Para Paulo, o espírito de adoção dá aos cristãos condições de dirigirem-se a Deus dizendo: Abba, Pai (v. 15). Nessa expressão, ele preserva a transliteração grega da palavra aramaica paia pai ('abba'), .seguida da equivalente (ho pater), retiradas da recente tradição dos cristãos de laia grega. Aba, que em sua origem é uma forma exclamatória empregada pelas crianças pequenas, passou a ser usada mais amplamente a partir da época de Jesus.

Esse clamor foi usado por Jesus no momento de sua suprema confiança terrena em Deus (Mc 14.36) e guardada na memória popular. Segundo Fitzmeyer, muitos intérpretes do NT consideram a palavra 'abbá' como um caso da ipsissima vox lesu, fórmula que tornou-se constante nas comunidades gentílicas de fala grega e distinguida, ao aparecer junto com ho pater.

Nos vv. 15 e 16 Paulo estende essa expressão, endereçada a Jesus, a todos os cristãos. Paulo certamente não está falando aqui de um mero costume litúrgico. O 'clamor' Abba! é destacado como evidência de que somos filhos de Deus, não como evidência de que isto foi a doutrina oficial da Igreja expressa em sua liturgia (C. H. Dodd, Romans, p. 129, apud Fitzmeyer). A palavra usada no v. 16 é tekna (criança), podendo significar adulto, em relação aos pais. Ao referir-se ao ato de o Espírito testemunhar, o verbo tem o sentido de ' 'assegurar''.

Capacitados a clamar, os cristãos são feitos também herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo. Paulo usa a palavra kleronomoi, empregada na LXX para traduzir o hebraico yores', que significa dar um título de possessão. Nossa esperança é que nossa filiação e nosso direito de herança estão baseados na nossa relação com ele e no fato de ele nos ler reivindicado para si próprio. A expressão se é certo que com ele padecemos (v. 17) refere-se ao sofrimento que resulta da fidelidade a Cristo no mundo que ainda não o conhece como Senhor.

Pistas para a prédica

O texto bíblico indicado para a pregação retoma o tema da espiritualidade. Verdadeira espiritualidade trata dos temas que mexem com nossas paixões. Por isso sugiro que o/a pregador/a inicie a prédica pedindo que a comunidade se manifeste diante de cartazes com as palavras-chave do texto: clamor, filhos, escravidão, herança e sofrimento.

Mesmo que haja silêncio diante de uma ou outra, os cartazes devem induzir as pessoas a refletirem sobre a palavra. Ao revolver a carga de conteúdo que cada palavra dessas conota, o exercício deverá provocar reflexão e emoção. Agora a tarefa é fazer uma amarração, a partir da ética de Paulo.

Sugiro que a reflexão indague o que significa o espírito de escravidão em nossos dias. Dos problemas do dia-a-dia às formas de lidar com as limitações do grupo, à expressão da espiritualidade. Não será espírito de escravidão limitar formas cultuais de expressão, dificultar a presença em esferas de poder e sufocar os pequenos grupos?

E o espírito de adoção? Conscientes de sermos filhos por adoção, o que nos impede de também adotar? O que é possível fazer para que filhos e filhas diferentes se sintam acolhidos nesta comunidade? Quais os medos criados entre nós por diferenças como cor da pele, cultura, nível de desenvolvimento e orientação sexual?

E se o/a pregador/a perceber que ainda não se podem discutir essas questões com abertura, respeito e coragem, nem assumir limitações e muito menos dar passos, pode enfatizar o clamor. O mesmo Espírito que nos assegura a filiação de Deus intercede por nós, ilumina em meio às trevas e dá serenidade durante a tempestade. De orar pelos que sofrem com o espírito de escravidão, a começar por si mesma, a comunidade não será impedida.

Confissão de pecados

Sugiro que a confissão dos pecados seja feita de forma comunitária, com as pessoas cabisbaixas, ouvindo reflexivamente a leitura do hino 150 de Hinos do povo de Deus (HPD). No anúncio da graça, o/a dirigente poderá ler o texto de Rm 8.10-11, enfatizando que Deus nos acolhe e nos ensina a acolher também.


Bibliografia


BORTOLINI, J. Como ler a Carta aos Romanos. São Paulo : Paulus, 1997.
BRUCE, F. F. Romanos:Introdução e comentário. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1979.
CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. São Paulo : Paulinas, 1992.
FITZMEYER, J. A. Romans. New York : Doubleday, 1993.
Z1ESLER, J. Paul's Letter to the Romans. London : SCM, 1989.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia
 


Autor(a): Antônio Carlos Ribeiro
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 1º Domingo após Pentecostes - Domingo da Trindade
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 8 / Versículo Inicial: 14 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12818
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