Teologia e Economia: um Retrospecto

Artigo

02/11/1995

Notas Históricas

O continente latino-americano ficou conhecido mundialmente, nas últimas três décadas, como um grande laboratório eclesiológico. Esta fama deve-se sobretudo à práxis pastoral-profética de diferentes segmentos confessionais, comprometidos todos com a libertação dos empobrecidos e com bandeiras revolucionárias.

A mencionada práxis pastoral-profética teve como signos: a indignação ética diante das condições sociais dramáticas das maiorias; a chamada opção pelos pobres; a libertação política e econômica como horizonte (utopia histórica); e o Reino como paradigma (utopia escatológica). O discurso compatível com esse ideário tomou o nome de teologia da libertação (TdL), que tornou-se a responsável por uma reviravolta metodológica sem precedentes na história continental da produção de conhecimento teológico.

Desde seus primórdios a TdL, em particular a primeira geração de teólogos que passou a produzir conhecimento segundo uma perspectiva genuinamente latino-americana, considerou com seriedade a dimensão econômica da realidade. Contudo, a vigência dos regimes de segurança nacional, seguidos de um lento processo de redemocratização, ao lado da emergência de movimentos sociais e populares, e do projeto da assim chamada Igreja popular, levaram esse pensamento teológico a contemplar a dimensão política com maior intensidade e frequência.

No entanto, a partir da segunda metade da década de 1980 assistimos ao surgimento, em nível planetário, de transformações estruturais inimagináveis até então. O capitalismo internacional sofreu uma profunda remodelação e adquiriu uma nova fachada, denominada neoliberalismo. A par disso, o socialismo real experimentava a sua derrocada, simbolizada na demolição do muro de Berlim, lira o fim da famigerada Guerra Fria.

No continente, os reflexos das transformações estruturais se precipitaram rapidamente. Servem como exemplo, entre tantos outros: a derrota eleitoral dos sandinistas; a crise cubana; e os resultados das eleições presidenciais em vários países, onde candidatos alinhados ao neoliberalismo alcançaram vitórias significativas. Evidentemente, a práxis libertária cristã em nossas paragens não poderia permanecer incólume diante de transformações de tamanha envergadura; tampouco o discurso teológico poderia permanecer inalterado.


Da Nova Ordem Mundial

É preciso ressaltar que todas essas mudanças desaguaram, e ainda desaguam, na configuração de uma nova ordem internacional. A partir da situação privilegiada do capitalismo de livre mercado, aliviado de confrontações ideológicas, essa nova ordem impõe-se, dando por assentado que não existe qualquer alternativa.

Recentemente, numa revista canadense, publicou-se uma propaganda de um banco de investimentos. Nela vê-se o desenho de um mapa-múndi singular. Os continentes, regiões e países aparecem com uma extensão territorial correspondente à importância deles no mercado de capitais. Assim, a distribuição do espaço torna-se inusitada. Os continentes africano e latino-americano, por exemplo, não passam de pequenas manchas. Por seu turno, o Japão, a Europa e os EUA estão superdimensionados. Porém o que mais chama a atenção é uma frase que principia o texto propagandístico: Este é o mundo real.

Talvez esta seja a melhor síntese da nova ordem que se está instaurando após o fim da Guerra Fria. O mundo real inclui apenas aqueles que são relevantes para a economia de mercado. Essa propaganda traduz o mais tenebroso dos fenômenos hodiernos: a exclusão sistêmica. Regiões, países e povos de um momento para o outro tornaram-se descartáveis. A substituição de matérias-primas e de mão-de-obra, em decorrência da alta tecnologia, vai relegando a um plano ainda mais subalterno nações e povos situados na periferia do capitalismo.

A exclusão sistêmica extrapola o processo de marginalização, bem como altera as formas clássicas de exploração. Hoje, mais do que os temidos espectros da marginalidade e da espoliação, vemo-nos diante de um processo excludente de grandes proporções e de consequências imprevisíveis. Além de aspectos econômicos, vale ressaltar que essa nova ordem internacional introduz formas inéditas e sutis de dominação, fazendo uso dos sofisticadíssimos aparatos da mídia eletrônica e da informática. Nesse quadro é que a teologia latino-americana redescobre a importância da economia e como, por meio dela, a dinâmica social está sendo substancialmente alterada.

Para essa nova situação, grande parte do arsenal teorético disponível no domínio das ciências humanas e sociais tornou-se insuficiente e inadequado. Tal carência influi decisivamente num dos aspectos fundamentais da metodologia da TdL: o recurso à mediação sócio-analítica. Assim sendo, apresenta-se para a teologia latino-americana a tarefa impostergável de produzir novos paradigmas e categorias que dêem conta dos desafios presentes na dinâmica histórico-cultural. E nesse esforço descobriu-se, através de uma leitura dos fatos recentes, a necessidade da formulação de uma crítica teológica da economia política.

Assistimos à concretização de uma ordem transnacional, nas esferas econômica, cultural e de conhecimento, bem como à reestruturação completa da geopolítica, ao lado de uma nova pauta de temas transfronteiriços, tais como: meio ambiente, migrações, afirmação de identidades étnicas e religiosas, aproveitamento de recursos naturais, e congêneres. A bem da verdade, pode-se afirmar que a antiga ordem internacional vai cedendo espaço a uma poliarquia internacional com recorte político-militar.

Nesse contexto, as contradições são agudas e surpreendentes. Na mesma proporção em que se agigantam os megaprojetos, detecta-se a emergência inquietante das lutas étnicas. No campo religioso, o diálogo ecumênico vai sendo substituído pelo neoconfessionalismo e pelo fundamentalismo proselitista. Trata-se de vetores antagônicos: a força dos mega versus as lutas pelo particular /regional/nacional/local.

Por outro lado, faz-se mister destacar a conjugação entre microeletrônica, automação, robótica e telecomunicações, ou seja, destacar os pacotes tecnológicos, responsáveis absolutos pelas transformações radicais no processo produtivo e na divisão internacional do trabalho. Pode-se inferir disso que a sobrevivência econômica das nações dependerá, doravante, das habilidades de criação, inovação, renovação e adaptação respectivas. Ademais, esse fator tecnológico desloca o eixo de poder para os domínios da informação e do conhecimento, ampliando de maneira colossal o conceito de mercado.

É oportuno advertir que nessa nova ordem as mudanças de natureza econômica subordinam-se a uma estratégia política ambígua. Isto significa que nos eixos Sul-Sul e Sul-Leste postula-se o desengajamento do Estado segundo a receita neoliberal. Entretanto, no eixo Norte-Norte não se cogita um esvaziamento do Estado, mas sim uma reformulação pragmática, cuidadosamente estabelecida caso a caso. Com efeito, é preciso admitir que os destinos do mundo dependem de um reduzido círculo de organizações e pessoas capazes de abarcar o conjunto das relações entre tecnologia, produção, reprodução e distribuição de bens e riquezas.

Por tudo isso, pode-se constatar que a práxis libertária cristã latino-americana encontra-se nos dias atuais perante um desafio monumental, mais difícil de ser enfrentado do que os regimes de segurança nacional. Ainda mais grave é a presença de uma ideologia de cunho totalitário que pretende demonstrar a inexistência de qualquer alternativa. Tal ideologia comporta um núcleo perverso, que considera as massas empobrecidas como um obstáculo ao crescimento econômico, i. é, à expansão do mercado total. Segundo essa lógica econômica, os contingentes empobrecidos demandam direitos fundamentais sem uma contrapartida compatível em termos produtivos. Portanto, seria melhor que simplesmente não existissem.

Essa perversidade é tamanha que mesmo importantes líderes políticos mundiais que perfilharam o neoliberalismo estão conscientes de que ele produzirá situações catastróficas e em grande escala. Porém admitem, ao mesmo tempo, que nesse particular o sistema encontra-se fora de controle. Em outras palavras, no presente estágio, assim como nos estágios subsequentes, os mecanismos sistêmicos mais embaraçosos não podem ser controlados por nenhuma potência conhecida.

Diante dessa situação, deve-se questionar onde fica a garantia da manutenção da dignidade humana, supostamente um valor indiscutível. Vale sublinhar que, a esta altura, a exclusão já se encontra generalizada em nível mundial; basta mencionar os bolsões de pobreza e desemprego nos países ricos. Todavia, alguns insistem na identificação sócio-econômica condensada no vocábulo marginalização. Geralmente, este vocábulo designa os segmentos que se encontram no último elo da cadeia de espoliação, bem como as minorias rejeitadas devido a comportamentos desviantes. No entanto, o quadro atual nos apresenta uma realidade ainda mais sombria.

O capitalismo tardio trouxe consigo um complicador adicional para as nações empobrecidas do Hemisfério Sul, reduzidas desde sempre à condição de fornecedoras de matérias-primas e de mão-de-obra barata. Antes, aliado dependente do grande capital, o chamado Terceiro Mundo vai sendo confinado na sua condição periférica. Como resultado da evolução tecnológica, que o mesmo Terceiro Mundo financiou por meio de sua exploração sistemática e de seu endividamento externo, ele já não representa mais uma peça vital na engenharia sistêmica.

Ser fonte de matérias-primas e de mão-de-obra barata perdeu o poder de barganha, devido à substituição de materiais e à tecnologia aplicada à produção. Intensificou-se ainda o controle das fontes energéticas estratégicas por parte dos impérios, como bem demonstrou a Guerra do Golfo.

Desse modo, assistimos a algo maior do que a discriminação de segmentos sociais ultra-empobrecidos ou delinquentes. O que se configura é a exclusão deliberada de povos, grupamentos, países e regiões do planeta. Tal realidade torna imperativa, no plano macro, uma nova tematização: quanto à qualidade de vida material e espiritual dos povos empobrecidos; quanto às relações com os países do Hemisfério Norte; e quanto à articulação Sul-Sul.
Na América Latina, na esteira do neoliberalismo, os governos nascidos do processo de redemocratização que se seguiu ao período autoritário militar têm-se empenhado na implantação de uma racionalidade econômica em grande parte caudatária da universalização da racionalidade técnico-instrumental.

À medida que a racionalidade instrumental se torna mundial, o processo de modernização adquire uma natureza imperativa. Nenhuma economia nacional poderia renunciar à modernização, sob pena de condenar-se ao atraso. Em outras palavras, qualquer proposta de desenvolvimento econômico que se queira desatrelada dos circuitos internacionais estaria fadada ao fracasso. Acrescente-se que a globalização da economia acarreta, como consequência inevitável, um ajuste estrutural.

A pergunta é: quem deve pagar e quanto custa o ajuste estrutural? Qualquer que seja a resposta, devemos dar por assentado que o processo de modernização acentua a fragmentação social. Assim sendo, a sociedade latino-americana vai-se tornando uma sociedade dos dois terços, na qual um terço da população vai sendo condenada ao estado de miséria absoluta e tornando-se supérflua para o sistema. Em síntese: a integração transnacional comporta a desintegração dos países pobres.

Leitura Teológica

Entender a condição humana na situação em que vivemos extrapola as análises estruturais e conjunturais que o saber científico faculta. A situação está a exigir a inclusão da hermenêutica teológica. Em outras palavras, isto significa produzir-se uma criteriologia que tenha como substrato a utopia escatológica do reino de Deus. Sabe-se que o Reino jamais coincide totalmente com os projetos humanos, nem mesmo com aqueles mais bem intencionados. É preciso considerar, ademais, que vivemos uma transição. Estamos vindo de um momento no qual a reflexão teológica fundamentava-se em axiomas e certezas. Vivemos outro momento, no qual só dispomos basicamente de questionamentos e postulados provisórios.

As gerações de cristãos que se engajaram na luta pelo desenvolvimento dos povos do Terceiro Mundo em geral e da América Latina em particular experimentam certa frustração, porquanto o sistema dominante cria mecanismos cada vez mais eficazes para submeter nossos povos a uma condição subalterna, quando não de exclusão. Todos os esforços empreendidos nas últimas décadas não foram suficientes para impedir que a pauperização se ampliasse e as alternativas de melhoria ficassem mais raras e distantes.

Não devem ser apontadas apenas causas externas para a frustração. É prudente que se efetue uma autocrítica qualificada, isto é, capaz de assinalar, simultaneamente, equívocos cometidos e avanços obtidos. É hora de se revisitarem temas bastante conhecidos, mas que na atualidade estão a exigir novos enfoques, em face do mencionado estágio de transição em que nos encontramos.

É preciso analisar, com a devida profundidade, as causas que levaram a TdL a incorrer em determinados equívocos e a apresentar sérias lacunas, especialmente a escassez de análise crítica da economia de mercado, sobretudo em seus aspectos simbólicos, assim como a ausência de autocríticas. Vale reafirmar que essa retomada analítica deve partir do princípio da dignidade e do direito à vida plena de todos os seres humanos renegados no atual contexto de exclusão.

O capitalismo, nas décadas de 1950 e 1960, propunha reformas sociais e econômicas para os países do Terceiro Mundo, devido principalmente ao receio de soluções alternativas que descambassem para o socialismo. Num determinado estágio, a solução para a América Latina foi transformá-la num laboratório para as experiências do capitalismo transnacionalizado. Nesse estágio, as virtuais alternativas ficaram sob o controle das ditaduras militares. Hoje, o capitalismo está ciente da inexistência de uma alternativa global concreta, fato que o converte num sistema desenfreado em suas pretensões.

Os cristãos latino-americanos lutaram durante décadas, juntamente com os movimentos sociais e populares, contra a exploração econômica. Na atualidade, na nova lógica capitalista, os contingentes humanos que não podem ser aproveitados na produção tornam-se permanentemente descartáveis. Está em curso uma revolução copernicana! Estamos atingindo uma etapa na qual ser explorado tornou-se um luxo, porquanto significa não estar excluído. Evidentemente, esta mudança afeta de modo significativo todas as estratégias dos sindicatos, dos movimentos populares e, com efeito, das pastorais sociais e de outras modalidades cristãs de solidariedade e serviço.

Ao contrário dos grandes sistemas econômico-políticos conhecidos desde a Antiguidade, o capitalismo tardio dispensa a legitimação religiosa. Para dispensá-la, esse sistema utiliza-se de um expediente curiosíssimo: passa a reivindicar, de maneira sutil, uma sacralidade intrínseca. Isto significa exigir fidelidade absoluta, por parte de todos, às suas boas novas, entre as quais destaca-se a promessa de um paraíso (realização de todos os desejos humanos), por intermédio do livre mercado. Segundo essa concepção, o mercado seria uma grandeza supra-humana capaz de conduzir ao paraíso da satisfação total dos desejos. Assim sendo, deixa de ser um sistema econômico para transformar-se numa grandeza escatológica!

Obviamente, para se alcançar esse paraíso de satisfação dos desejos pelo consumo, será necessária uma longa caminhada, cuja tónica consiste no ajuste econômico. Os economistas e técnicos costumam recorrer com frequência à simbólica religiosa, quando se referem a essa longa trajetória. A figura preferida tem sido a da travessia do deserto em direção à terra prometida. E nesta figura encontra-se travestida uma das faces mais perversas do atual sistema.

Referimo-nos à lógica dos sacrifícios necessários para que se possa alcançar o cumprimento das promessas paradisíacas. Tais sacrifícios dizem respeito às populações que se encontram alijadas do consumo em níveis aceitáveis pelas regras do livre mercado. A equação é a seguinte: a produção destina-se apenas aos segmentos em condições de consumi-la e ainda demandar mais. O regime dessa produção é concorrencial, o que significa a sobrevivência apenas dos mais aptos. Escalonando-se essa lógica para todos os níveis das relações econômicas, o resultado é que os incapazes, ou seja, os desqualificados segundo esse equacionamento, terão que ser sacrificados para que o mercado, um dia, possa alcançar plenamente seus objetivos.

Podem-se extrair disso duas inferências: 1) os excluídos são apenas parte de um processo sacrifical supostamente inquestionável; 2) solidarizar-se com os excluídos prejudicaria o livre curso do mercado e postergaria o cumprimento da promessa. Somente nessa perspectiva podemos entender a aparente contradição dos governos (e. g., Reagan) que diminuíram de maneira drástica u seguridade social beneficiadora dos empobrecidos, alegando que tomavam tais medidas em benefício dos mesmos pobres.

Teológica e biblicamente falando, estamos diante do mais extraordinário e abrangente processo idolátrico de que se tem notícia em nossa história recente. O sentido teológico de idolatria se define justamente como as tentativas reiteradas de pessoas e/ou instituições ocuparem o lugar que só pertence a Deus e exigirem obediência incondicional até o limite do sacrifício da vida.

Dessarte, é oportuno questionar o tão decantado decurso de secularização do mundo ocidental. Ao invés do propalado banimento da religião, o que presenciamos é um requintado incentivo à idolatria, por iniciativa de um sistema que se quer divinizado, conquanto sob um disfarce pretensamente científico e secularizado. Talvez este seja o fato mais desafiante para a teologia latino-americana, cuja função primeira, como de resto de todo o pensar teológico, é desmascarar aquilo que não é de procedência divina, muito embora se apresente como tal. Portanto, quando alguns teólogos falam a respeito de uma luta dos deuses, não o fazem em sentido retórico.

Vale reiterar a esta altura que, para os cristãos libertários, a situação atual é muito mais grave do que a anterior. Estamos enfrentando um adversário muito mais forte, muito mais sofisticado e muito mais diabólico do que os regimes de segurança nacional. Talvez seja a construção econômica, política e ideológica mais terrível já produzida pela humanidade! Não é casual que tenha surgido no fim de um milénio e como fruto de uma civilização que consagrou a razão instrumental-utilitária.

Trata-se de uma ideologia terrível porque tenta convencer as massas de que as ideologias acabaram de uma vez por todas. É absolutamente totalitária porque pede de todos a alma, o corpo, a submissão e o temor reverencial. E tudo isso por meio do poder das imagens e dos símbolos; acrescente-se a isso o poder de um aparato militar incrível.

O melhor exemplo disso foi a cobertura televisiva da Guerra do Golfo Pérsico. Vendo aquelas imagens não sabíamos se se tratava de um documentário ou de um vídeo-game, ou ainda de um videoclipe. Não apareciam mortos nem feridos, não se viam pessoas, somente máquinas. Ademais, nos diziam que os alvos eram seletivos: só era destruído aquilo que era determinado pela estratégia do comando militar. E os telespectadores ficavam se sentindo impotentes diante daquelas imagens. Como disse o teólogo J. Comblin, foi o maior espetáculo satânico que pudemos ver em todos os tempos, e milhões de pessoas por todo o mundo viram por meio dos satélites.

Ao mesmo tempo que eram mostrados os bombardeios noturnos ao modo de vídeo-game, eram apresentadas cidades tranquilas com pessoas caminhando, fazendo compras, e com o tráfego urbano normal. Isto foi chamado de informação! Porém os telespectadores estavam possuídos pelo temor que lhes estava sendo repassado de forma subliminar. Afinal, algum país do Terceiro Mundo poderia pensar em enfrentar semelhante aparato bélico? O sistema se nos apre¬senta como um deus, nada mais, nada menos. Em outras palavras e recorrendo à linguagem bíblica, como um ídolo.

Um componente fundamental da ideologia sistémica é a eliminação das funções clássicas do Estado. A função moderadora de árbitro, de assegurar que as diferenças sociais não sejam tão profundas, em suma, a vocação e a razão de ser do Estado liberal estão condenadas. Com efeito, a palavra de ordem passa a ser: privatização. À medida que o Estado vai perdendo suas funções e sua legitimidade, vai sendo gestado no conjunto da população um sentimento de orfandade civil. Milhões de pessoas, sobretudo os desfavorecidos, depositam sua confiança no Estado no tocante à saúde, à previdência e a uma série de outras garantias e direitos. Quando se dão conta de que o Estado não mais irá cumprir essas funções e pode repassá-las para mãos particulares, instaura-se uma profunda insegurança em relação ao futuro.

Para compensar essa gradual eliminação da função estatal de prover de segurança a coletividade, de prestar serviços essenciais ou ainda de garantir direitos fundamentais, ou seja, para compensar a orfandade civil, incrementa-se um determinado tipo de religiosidade. A insegurança das pessoas é aplacada ou minimizada por intermédio de uma religiosidade mágica e utilitarista. A segurança perdida no plano objetivo é deslocada para o plano subjetivo, para a dimensão simbólica.

Muito embora tenha dispensado a legitimação religiosa, interessam ao sistema aquelas propostas religiosas que oferecem essa compensação substitutiva. Ao mesmo tempo, o sistema contribui para a desqualificação das religiões tradicionais que reivindicam relevância histórica, ou seja, consideram a participação social crítica como parte integrante de sua missão.

Disso decorre o êxito das propostas religiosas que se dedicam a uma ampla e intensa oferta de bens simbólicos. Essas são as religiões ou formas religiosas que merecem a bênção do deus-mercado, porquanto não irão criar problemas. Não têm perspectiva histórica, não têm perspectiva de intervenção social, não têm perspectiva de conduta profética. Mesmo quando repelem o sistema, no plano discursivo e doutrinário, são instrumentos dóceis nas mãos dele.

Um exemplo claro encontramos no âmbito da questão da preservação ambiental. Não devemos nos esquecer de que aos países ricos interessam os recursos naturais que se encontram nos países pobres, conquanto não lhes interessem as pessoas. Existe uma necessidade econômica inelutável de que os recursos naturais sejam preservados. Porém a razão instrumental desencantou a natureza, e para que haja uma inclinação preservacionista coletiva tornou-se imprescindível reencantá-la. Descobriu-se que o meio mais simples de fazê-lo é por meio da magia. Por isso, com o beneplácito do sistema, assistimos ao retorno dos espíritos da floresta, duendes, gnomos, fadas e congêneres. Trata-se de uma religiosidade que vai diretamente ao encontro da ampla estratégia sistêmica no que diz respeito à preservação de recursos naturais fisicamente situados no Terceiro Mundo.

Vale advertir que não sou contrário à inclinação preservacionista, até pelo contrário. Apenas estou ressaltando a ambiguidade desse processo de reencantamento da natureza, com referência à estratégia sistêmica, bem como o papel da religiosidade no quadro atual. Tudo isso nos ajuda a interpretar tanto o crescimento numérico de determinadas propostas religiosas sectárias quanto a expansão de uma verdadeira cultura mágica que está obtendo adeptos em todas as camadas sociais, sem contar o total apoio da mídia.

Como vimos, a lógica sistémica não só dissemina a inexistência de alternativas ao capitalismo de mercado, como rechaça a solidariedade com os excluídos. Segundo essa lógica, a solidariedade seria um obstáculo. Para justificar este princípio, o pensamento de séculos anteriores é retomado, p. ex., aquele que alegava serem vícios privados, virtudes públicas. Este adágio significa que quanto mais as pessoas defenderem apenas os seus próprios interesses, egoisticamente, melhor funcionará o mercado. Os problemas econômicos e as desigualdades sociais, por seu turno, seriam solucionados não por meio da solidariedade consciente de alguns, mas sim por meio da mão invisível (Adam Smith) do próprio mercado. Que ente de natureza religiosa seria este, capaz de solucionar as desigualdades sociais sem o concurso das pessoas?

Da Organização Popular

Observando a economia informal em nosso país, vemos que, para defender esse espaço de sobrevivência que encontraram, os empobrecidos criam códigos e novas formas de convivência societária e comunitária. Quando Fernando Collor confiscou a poupança nos bancos, alguns vaticinavam, com desespero, que o país iria parar. Não parou, porque quase 50% da economia é submersa. O confisco alterou a vida dos brasileiros pertencentes ao Brasil legal.

Essas formas de organização não-oficiais que recobrem a produção e a socialização de bens e serviços produzem também uma cultura, a daqueles que são duplamente excluídos, quer pelo sistema, quer no interior de suas respectivas sociedades. Um dos traços principais dessa cultura é a valorização do onírico, do simbólico, do mítico e da festa. Os pobres são sempre os que mais festejam e os que demonstram maior propensão a produzir alegria e beleza para si mesmos e para os demais (e. g., o carnaval).

Nessa cultura dos excluídos podem ser percebidos vestígios do passado e fragmentos reinterpretados da ideologia dominante. Trata-se de uma mescla bastante complexa. Um limite notório dessa cultura é não produzir um projeto global de sociedade, se é que deve fazê-lo.

De qualquer maneira, um postulado das esquerdas clássicas na América Latina rezava que nossas sociedades eram compostas por massas desorganizadas. Nossos povos não foram nem são desorganizados. O que ocorre é que as formas populares de organização estão repletas dessa cultura mesclada, muitas vezes ambígua e contraditória, que não se enquadra na rigidez ideológica que as esquerdas sempre exigiram. Desse modo, as esquerdas clássicas privilegiaram alguns movimentos sociais e populares, deixando para o futuro, para a nova sociedade, a solução dos problemas das maiorias desorganizadas.

Se queremos levar a sério a questão dos excluídos, em primeiro lugar é preciso reconhecer a pluralidade das formas de organização no âmbito das classes subalternas, e reconhecer também que a cultura ali plasmada exige melhor interpretação.

Registramos essas advertências para assinalar a necessidade urgente de um salto qualitativo na chamada opção pelos pobres, o grande lema da práxis cristã libertária nos últimos 20 anos. Nos anos de 1960 optar pelos pobres significava participar dum movimento ascendente. Os pobres, por meio dos seus movimentos, estariam preparando-se para ocupar o poder. Optar pelos pobres significava optar pelas classes emergentes, e isto conferia até mesmo certo prestígio aos optantes, no caso, as igrejas.

Hoje, optar pelos pobres como valor teológico é realmente um ato de fé, de absoluta gratuidade. Não há nenhuma compensação, não confere nenhum prestígio nem conduz a lugar algum no plano do poder. Pode ser comparado à conduta do profeta Jeremias. Preso pelo rei, a cidade sitiada, e ele transmite sua profecia com um ato de fé: compra um terreno e manda guardar a escritura num vaso resistente porquanto no futuro, ali haveria vida. Optar pelos pobres nos dias atuais significa apostar no futuro de Deus, na utopia escatológica, porque não existe nenhuma evidência de que os excluídos do sistema irão melhorar de condição em curto ou médio prazo.

Dos Desafios

O mais grave de tudo é que o sistema está conseguindo fazer com que os empobrecidos se sintam culpados pela sua condição e introjetem a imagem de criaturas subumanas. O sistema pretende erradicar a própria sensação de dignidade humana nos excluídos, a ponto de eles mesmos se considerarem supérfluos. Está em curso uma guerra psicológica. E com isso o campo de batalha por excelência é o da luta ideológica, aquela que se efetua, em primeira instância, na esfera do simbólico.

Por conseguinte, não se trata apenas de conclamar para a ajuda mútua. Trata-se de apelar no sentido de um refazimento da noção de dignidade humana, radicalmente renegada. O embale no plano simbólico contra as ideologias justificadoras da dominação e da exclusão deve ser incessante. A linguagem publicitária acabou por impregnar todos os discursos, sem excluir o político, o científico c o religioso. O primeiro passo nessa batalha é desmascarar e desvelar os valores religiosos (idolátricos) camuflados no discurso econômico. A crítica teológica da economia política tem contemplado esse aspecto com grande competência.

Peço licença para concluir com uma citação de Hugo Assmann:

Temos que saber reunir, numa só reflexão, pelo menos três elementos. Primeiro, a fome e o pisoteamento da dignidade humana de incontáveis multidões não são algo circunstancial, mas derivam de uma incrível engrenagem erigida em nome da racionalidade moderna e que, por estar messianizada como única e necessária saída, se subjetiva como indiferença vastamente assimilada no comportamento dos privilegiados. (...) Segundo, é preciso despedir-se de ilusões acerca de propensões solidárias, supostamente espontâneas e naturais, dos seres humanos. A solidariedade não é um impulso psíquico primário. (...) Isto obriga a teologia a refletir, não apenas sobre a conversão enquanto pré-condição da solidariedade, que não é fruto de espontaneísmos naturais, mas criar um novo conceito de conversão, enquanto integração em processos criadores de solidariedade efetiva, e não mero processo individual. Terceiro, não faz sentido (especialmente após o colapso do socialismo real) imaginar realizações de solidariedade mediante a mera atenção a necessidades elementares, sem tomar em conta o mundo dos desejos; nem faz sentido imaginar — em sociedades amplas e complexas (embora talvez sim em ajuntamentos hierarquizados e gregários) — a efetivação da solidariedade sob a égide de rígidos planos e comandos centrais. Dito de outra forma: é inadmissível pretender desconectar a solidariedade do exercício da cidadania. (Hugo Assmann, A Crise da Teologia da Libertação, Notas — Jornal de Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, (2):2-9, 1994.)

Bibliografia Indicada

HINKELAMMERT, Franz J. Crítica da Razão Utópica. São Paulo, Paulinas, 1988.
—. As Armas Ideológicas da Morte. São Paulo, Paulinas, 1983.
— & ASSMANN, Hugo. A Idolatria do Mercado. Petrópolis, Vozes, 1989.
MO SUNG, Jung. A Idolatria do Capital e a Morte dos Pobres. São Paulo, Paulinas, 1992.
—. Deus numa Economia sem Coração. São Paulo, Paulinas, 1992.
—. Teologia e Economia. Petrópolis, Vozes, 1994.
SANTA ANA, Júlio de. O Amor e as Paixões. Aparecida do Norte, Santuário, s. d.
VV. AA. A Luta dos Deuses. São Paulo, Paulinas, 1982.


 


Autor(a): José Bittencourt Filho
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1995 / Volume: 21
Natureza do Texto: Artigo
ID: 14199
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