Marcos 7.1-8,14-15,21-23

Auxílio Homilético

17/09/2006

Prédica: Marcos 7.1-8,14-15,21-23
Leituras: Deuteronômio 4.1-2,6-8 e Efésios 6. 10-20
Autora: Elaine Gleci Neuenfeldt
Data Litúrgica: 15º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 17/09/2006
Proclamar Libertação - Volume: XXXI

1. Sobre o contexto do texto

O texto descreve costumes religiosos da época de Jesus. O tema da pureza/impureza é recorrente no Evangelho de Marcos. Já foi mencionado em 1.23-28, com a expulsão de um demônio impuro; em 1.40-45, trata-se da cura de um leproso; em 5.1-14, Jesus expulsa o demônio que se chama Legião de um homem que vivia nos sepulcros; e em 5.25-34, uma mulher impura por causa de sua hemorragia menstrual busca a cura ao tocar o manto de Jesus.

Nesse contexto, entram em discussão a pureza e a impureza em relação ao momento em torno da comida. Há um desdobramento da questão na manutenção ou perda das tradições, dos costumes que serviam para delimitar a identidade. Essa é a costura maior que o tema sugere. A questão é que os discípulos estão deixando de cumprir algumas tradições religiosas que serviam para delimitar a identidade do grupo. A insistência na preservação de limites para a pureza e impureza insere-se nesse contexto de delimitação de fronteiras e manutenção da identidade grupal.


2. Sobre purezas e impurezas

Segundo Mary Douglas, em reflexão sobre a questão do estabelecimento de leis que delimitam a pureza e impureza nas diferentes culturas, a sujeira, a contaminação é essencialmente uma questão de desordem. Não existem motivos higiênicos, estéticos, morais ou de saúde por trás da regulamentação de pureza e impureza. A definição de sujo, contaminado, impuro é cultural e relativa. Nesse sentido, a eliminação do que contamina é um ato de ordenar, de arrumar e classificar os elementos. Não é um ato irracional, mas é “um movimento criativo, um esforço para relacionar forma e função, fazer da experiência uma unidade... rituais de pureza e impureza criam unidade na experiência”1 .

No contexto do texto de Marcos faz-se uma alusão às leis de pureza e impureza, que estão arroladas nos capítulos 11 a 15 do livro do Levítico no Antigo Testamento, onde a pureza cúltica é tematizada. Essa idéia de pureza cúltica significava estar em condições físicas e espirituais que possibilitassem o acesso ao sagrado. Quem busca Deus deve estar compatível com ele – “você deve ser santo assim como eu sou santo” (Lv 11.44; 19.2). Santidade e pureza são conceitos que se aproximam. Por outro lado, também não se pode presumir que a santidade e a impureza sejam pólos opostos. O sagrado aproxima-se da integridade, da inteireza. Não está preso ao absoluto, ao universal, mas à ordem, à não-confusão. “A santidade significa manter distintas as categorias de criação”...“Ser santo é ser total, ser uno; a santidade é unidade, integridade, perfeição do indivíduo e da espécie.”2

Nessa perspectiva, as “idéias sobre separar, purificar, demarcar e pu- nir transgressões têm como sua função principal impor sistematização numa experiência inerentemente desordenada”3 . Na concepção sacerdotal, o pré-requisito da pureza, essa manutenção da ordem ocorre no espaço sagrado do santuário, mas também na sociedade, na vida cotidiana. O estabelecimento de âmbitos para o que é considerado santo e/ou comum, o puro e o impuro definem a ordem.

É interessante observar que o corpo é o lugar de discussão e conflitos em torno das purezas e impurezas. É no corpo que “entram” ou “saem” líquidos ou outros elementos, como no caso do nosso texto os alimentos, que podem ser considerados impuros em uma determinada situação. Como matriz e produtor de símbolos, o corpo é elemento básico na forma de estruturar a sociedade. O que sai do corpo, seus fluidos, líquidos como sangue e sêmen, e os processos de comunicação do corpo com os outros corpos, como a alimentação, a sexualidade, a fala, a sua decoração, o que passa em seu interior, suas enfermidades são os instrumentos que caracterizam a chamada “construção do corpo”4 . Aqui é importante frisar a visão de integralidade e de completude que perpassa essa construção de corpo e de identidade. As dicotomias e antagonismos acostumados como oposições binárias e incompatíveis não cabem nessa concepção.

Nessa forma de entendimento, a pureza e impureza não estão relacionadas com a idéia de sujeira, nem com o conceito de estar imundo.

3. As mãos dos que comem

A preocupação dos que olham os outros comerem está no jeito que alguns comem e como estão as suas mãos. Não é o que comem ou se comem, mas como comem. Nesse momento, não é com quem comem, embora isso já tenha sido motivo de discórdia em outros lugares. Entra em cena uma delegação encarregada pela lei e ordem, pela reta e correta manutenção dos costumes e questiona a forma dos discípulos de tratarem suas mãos ao comer: esses não as lavam cuidadosamente antes de comer (vv. 2-3). Esse grupo que vem de Jerusalém é composto de escribas e fariseus (v. 1). A intenção é encontrar elementos que comprovam as transgressões, previamente entendidas, que o grupo de Jesus pratica. E, ao observar como esses comem, aqueles têm o “prato cheio” para acusar. Comem com as mãos impuras. Não as lavam como ordena a tradição. A intenção de controlar as práticas de Jesus e seu grupo é clara. Apegam-se a uma tradição higiênica, que é levada a um significado religioso, conseguindo com isso estabelecer os limites entre os que cumprem e não cumprem as tradições, discriminando quem não se enquadra nos modelos impostos.

O problema não está no estabelecimento e seguimento de regras e tradições. Essas são importantes e necessárias, pois geram um sentido de pertença e acolhimento ao grupo. O problema está na forma em que essas regras se cristalizam e fixam no seio das comunidades, perdendo assim o sentido de criar e fortalecer laços de comunhão e convívio, para tornar-se pesos a ser cumpridos. Ao se transformarem em regras inquestionáveis, que servem para excluir quem não as cumpre, os costumes perderam a sua vivacidade de reunir e congregar em grupo.

4. As atitudes dos que observam

O gênero literário de parte da perícope evidencia a situação de conflito. O texto constrói-se como uma disputa: os vv. 1-4 apresentam o conflito; no v. 5, há uma objeção do adversário; os vv. 6-8 apresentam uma resposta de Jesus em dois tempos: vv. 6-8 – refutação e vv. 9-13 – contra-ataque. A argumentação que é usada na estruturação do texto mostra também que o lugar, as pessoas destinatárias não são judeus daquele tempo. A lei de lavar as mãos é explicada detalhadamente, o que mostra que o grupo que está em interlocução com os discípulos e Jesus não conhece esses costumes e tradições. No texto paralelo de Mateus, por exemplo, essas explicações não são necessárias, por isso são omitidas (Mt 15.1-20).

As outras partes constituem outras abordagens: vv. 14-16 têm um pano de fundo apocalíptico. “Todo o trecho está enquadrado pelo apelo a escutar (vv. 14b, 16) e a palavra de Jesus tem o teor de um enigma formulado mediante a oposição interior/exterior, penetrar/sair (cf. 4.10-11,23,24).”5

Jesus propõe um deslocamento na forma de encarar a questão da pureza e impureza. O tema tem a ver com a questão da identidade e da delimitação das fronteiras, estabelecendo quem pertence ou não a um determinado grupo religioso. O problema está na forma como se fez rígida e fixa essa tradição. Pessoas pobres são atingidas pela rigidez no cumprimento dessas leis, pois não conseguem manter o padrão de seguimento. Com o não-cumprimento há medo e insegurança. Jesus joga a discussão para um nível ético. As transgressões que são nomeadas são todas do âmbito relacional: prostituição, roubo, assassinato, adultério, ambição. A reflexão que se aponta aqui é a tensão que geram a vivência do evangelho e a manutenção da cultura. A partir da prática de Jesus há algumas luzes que podem servir para apontar caminhos de atualização.

5. O diálogo – aquilo que sai da boca

O desafio que decorre desse texto insere-se no âmbito das relações, do seguimento das tradições, das possibilidades de abertura ou de fechamento que determinados costumes representam para a comunidade. Seguir man- tendo certas tradições sem refletir sobre o sentido que essas fazem para o grupo social na qual são acolhidas pode significar um peso ou até mesmo sentimentos de exclusão e de discriminação para quem não se enquadra ou não se adapta a essas tradições. Só com atitudes de coragem, que rompem com tradições sem sentido, é que a abertura para o novo, para outras ex- pressões culturais, para a convivência com outras etnias, com diferentes formas de construir a identidade, o gênero e a sexualidade, por exemplo, pode ter lugar e acolhida.

O texto do Evangelho de Marcos assinala para essa preocupação de construir comunidade em territórios estranhos. A convivência entre pessoas de diferentes expressões culturais é possível desde que haja respeito e diálogo. Para tornar efetivo esse diálogo entre evangelho e cultura, foi necessário um momento de confronto a partir de atitudes concretas dos discípulos e das pessoas que representavam os grupos tradicionais (fariseus e escribas).

Para acontecer o diálogo, é necessário, muitas vezes, o confronto, o conflito. Sem a verbalização de opiniões e a vontade de ouvir/escutar (vv. 14 e 16) não é possível construir novas perspectivas, provocando mudanças nas relações. O diálogo não deve ser reduzido a uma técnica ou a uma metodologia de trabalho. É para formar sujeitos capazes de diálogo que nossa prática pastoral, comunitária, diaconal, em todas as suas abrangências, deve ser direcionada. Mudar tradições e costumes que congelaram a vida comunitária deve vir acompanhado de alguns ingredientes básicos: coragem de abordar o assunto e mudar atitudes – os discípulos e Jesus deixaram de lavar as mãos, efetivamente. Provocaram a discussão por meio de gestos concretos no seu cotidiano. Outra premissa é o convite para a conversa, para a explicitação de razões e opiniões. Só mudar sem refletir sobre o sentido das mudanças pode assumir a mesma carga de imposição e discriminação.

6. Pensando na prédica

Sugiro que se inicie o estudo do texto fazendo um levantamento dos usos e costumes das comunidades, com grupos de jovens, OASE e presbitério; perguntar pelo contexto histórico em que surgiram determinados costumes: A que interesses esses costumes defendiam/em? Quais as situações que esses costumes queriam corrigir ou introduzir como novidade na comunidade? Quais os argumentos que foram/são usados para a introdução ou a permanência de determinados costumes e tradições?

Apresentar as reflexões como introdução à prédica. Depois de refletir sobre os costumes locais, ler o texto da Bíblia: Mc 7.1-8, 14-15, 21-23, com as leituras previstas.

Para não ficar em reflexões sobre as leis de pureza e impureza do AT, como já sugere o comentário desse texto no PL XIX, de autoria de João Arthur Müller da Silva, há outras ênfases a ser desenvolvidas. Uma ênfase do texto é a questão de estar preso a tradições que restringem as posturas de mobilidade e a vivência de novidades no contexto da comunidade. Nessa temática, a postura pedagógica de Jesus pode servir de iluminação para a prática da comunidade. Ele convoca de novo a multidão e chama a uma postura de escuta (v. 15). A seguir, traz a discussão para um âmbito da convivência e das relações (vv. 21-23). A partir do diálogo – que é palavra e postura que sai da boca, do coração e do corpo das pessoas que convivem e partilham o mesmo sonho – podem ser traçadas novas formas de fazer memória e inaugurar tradições que são discutidas e postas em comum acordo na comunidade. Importante é trazer essa discussão para o nível mais concreto da vida comunitária. Jesus aponta situações em que as relações sofrem com a falta de compromissos éticos concretos (vv. 21-22). Como essas situações podem ser analisadas e avaliadas na comunidade? Como podem ser construídos valores para que novas relações possam ser experimentadas?

7. Subsídios litúrgicos

Envio:

Deus, tira-nos da morte para a vida,
Da incredulidade à certeza da fé em ti. Transforma a nossa dúvida em esperança,
Concede-nos tua reconciliação em meio às nossas confrontações. Dá-nos o conhecimento e a aprendizagem mútua,
Que aquilo que nos separa nos possa unir, Que as diferenças possam nos enriquecer, Que o estranho nos dê novas perspectivas,
Concede-nos a possibilidade de orar e trabalhar juntos e juntas. Rir e chorar,
Dar e receber,
Concede-nos a possibilidade de sonhar juntos também.
Concede-nos construir com e através de nossas parcerias e grupos
Um mundo de paz e justiça,
Um mundo de reconciliação, paz e amor.

Bênção: Que Deus, que rodeia o mundo com seu amor, nos abençoe. Ide na paz de Deus.

(O envio e a bênção foram adaptadas de: Sinfonia Oecumenica. Comunión con las Iglesias del mundo. Hamburg/Basel: Evangelisches Missionswerk in Deutschland und Basler Mission, 1999, p. 341)

Notas:

1 Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 13.

2 Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 70. Em sua análise sobre as regras dietéticas.

3 Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 15.

4 Anthony SEGER, Roberto da MATTA e Eduardo Batalha Viveiros CASTRO, A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras, In: FILHO, João Pacheco de Oliveira. Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero, UFRJ, 1987, p. 20

5 Sebastião Armando Gameleira SOARES, Evangelho de Marcos. Vol.I: 1-8. Refazer a casa. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 282.
 


Autor(a): Elaine Neuenfeldt
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 15º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 8
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2005 / Volume: 31
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 23667
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