Tiago 2.1-5,8-10,14-18

08/10/2000

Prédica: Tiago 2.1-5,8-10,14-18
Leituras: Isaías 50.4-10 e Marcos 8.27-35
Autor: Ulrico Sperb
Data Litúrgica: 17° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 08/10/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Pentecostes


1. Como não deve ser

1.1. Ele não estava bêbado

Era o culto do Natal. A igreja naquela cidade grande estava lotada. Os sinos haviam tocado. O organista tocava o prelúdio. Os dois pastores estavam voltados para o altar e faziam sua oração silenciosa. Um era mais velho e o outro novato. Ambos se viraram para a comunidade reunida. Foi aí que viram aquele homem, humildemente vestido, andando pelo corredor à procura de um lugar. O pastor mais idoso sussurrou aos ouvidos do mais moço: Pega este cara pelo braço e leva ele lá pra cima! O iniciante obedeceu. Conduziu aquele homem pelo corredor em direção à escada que levava à parte de cima, onde estava o órgão. O homem olhou para o pastor e assoprou no seu rosto. Como este fez uma cara de surpresa, assoprou pela segunda vez. E o pastor entendeu: ele queria dizer que não estava bêbado. Lá em cima explicou, em voz baixa, que era do interior e que viera à capital à procura de emprego. Nesta noite de véspera do Natal não quisera perder o culto do Natal.
Arrependido, o pastor o convidou para compartilhar em sua casa a ceia do Natal.

1.2. Para os flagelados as sobras

Em 1983 houve uma grande enchente em Santa Catarina. Joinville, no entanto, não foi atingida. Por isso a nossa paróquia se tornou um centro receptor e distribuidor de mantimentos e agasalhos. Um grupo de mulheres passava o dia preparando ranchos para os flagelados. Recebemos muitos alimentos de São Paulo. Entre eles algumas latas de atum. Uma das mulheres me disse: Pastor, os flagelados não saberão valorizar este atum. Eu posso levar estas latas para casa? Hoje à tarde trarei umas latas de sardinha para substituí-las. Eu lhe respondi: A pessoa que doou estas latas de atum certamente pensou em dar uma alegria para alguns flagelados. Quem teve sua casa inundada saberá valorizar este atum. A mulher compreendeu e colocou o atum nos seus devidos ranchos.

1.3. Uma estatística intrigante

Uma pesquisa, realizada na década de 60 na Alemanha, revelou o seguinte: 56% das pessoas não gostariam de conviver numa casa com deficientes físicos. 70% sentiam nojo quando viam pessoas deficientes. 90% não sabiam como se comportar diante de pessoas deficientes. 63% achavam que deficientes físicos deveriam viver em instituições específicas.

2. Como deve ser

2.1. Um gesto fraterno

Na ajuda aos flagelados da enchente, mencionada acima, aconteceu um gesto de solidariedade especial. Uma jovem paraplégica passava o dia escrevendo mensagens bíblicas e de ânimo. Cada rancho recebia uma dessas mensagens.

2.2. Aqui você tem lugar

Numa pequena cidade do interior um jovem quis entrar para o coro da comunidade local. No primeiro ensaio, ao ser apresentado, explicou que estava com AIDS. A primeira reação foi de repulsa. Aí uma cantora do soprano disse: Escutem! O tema da nossa Igreja para este ano é: 'Aqui você tem lugar.' Então, turma, nós também temos um lugar para ele! E o jovem estava integrado no coro.

2.3. Um fato relevante

As Igrejas Evangélica e Católica juntas na Alemanha empregam mais de l milhão de pessoas, sendo que a maior parte está empregada em obras diaconal-sociais, voltadas à busca de vida digna para milhões de pessoas. No Brasil não temos dados, mas há muitas pessoas nas igrejas se dedicando em tempo integral, parcial ou voluntariamente ao bem-estar do próximo. A Comunidade Evangélica de Porto Alegre mantém várias creches, as quais atendem gratuitamente mais de 800 crianças por dia.

3. O que o autor não quis dizer

3.1. Uma polêmica evangélica

Em Proclamar Libertação, vol. III, Meinrad Piske chama Tiago de epís¬tola problemática. Vale a pena ler a meditação que Piske escreveu. Ele conse¬gue sintetizar muito bem a polêmica que a Carta de Tiago gera nos meios evangélicos. Uma das máximas de Martim Lutero é: sola fide (somente pela fé somos justificados, independentemente das obras da lei — cf. Rm 3.28). Na época de Lutero a Igreja proclamava que as pessoas são salvas pela fé e pelas obras. Tiago diz expressamente: Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta (2.17). Tiago não quis basear a fé nas obras, mas acentuou a vivência da fé através da ação concreta.

Nestor Paulo Friedrich, em Proclamar Libertação, vol. XIII, em sua meditação muito boa, também fala sobre a abordagem polêmica que o autor de Tiago suscita. Ele diz: Tiago é um escrito inquietante, controvertido.... Mas continua: ...e fascinante por ser extremamente atual em nosso contexto brasileiro marcado pela exploração do povo trabalhador.

Martim Lutero disse: A fé é algo grandioso; isto os Salmos nos mostram muito bem. Eu sei que, se a minha fé se baseasse em minhas obras, ela seria mole como um casaco de couro que tivesse que ficar em pé pelas próprias mangas. Na palavra de Deus, porém, ela fica firme, por mais fraca que seja. Isto é certo e não falha.

A crítica de Tiago é contra uma fé separada da vida prática. A de Lutero é contra a prática de obras que visam comprar a benevolência divina.

4. O que o autor quis dizer

4.1. Uma perspectiva evangélica

Nestor Friedrich cita Wendland: Tiago é ainda hoje uma correção salutar a toda fé que degenerou em teoria, em puro saber de Deus. De fato, podemos transcrever Tg 2.17 da seguinte forma: Assim, também a fé, se não se manifes¬tar concretamente no convívio humano, por si só é morta. A teóloga Dorothee Sölle disse certa vez: Um Jesus que não nos transforma e não torna nossas consciências mais sensíveis, esse é um Jesus morto.

H. Rendtorff escreveu em 1953 sobre a nossa perícope: A fé sem obras não é uma fé verdadeira. A fé sem obediência não é um verdadeiro reconhecimento do Senhor (vide o Evangelho para este Domingo). Quem quiser separar fé e obras tira a vida da fé, e fica só com uma fé morta. Fé e obras são inseparáveis.

Com dois exemplos de atitudes incorretas e incoerentes para a comunidade cristã, Tiago mostra como não devemos conviver na Igreja e lambem na sociedade em geral:

4.1.1. Não privilegiar quem já tem privilégios

Os vv. 1-4 falam do tratamento diferenciado entre pessoas ricas e pobres. A prosopolempsia significa privilegiar pessoas devido à sua riqueza, posição social ou influência. Os comentaristas dizem que Tiago não está se referindo a um caso específico que tenha ocorrido nalguma comunidade, mas cria um exem-plo para elucidar o que é uma das máximas cristãs: o amor ao próximo sem fazer distinção entre as pessoas, principalmente no que tange àquelas que já têm seus privilégios sociais.

Mesmo que Tiago não esteja se referindo a um caso concreto, o fato é que a comunidade cristã não consegue evitar o tratamento diferenciado com relação às pessoas importantes na sociedade.

O v. 5 nos diz que os cristãos devem privilegiar, isto sim, os pobres. É a opção preferencial pelos pobres (Pv 19.17; 2 Co 9.9).

4.7.2. Não rebaixar quem já está em baixo

Os vv. 14-17 criam outro exemplo que nos parece exagerado: consolar o faminto que está com frio apenas com palavras. Será mesmo exagero? Escrevo esta meditação durante a guerra na Jugoslávia. Um avião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) bombardeou por engano um comboio de refugiados kosovares — aqueles que a OTAN diz defender —, matando cerca de 70 pessoas. A OTAN é composta essencialmente por países cristãos. Ao lerem estas linhas, vocês talvez já saibam do desfecho que esta guerra teve. O coman¬dante da OTAN disse com relação a este engano: Numa guerra podem acontecer enganos. Na defesa da vida de muitos, às vezes alguns poucos têm que morrer. Talvez no próximo domingo, para o qual vocês estão preparando o culto, aquele comandante da OTAN e o piloto que por engano matou 70 pessoas estejam num culto cristão em sua pátria.

O v. 18 é uma das passagens mais difíceis do Novo Testamento (Martin Dibelius). Mesmo assim, podemos dizer que o desafio do Tiago não se direciona à justificação pelas obras. Paulo também não preconiza tal justificação em Rm 2.13, quando diz: Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Tanto Paulo como Tiago reagem contra a fé dos hipócritas, ou, como diria Jesus, contra a fé dos fariseus (Mt 16.5-12). É aquela fé auto-suficiente, propalada da boca para fora, mas divorciada da ação concreta.

4.2. A radicalidade do amor ao próximo

Vv. 8-10: Fazer acepção de pessoas é uma negação do mandamento do amor (Lv 19.18). Na prática do amor ao próximo se comprova a obediência à lei mosaica (para os judeus), ou melhor, o discipulado de Cristo (para os cristãos).

Este amor ao próximo deve ser:

4.2.1. Imparcial

Diante de Deus não há distinção de pessoas. Todas as pessoas merecem nosso amor cristão. Não precisamos ter preconceitos. Como cristãos estamos livres para dedicarmos nosso amor a todas as pessoas.

4.2.2. Partidário

Quando, porém, temos que optar a quem dedicaremos nosso amor cristão, então nossa opção sempre recairá sobre a pessoa mais necessitada. Somos chamados a tomarmos o partido dos pequeninos irmãos de Cristo (Mt 25.31-46). O coração de Deus bate pelos pobres.

4.2.3. Global

Nosso amor ao próximo não se esgota na dedicação a uma ou outra pessoa. Participamos da Igreja, do corpo de Cristo. Por isso nossa visão ultrapassa nossos próprios limites e perpassa a sociedade e o mundo em que vivemos. Há causas maiores, em favor dos menores, que merecem nossa atenção. O mandamento de Deus vale de maneira total e global.

5. O culto

5.1. A liturgia

5.1.1. As orações

Confissão dos pecados: Deus, que nos amas como um querido Pai e que cuidas de nós como uma carinhosa Mãe, como crianças malcriadas estamos diante de ti, para implorarmos o teu perdão. Hoje, de uma maneira especial. Confessamos que, durante a semana que passou, em diversos momentos deixamos de agir quando era necessário. Pedimos-te perdão por não deixarmos que a fé que tu nos dás nos impulsione a realizarmos gestos fraternos de amor ao próximo. Perdoa nos pelo bem que deixamos de fazer e pelo mal que cometemos. Por Jesus Cristo, tem piedade de nós, Senhor.

Oração de roleta: Querido Deus, nosso Pai amado em Jesus Cristo! Dá-nos agora e sempre o teu Espírito Santo, para que a tua palavra nos atinja e nos leve à ação. Que as leituras bíblicas de hoje tenham consequências práticas para nossas vidas. Que tenhamos uma mente aberta para nos dedicarmos ao próximo. Que tenhamos um coração disposto a aceitar as outras pessoas. Que nossos ouvidos estejam atentos para escutar os outros. Que nossos olhos estejam vigilantes para ver as necessidades ao nosso redor. Que nossos lábios se abram para consolar. Que nossas mãos produzam gestos fraternos. Que nossos pés nos guiem em direção a nosso semelhante. Deus Pai, Filho e Espírito Santo, rendemos-te glórias, porque sempre és nosso único Deus. Amém.

Oração comunitária: [Para a oração comunitária sugiro dois procedimentos: a) antes do culto, solicitar a três pessoas que preparem orações breves com motivos de gratidão e três com motivos de preocupação, encerrar com a introdução do Pai-Nosso; b) pedir que sejam mencionados alguns motivos de gratidão e de preocupação, anotar os assuntos e incluí-los na oração comunitária.]

5.7.2. As leituras bíblicas

Isaías 50.4-10 — A proposta da leitura do Antigo Testamento é de paz, de resistência sem violência.

Marcos 8.27-35 — Pedro é o discípulo que confessa que Jesus é o Messias. Ao mesmo tempo, porém, tem ideias diabólicas, quando se trata de fugir das consequências de sua fé. É como diz a teóloga Elisabeth Kübler Ross: Dentro de cada ser humano existe potencialmente um Hitler e uma Madre Teresa de Calcutá.''

5.2. Um sermão profético

5.2.1. O que evitar

Vejo dois riscos que podem ser evitados: a) cuidar para não entrar e ficar na discussão sobre a polêmica da justificação só por fé ou por fé e obras; b) cuidar para não tripudiar em cima da fé dos outros — estamos todos juntos no mesmo barco que é a Igreja do Senhor. Nas duas vezes que preguei sobre esta perícope, ao preparar a meditação, evitei o uso de uma linguagem legalista e me esforcei para empregar uma linguagem evangélica.

5.2.2. A denúncia

Apesar de termos o grande prazer de vivermos este ano 2000 da graça do Senhor, constatamos que ainda permanecem muitas coisas que existiam antes de Cristo e que envergonham a humanidade. Tiago denuncia uma fé dissociada do convívio. Do muito a ser denunciado, escolhi o fracasso dos governantes no Brasil diante da corrupção, da ineficiência e da letargia que geram doença, miséria e morte.

5.2.3. O anúncio

Pela graça de Deus nos é dada a possibilidade de melhorarmos o mundo ao nosso redor, com atitudes individuais e com engajamento comunitário. Tiago anuncia uma fé que se reflete no amor ao próximo. Como sinais visíveis da fé que se concretiza na ação procurei valorizar as muitas obras diaconais em nossas comunidades e igrejas.

Bibliografia

FRIEDRICH, Nestor P. Meditação sobre Tg 2.1-13. In: MALSCHITZKY, Harald, WEGNER, Uwc (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1987. vol. XIII, p. 262-66.
PISKE, Meinrad. Meditação sobre Tg 2.14-24. In: KAICK, Baldur van (Coord.). Proclamar Liber¬tação. São Leopoldo : Sinodal, 1978. vol. III, p. 169-80.
VOIGT, Gottfried. Meditação sobre Tg 2.1-13. In: ID. Homiletische Auslegung der Predigttexte : Die himmlische Berufung : 4. Reihe. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1981. p. 382-88.
—. Meditação sobre Tg 2.14-24. In: ID. Homiletische Auslegung der Predigttexte : Die neue Kreatur : 6. Reihe. 3. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1977. p. 251-56.

Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Ulrico Sperb
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 17º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Tiago / Capitulo: 2 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 5
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999 / Volume: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 12831
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