Trabalho com agricultores sem terra acampados em Amambai, dando ênfase ao papel da Bíblia

01/12/1988

TRABALHO COM AGRICULTORES SEM TERRA ACAMPADOS EM AMAMBAI, DANDO ÊNFASE AO PAPEL DA BÍBLIA.

Nilton Giese

l — A realidade sul-matogrossense

O Estado de Mato Grosso do Sul é caracterizado pelo latifúndio, pelos grandes projetos de reflorestamento, pelas usinas de álcool, barragens, lavouras mecanizadas e pela pecuária extensiva. Ali não existem indústrias. O que existe são alguns frigoríficos e pequenas empresas, ligadas ao tratamento de madeira (serraria, marcenaria). Desta fornia, tudo ali gira em torno da terra. E quando se fala em terra, antes de mais nada, é preciso conhecer o chão sobre o qual se tem os pés. Por isso, apresentaremos alguns dados que nos ajudarão a colocar os nossos pés no chão da realidade sul-matogrosense.

O desenho no mapa do MS retrata bem o que ali se vive. As terras são usadas para a criação de gado e para a monocultura de produtos de exportação, principalmente da soja. Com isso, os pequenos agricul¬tores, os sem-terra e os índios acabam sendo expulsos para fora do Estado, aumentando cada vez mais a concentração de terra dos grandes lavoureiros e fazendeiros.

No início dos anos 70, proprietários do Sul, atraídos pelos baixos preços das terras e pelos incentivos do Governo, adquiriram grandes áreas e instituíram a monocultura da soja. Começaram as grandes lavouras, de 1.000 até 50 mil ha. Essas lavouras necessitavam de maquinário, e assim, além de conquistar o novo título de celeiro do país, o MS também crescia em número de trabalhadores rurais desempregados. Estes inchavam as periferias das cidades com o pensamento de fazer um dinheirinho e ir para o Norte. Aliás, esse também era o pensamento de muitos pequenos agricultores que vinham do Sul do país. O MS era apenas um ponto de parada na migração que objetivava o Norte.

Veja imagem anexa - 01

Por isso, a rotatividade do pessoal é intensa. Sempre tem gente chegando e gente saindo. Também nas comunidades evangélicas.

A terra no MS é, em sua grande parte, arenosa-mista, uma mistura de areia com terra. Para produzir necessita primeiro de uma correção. Para tanto, o calcário é um produto fundamental e, muitas vezes, tornam-se necessários outros produtos como o fosfato, por exemplo. O Governo Federal, através do INCRA, tem feito assentamentos de colonos provenientes do Paraná, desapropriados pela Itaipu, em áreas assim. O caso mais conhecido foi o Assentamento Sucuriú, no município de Paranaíba (MS). A terra era completamente improdutiva e, além disso, a única possibilidade de água ficava a 6 km do assentamento. A saída de muitos assentados foi abandonar a área para não morrerem de fome.

II — Distribuição e utilização da terra

Os dois gráficos, abaixo, permitem-nos ter uma visão geral
da questão fundiária:

Veka imagem anexa - 02

 0,4% das terras do estado ê composta de minifúndios de até 20 ha.
2% das terras do estado ê composta de propriedades de até 100 ha.
14,4% das terras de 100 a 1.000 ha.
83,2% das terras do estado composta de latifúndios de mais de 1.000 ha.

DISTRIBUIÇÃO DA TERRA

65,9% - Pastagens
20,6% — Terra improdutiva
5,8% — Lavoura
1,6% — Re flor estamento
0,5% — Usinas de álcool

UTILIZAÇÃO DA TERRA

As grandes propriedades não se justificam nem pela utilização da terra, nem pela utilização da mão-de-obra. A pequena propriedade é, em média, 300% mais produtiva do que a grande, sendo que a produção de hectare na pequena propriedade equivale a de 4 hectares da grande propriedade. A maioria dos empregos é gerada pela pequena propriedade, que precisa utilizar o pessoal na capina da lavoura e, em alguns casos, também na colheita, como é o caso da mamona, do algodão, da mandioca e da catação do milho. As grandes propriedades só contratam mão-de-obra quando precisam reparar cercas, destocar pequenas áreas, consertar mangueiras de gado, etc. Essa mão de obra disponível provém do exército de 20 mil famílias sem-terra e dos 6 mil índios existentes no MS.

Ill — A luta dos sem-terra

A luta dos sem-terra no MS surgiu de dois lados: do interno e do externo. A nível interno através da organização de sindicatos autênticos que começaram a discutir as leis e os direitos dos trabalha-dores rurais. Essas reflexões foram, aos poucos, criando uma consciência de classe. Os sem-terra passaram a acreditar que seus direitos só seriam respeitados a partir de sua união e organização. Isso levou à fundação de muitos sindicatos de trabalhadores rurais, fato inédito em muitos municípios. Além disso, os sem-terra do MS assistiram à experiência de luta acontecida em Ivinhema (MS), na Fazenda Santa Idalina, onde em abril de 1984 uma mobilização estadual de sem-terra ocupou a referida área. Foram despejados e assentados de forma provisória numa área vizinha. O caráter provisório permanece até hoje. No entanto, a ocupação de Santa Idalina permanece sendo um símbolo de luta. Ali se revelou que o Governo de forma alguma está pensando em fazer a Reforma Agrária e que os trabalhadores sem-terra precisam de uma união e organização muito forte para lutarem pela terra.

Do lado externo, uma outra mobilização muito importante de sem-terra colaborou na organização dos sem-terra do MS. Trata-se dos brasiguaios, Brasiguaios são os brasileiros que vivem no Paraguai. Estes, após bngas peregrinações através do Brasil à procura de terra, foram tentar a vida no Paraguai, atraídos pela boa qualidade das terras e pelos incentivos do Governo de lá. Calcula-se que residam no Paraguai cerca de 400 mil famílias de agricultores brasileiros.

A migração para o Paraguai é bastante recente. Começa nos inícios dos anos 70, com maior incidência entre os anos 75 e 79. Uma pesquisa de amostragem realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra revelou que, das 303 famílias residentes em Alto Paraná, 72% haviam nascido no Sul do Brasil, 22% no Sudoeste e 6% no Nordeste. Perguntados pelo local de moradia anterior, verificou-se que todas as famílias entrevistadas residiam no Estado do Paraná. Além disso, constatou-se também que muitos nascidos no Paraná são descendentes de migrantes de outros Estados brasileiros. Isso significa que os brasiguaios não apenas saíram do Paraná para o Paraguai, mas que já percorreram várias etapas migratórias, sempre correndo atrás do sonho de conseguir um pedaço de terra própria para trabalhar.

Uma vez vivendo no Paraguai, esses migrantes estão também sujeitos à situação política daquele país. Ali se sustenta uma ditadura de 34 anos, e notícias de violação dos direitos humanos não são nenhuma novidade. No entanto, é preciso destacar que a situação política também tem uma variação interna, de Departamiento para Departamiento. Os Departamientos são, mais ou menos, comparáveis aos nossos Estados. Existem Departamientos onde se formaram verdadeiras colónias brasileiras e inclusive alemãs. Esse é o caso de localidades vizinhas do Estado do Paraná. Contudo, na divisa com o Mato Grosso do Sul, o despotismo, principalmente no Departamiento del Amambay, é bem mais agressivo. Vejamos alguns exemplos que fizeram com que os brasiguaios desta região tivessem que sair do Paraguai. Os casos a seguir constam no dossiê entregue ao então Ministro da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro. Esse dossiê apresenta 31 casos comprovados de violência contra colonos brasileiros, ocorridos em 1986.

José de Freitas, 27 anos, casado, dois filhos, natural de Xavantes (SP), morador em Corpus Christi, foi preso por três dias, apanhou com cabo de aço e foi obrigado a colocar a mão em cima de uma barra de ferro para que a polícia martelasse seus dedos.

Antônio Bento Alves, 53 anos, casado, natural de Peixe Branco (MG), residia em Mbaracayú. Foi preso e espancado durante oito dias, porque uma vaca sua escapou e invadiu a roça de um paraguaio.
Daniel Pereira dos Santos, 24 anos, viúvo, uma filha, teve sua esposa estuprada e violentamente assassinada.

Valmor Teófilo, 52 anos, casado, sete filhos, natural de São Joaquim (SC), foi obrigado a assinar a venda de sua terra. Ele conta que há três anos começaram a pressioná-lo para refazer a documentação de sua propriedade. Desconfiado, não cedia e perguntava pelos motivos desta mudança de documentos. Não obteve justificação convincente. Por fim, foi forçado a assinar o recibo de venda da terra. Não recebeu nenhum dinheiro e precisou fugir porque tinha sido ameaçado de morte.

Na Fazenda Primavera, de 7.500 hectares, de propriedade de um brasileiro, o Juiz Francisco Sarube e o Comissário Duarte, de Puerto Nova Adélia, despejaram, no fim de 85, as seguintes famílias, sem que estas pudessem levar algo de seus pertences:

Alfredo Pedro da Silva, três filhos; Pedro Moreira, sete filhos; António Rodrigues Paiva, quatro filhos; Valdir Moreira de Lima; João Inácio Machado, dois filhos; Valdoziro de Oliveira, dois filhos; Marcílio de Oliveira, sete filhos, naturais de Iraí(RS); e ainda Ademar Chesse e Miguel de Jesus, naturais de Tenente Portela(RS).

O agravamento das condições de vida, aliado à acentuação do sofrimento e da perseguição sofrida pelos brasileiros daquela região do Paraguai, fez com que se iniciasse um processo de organização entre as famílias. De indivíduo para indivíduo, de família para família, surgiram grupos unidos e organizados que decidiram voltar para o Brasil e lutar em conjunto pela terra em seu país de origem.

A grande novidade proveniente da organização dessas famílias é que elas não voltaram para integrar os números da imensidão de 40 milhões de migrantes existentes no Brasil, mas voltaram para serem os atores políticos de sua própria história e de suas lutas. Contra essa organização relutaram e relutam autoridades paraguaias e brasileiras. Aquelas impedindo a saída de brasiguaios, e estas, impedindo a sua entrada no Brasil. Mas a necessidade e a decisão de sair do Paraguai foram mais fortes do que qualquer repressão policial. E a solução, aqui no Brasil, era acampar. E desde então temos visto que a única forma de o Governo Estadual do MS e o Federal se preocuparem com a Reforma Agrária é através da mobilização dos sem-terra. Petas brasiguaios formaram-se 4 acampamentos: Mundo Novo, com 940 famílias; Sete Quedas, com 147 famílias; Eldorado, com 650 famílias; e Amabai, com 48 famílias. Todos na área da Paróquia Evangélica de Amandai.

IV - O papel da Bíblia

O uso da Bíblia e sua contextualização nos movimentos populares não se deve à boa vontade da igreja ou à descoberta de alguns teólogos. Esse mérito há de se dar ao povo em processo de organização. Com uma nova maneira de ver, de analisar e de transformar a realidade, foi se editando também uma nova maneira de viver, de refletir, de proclamar e celebrar a fé. E, através da organização e reflexão bíblica nos movimentos populares específicos, tem ficado sempre mais evidente que a reflexão teológica, o discurso sobre a fé, só é verdadeiramente possível e contextuai a partir de um fundamento histórico bem concreto.

Na Bíblia, por exemplo, tem-se evidenciado que o povo de Deus começa a ser tal a partir de uma insurreição política, que culmina com um ato de libertação. Desta maneira, os pobres do Egito e sua libertação passaram a ser o elo e a chave de interpretação da história do povo de Israel. E o Êxodo também nos revela que Deus passa a ser reconhecido como vivo e verdadeiro porque ele livrou os escravos do Egito. Na caminhada em busca da terra que mana leite e mel, o povo de Israel vai surgindo a partir de um levante de aldeias camponesas contra a exploração dos reis e cidades. Inspirados pela rebeldia dos escravos do Egito, que se haviam libertado da escravidão e com os quais passaram a conviver, as aldeias camponesas se levantaram contra os reis e suas cidades em nome de Javé. Isso nos relatam os livros de Josué e Juízes. Nesse momento originário, o povo de Javé são as maiorias populares que se levantam contra os seus opressores. E a vertente pedagógica da tradição bíblica nos revela que Javé ensina o seu povo com atos específicos ao longo da caminhada. Deus ensina seu povo através de obras, de atos.

A partir dessa luta e caminhada em busca da libertação, as tradições, as celebrações, os ritos, os símbolos, a música e a poesia desse povo cumprem uma função profundamente dinamizadora, que é a materialização mítica da esperança a ser conquistada. Nesse processo, cada luta popular, por pequena que pareça, se for sustentada pela fé em Deus, materializava a conquista da esperança e colocava o horizonte da liberdade, da justiça e da possibilidade de vida digna, dentro dos limites do historicamente possível.

A tradição do Êxodo e a humanização de Deus em Jesus Cristo acentuam que o Deus bíblico é um Deus presente na história de seu povo. E que só é possível descobri-lo a partir da prática da justiça, que busca uma nova sociedade e um novo homem. As primeiras comuni¬dades cristãs passaram a dar testemunho público disso, relembrando os feitos e os discursos de Jesus, a morte e a ressurreição de Jesus. Pois foi sobre a objetividade de Jesus que se deu o testemunho público e se desenvolveu a fé cristã. Sem essa objetividade seria vã a pregação cristã. Portanto, foi na relação dialética entre anúncio da Palavra e gesto solidário que Jesus atraía multidões e revelava a presença de Deus junto àquele povo. A unidade entre fé e ação solidária, entre gesto e Palavra, entre Verbo feito carne se dá a nível de relação dialética em Jesus.

Essa articulação dialética também é própria dos movimentos populares de hoje. Mesmo que isso não apareça de forma explícita, o povo em luta não faz separações analíticas entre oração e ação, entre fé em Deus e vida cotidiana. São principalmente os agentes de pastoral que criam esses dualismos artificiais, saindo, muitas vezes, a proteger seus rebanhos, menosprezando o político e acentuando o religioso. Sentem uma necessidade quase doentia de precisar colocar a etiqueta religiosa em tudo o que fazem de forma destacada. Isso tem provocado o menosprezo pelo religioso em muitas analises científicas e conjugais da realidade das lutas populares. Esses erros têm atrasado em muito a luta por libertação.

V — O uso da Bíblia na realidade específica dos brasiguaios

Os acampamentos de brasiguaios tinham por característica seu grande número de pessoas. Por isso, o trabalho bíblico tinha de ser feito a partir de uma divisão interna no acampamento. Quando possível, aproveitávamos a organização interna já existente, como os grupos de saúde, de crianças, de jovens, de alimentação, de coordenação, de liturgia e as lideranças por grupos de 15-20 famílias.

O trabalho com grupos de mulheres foi o mais dinâmico.

As reflexões eram feitas durante dois dias por semana. Todo o trabalho tinha três passos fundamentais:

l. Articulação teológica das experiências de organização: Tratava-se de refletir em conjunto o processo de migração individual até a organização coletiva para o êxodo do Paraguai e a continuidade dessa organização no acampamento. Textos fundamentais nesse primeiro passo foram Êx 3.1-12; 14.1-14; Dt 6.20-23; Js 1.10-18. A experiência do Êxodo, onde um grupo de pessoas, que ainda não era povo, que não tinha nacionalidade definida, confessionalmente difusa, com culturas diferentes, com dialetos diferentes, com sua maneira de trabalhar e de morar diferentes, vivendo sob a opressão direta e a perseguição constante, essa experiência do Êxodo foi enriquecida em detalhes a partir da relação com a situação dos brasiguaios no Paraguai. O que ocorria era uma recontextualização do Êxodo. A contribuição fundamental da fé em Deus era de levar esse grupo heterogéneo de pessoas a buscarem soluções coletivas, a se definirem em torno de um único Deus (Êx 3.13s). Sem teologia não dá para viver, não dá para lutar. E a teologia do Êxodo energiza os valores mais humanos, tais como a liberdade, o amor, a criatividade, o trabalho, a esperança, a justiça, a nova terra, etc.

2. Sustentação e animação da luta coletiva no acampamento: Tratava-se de refletir a Bíblia como fruto da caminhada do povo, iluminada pela presença de Deus que ensina o seu povo. Nessa caminhada, com o passar do tempo, surgem diversas dificuldades. O processo de libertação não é tão rápido, pelo contrário, é muito lento. Nessa fase trabalhamos muito o culto. Não qualquer culto, mas o culto ligado à vida, às suas alegrias, aos seus problemas, seus fracassos, seus reveses. No culto o povo se reunia para ouvir a Palavra e fazer orações comunitárias de intercessão pelas dificuldades internas e da conquista da terra. Nesses cultos desenvolvia-se a expressão corporal (encenações bíblicas) e o reavivamento constante de sua própria história. Textos importantes foram: Êx 5.15-23; 14.10-13; 15.22-27; 16.1-4; 32.1-14.

3. Vida comunitária na terra a ser conquistada e o tipo de terra que pode ser aceita: No que se refere à vida comunitária, ressaltávamos os modos de produção presentes na Bíblia (tribal e tributário) e na história da humanidade. Destacávamos também a íntima relação entre a criatura humana e a terra. Por exemplo, o texto de Gn 2.7-9. A vida do adam (roceiro) se caracteriza pela adamah (roça, jardim). Foi do pó da roça que o ser humano foi criado, ou seja, o ser humano é, na verdade, uma adamah com o sopro da vida. Deus colocou o adam na adamah, porque é lá que os dois se relacionam e se completam ambientalmente. O ser humano é um ser terreno e é na terra que ele dá certo. O ser humano, no caso o roceiro sem terra, é uma criatura sem raízes. Diante disso, a Reforma Agrária, a luta por terra para quem nela trabalha, é uma exigência não apenas sócio-política, mas também teológica. Contudo, com o desenvolvimento da história, estruturas humanas tratavam de desenraizar o adam da adamah. Gn 47.13-26 é um exemplo disso. O Estado acumula a produção dos colonos e depois vende, explorando e se apropriando não só de seus bens, mas de suas próprias vidas e consciências. Tal Estado aparece como uma estrutura demoníaca que rouba tudo que o adam tem, até mesmo sua mão-de-obra. No entanto, o próprio adam ainda agradece e venera o Estado por sua compaixão e bondade.

Outros textos importantes na primeira parte dessa terceira fase são os textos da distribuição da terra: Js 13-21; confira também Nm 32. Após a conquista da terra de Canãa, possível com a união dos grupos marginalizados (camponeses endividados, camponeses escravizados e o grupo mosaico vindo do egito; Js 1.10-18; Jz 6.1-10; Jz 11), estabelecem-se novas normas para a ocupação dessas terras. Essas resumem-se em:

a) A terra liberta não conhece reis. A conquista da terra resulta da derrocada do feudalismo cananeu. Os israelitas liquidam esse sistema e constituem outro. Nele não há rei.

b) A cidade está integrada à terra liberta e sem reis. A cidade dos capítulos 13ss é bem outra da dos capítulos Iss. Nos capítulos Iss ela é vista como alvo a ser destruído (Js 8). Nos cap. 13ss ela está integrada à terra. Não há polémica entre cidade e campo nem domínio da cidade sobre o campo.

c) A grandeza política que substitui o reinado e que liberta a cidade de seu monopólio sobre o campo é a tribo. A organização política que regulamenta a terra e a cidade libertas é o tribalismo.

d) Na tribo não é uma eventual classe citadina e rica que impõe seus interesses sobre os que produzem no campo, mas são os anciãos dos clãs agrários que determinam os rumos da história.

e) O acesso à terra está garantido para a família. É repetido com verdadeira insistência que a terra foi distribuída por família. Isso aparece por mais de 40 vezes em Js 13-21. Entenda-se família aqui no sentido do clã, do convívio de 50-100 pessoas que trabalhavam em conjunto e coletivamente administravam o resultado de sua produção. Nesses termos não há propriedade privada familiar, mas o uso familiar e coletivo da terra. A terra passa a ser um bem de herança, portanto inegociável.

f) Terra liberta é terra dada. Não é terra comprada. A terra foi concedida através de sorteio.
Tudo isso não era sonho. Era prática. Em termos históricos, tal prática durou apenas 200 anos (1.200-1.000 a. C.). Contudo, fragmentariamente, continuou a existir em meio às estruturas do reinado subsequente. Um exemplo é l Rs 21. Além disso diversos profetas têm sua origem em meio a setores do campesinato, conscientes da época do tribalismo e resistentes à estrutura do reinado, por exemplo, Amos, Oséias, Sofonias e Miquéias.

Na segunda parte dessa terceira fase, a temática era a terra que mana leite e mel. Tratava-se de uma exposição geográfica da terra de Canaã. A abordagem desse aspecto se impôs como exigência do contexto e das concepções do grupo. No Oeste, Norte do Paraná e especificamente em Mato Grosso do Sul, circula a concepção de que terra boa é a terra plana que pode ser mecanizada, que não tem pedra. Procuramos mostrar, através de mapas e slides, que a terra de Canaã tinha uma geografia bastante acidentada, diversificada, segmentada por passagens bruscas entre as diferentes paisagens. Destacamos a questão climática subtropical, do verão seco e do inverno chuvoso. Que o sistema fluvial está relacionado às condições de chuva. A maioria dos rios, riachos, ribeirões, córregos não existem durante o ano todo. Nas serras e nas estepes os poços, oásis e cisternas eram vitais no verão para a sobrevivência de pessoas e animais. Essa é a terra que mana leite e mel (Êx 3.8; Dt 26.9). Portanto, leite e mel não quer expressar nenhum ambiente paradisíaco, mas tão-somente uma situação normal. O leite pressupõe ser possível a criação de animais, cabras especificamente. E o mel talvez nem se refira ao mel silvestre, mas ao melado, ao doce preparado com uvas, figos e outras frutas. Em resumo, a terra que mana leite e mel representa apenas um lugar onde é possível se obter a alimentação básica. Não é uma terra para se enriquecer, mas uma terra onde é possível sobreviver.

VI — Conclusões

Através da caminhada por essas três fases, ou por esses três momentos da reflexão e das exigências do contexto e da situação dos acampamentos, um fato deve ser destacado: A realidade de nossa gente sofrida e em processo de organização e luta em busca da transformação social está fazendo com que a Bíblia reapareça com seu brilho original, onde Deus se solidariza com os oprimidos e espoliados e os acompanha em sua libertação. Nesse processo a relação entre fé, Palavra e realidade apresenta-se numa relação tão dialética, dinâmica e íntima que nossa cabeça de teólogo, sempre procurando teorizar e teologizar, muitas vezes, não consegue compreender e acompanhar. É aí que o povo não nos permite ser apenas mensageiros, mas nos toma por aprendiz e nos ensina a vivenciar e a celebrar, com uma espiritualidade que brota do cotidiano, aquilo que nós, muitas vezes, conseguimos apenas balbuciar.

VII — Subsídios litúrgicos

1. Saudação: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém. Leitura de Êx 3.7-12

2. Confissão de pecados: Fazer uma fogueira e nela lançar objetos simbólicos como, p. ex., pedras, espinhos, pedaços de corrente, etc. ou cartazes com dizeres de: Fome, Exploração, Miséria, Desunião, Individualismo, etc. Ao lançar esses elementos na fogueira, fazer um pequeno comentário sobre seu significado para quem os lança.

3. Absolvição: Leitura de Ezequiel 37.1-14 e Mt 10.24-33.

4. Oração de Coleta: Perguntar pelos motivos internos, pelos quais se pede a ajuda de Deus. Após cada motivo, dizer, todos em conjunto:'Ouve o teu povo, Senhor!

5. Oração de intercessão: Dar graças a Deus pelas alegrias e pela perseverança na luta. A intercessão é importante porque ela sensibiliza o grupo diante das dificuldades de outros grupos ou pessoas comprometidas com a organização e a luta de libertação. Por fim, como forma de compromisso, cada um pode colocar um calçado debaixo da cruz, como sinal de renovação do comprometimento, expressando verbalmente seu compromisso.

IX - Bibliografia

- CORTEZ, C.et alii. A Travessia do Rio dos Pássaros. Ocupação da Gleba Santa Idalina em Ivinhema – MS. SEGRAC. Belo Horizonte, 1985.
- GUTIERREZ, G. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. Petrópolis, 1984.
- SCHWANTES, M. História de Israel (Local e Origens). Polígrafo. São Leopoldo, 1984.

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Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1988 / Volume: 14
Natureza do Texto: Artigo
ID: 17918
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