Êxodo 16.2-4,9-15

Auxílio Homilético

05/08/2012

Prédica: Êxodo 16.2-4, 9-15
Leituras: João 6.24-35 e Efésios 4.1-16
Autor: Carlos A. Dreher
Data Litúrgica: 10º. Domingo após Pentecostes 
Data da Pregação: 05/08/2012
Proclamar Libertação - Volume: XXXVI

 

1. Introdução

O capítulo 16 do livro de Êxodo já foi duas vezes tema de pregação em Proclamar Libertação. A primeira ocorreu no volume 14 (p. 283-289), a segunda, no volume 28 (p. 276-283). Nessas ocasiões, porém, os recortes propostos foram diferentes: no primeiro, tratava-se de Êxodo 16.2-3,11-18; no segundo, de Êxodo 16.1-5(6-11),12-21(22-30). Nessa última ocasião, Martin Volkmann propôs assumir o recorte Êxodo 18.1-3,11-21. Agora, temos Êxodo 16.2-4,9-15.

Chama a atenção o fato de que tais recortes são comuns na série de perícopes adotada e apresentam-se sempre de forma um tanto aleatória. É como se se pretendesse determinar o texto ideal para a pregação, que já se tem em mente. Seja como for, para fins de exegese e meditação, assumo o recorte proposto.

O tema de Êxodo 16 é retomado no evangelho do domingo: João 6.24-35. Após a multiplicação de pães e peixes (Jo 6.1-13), a multidão pretende proclamar Jesus como rei (v. 14). Jesus retira-se para a outra margem do lago. A multidão, no entanto, encontra-o. Nesse contexto, o tema da alimentação com o maná no deserto é retomado, primeiro pela multidão (v. 28-31), depois por Jesus (v. 32), que o relaciona com o verdadeiro “pão do céu”, que o Pai dá ao mundo: Jesus, o pão da vida (v. 35).

Mais difícil é encontrar uma relação com a segunda leitura prevista para este domingo: Efésios 4.1-16, na qual se faz um apelo à unidade do corpo de Cristo. Uma eventual, mas muito leve relação poderia ser encontrada no v. 10, ao referir-se “àquele que desceu”.

2. Exegese

Os versículos omitidos no recorte do texto de Êxodo 16.1-21 referem-se ao itinerário no deserto (v. 1), à recomendação de colher uma porção dobrada de maná no sexto dia (v. 5), à fala de Moisés e Arão ao povo (v. 6-8), basicamente repetida nos v. 9-10. Por último, no final, omite-se a referência à quantia de maná a ser colhida e à deterioração do acúmulo para o dia seguinte (v. 16-21).

Tomado como proposto, o recorte apresenta a seguinte estrutura:

v. 2-3: a murmuração da congregação devido à fome;

v. 4: a promessa de Deus a Moisés – “farei chover pão do céu”;

v. 9-10: a congregação se reúne, a glória de Deus se manifesta;

v. 11-12: a promessa de Deus ao povo: carne e pão;

v. 13-15: codornizes e maná – o pão que o Senhor vos dá por alimento.

V. 2-3 – O tema da murmuração é recorrente na tradição do deserto. Já antes, em Êxodo 15.24, o tema aparece. Retorna em 17.3, depois em Números 11.1ss; 14.1ss; 16.41ss; 20.1ss. A cada dificuldade – falta de água, falta de comida, ameaça de inimigos –, o povo murmura contra Moisés e deseja voltar ao Egito. Em nosso texto, a causa da murmuração é a fome. Teria sido melhor morrer no Egito ao lado das panelas de carne. Morrer de fome no deserto não faz sentido para os escravos libertos. O caminho da liberdade é penoso. Ela causa insegurança. E a segurança da escravidão com comida chega a ser vista como melhor.

Chama a atenção o fato de que o texto não fala em “povo”, mas em “congregação dos filhos de Israel” (v. 2). Sinônimo de qahal, a edá refere-se à reunião, à assembleia do povo de Deus. Em outras palavras, é a comunidade reunida.

V. 4 – É a essa congregação, a essa comunidade reunida, que Deus, por meio de Moisés, promete a solução da causa da murmuração. Deus novamente ouve o clamor e dispõe-se a atender o povo. Diz a Moisés que fará chover pão do céu, do qual o povo deverá colher diariamente a porção suficiente para o dia. A parte final do versículo – “para que eu ponha à prova se anda na minha lei ou não” – não faz sentido, a não ser que se considere já aqui a desobediência à ordem de recolher apenas o necessário para cada dia, expressa nos v. 19s, que já não fazem mais parte de nosso recorte. Sugiro omitir tais palavras.

O versículo não faz referência às codornizes, que serão assunto no v. 13. Subentendem-se sob a expressão “pão do céu” duas coisas: pão e carne; em suma, alimento.

V. 9-10 – A palavra dita a Moisés é agora transmitida a toda a congregação. Deus ouviu as murmurações da congregação. Essa agora é chamada a reunir-se diante de Moisés e Arão. Arão fala à congregação. Assume a função sacerdotal que lhe cabe. Enquanto o sacerdote fala, a glória de Deus aparece na nuvem em meio ao deserto. É como se a liturgia se fizesse: após a murmuração, o profeta Moisés anuncia a graça de que Deus ouviu o lamento. Agora o sacerdote Arão fala, e a glória de Deus se manifesta. A congregação vê e pode dizer: “Ele está no meio de nós”.

V. 11-12 – Deus, presente diante da congregação, agora fala a Moisés. Reafirma que ouviu as murmurações e diz a Moisés as palavras que esse deve transmitir à congregação. Então, é o profeta quem fala em lugar de Deus; Moisés é quem proclama a palavra de salvação: “Ao crepúsculo comereis carne, e, pela manhã, vos fartareis de pão, e sabereis que o Senhor é vosso Deus”. Agora, sim, o alimento é indicado sob duas espécies: carne e pão, codornizes e maná.

V. 13-15 – A Palavra acontece! Codornizes cobrem o acampamento pela tarde; pela manhã, quando o orvalho se evapora, eis o maná! Tais “milagres”, na verdade, são fenômenos naturais, comuns na região do Sinai até hoje.

As codornizes são aves que, por volta de setembro, ao voltarem de sua migração para a Europa, já cansadas pelo longo voo e impulsionadas pelo vento sobre o mar, pousam no deserto, semimortas de cansaço. Então fica bem fácil capturá-las.

O maná é o resultado do trabalho de pequenos insetos que sorvem a seiva de algumas tamareiras para alimentar suas larvas. Deixam o resto cair no chão, em forma de pequenas gotas endurecidas e com sabor de mel. Tais gotas ficam parecendo pequenas sementes espalhadas pelo solo. E são comestíveis. Esse fenômeno ocorre principalmente entre os meses de maio e junho na região. As pequenas gotas são conhecidas como man. Em nosso texto, o nome pretende ser derivado de uma pergunta em hebraico: man-hu, “que é isso?” (v. 15), querendo, certamente, afirmar que o povo não conhecia o fenômeno.

Portanto, o milagre não está em tais fenômenos. Está, sim, no fato de Deus haver providenciado, mais uma vez, o pão de cada dia para o seu povo, permitindo que sobreviva no deserto.

A forma de nosso recorte parece apontar claramente para o lugar do texto: estamos no culto. Como já apontava acima, o texto assume a forma de uma liturgia.

1 Em seu início está o clamor, a murmuração da congregação, que manifesta suas dores, suas angústias, sua fome, seu medo diante da liberdade.

2 Em seguida, Deus se manifesta a seu porta-voz, a seu profeta (Moisés). É curioso que Deus não se irrita com a murmuração. Não desvia rosto e ouvido dos queixumes da congregação. Deus ouve e dispõe-se a atender, a salvar o seu povo. Essa salvação se configura de maneira bem concreta: pão do céu, mas pão de fato.

3 A graça é anunciada pelo profeta à congregação. Deus ouviu sua murmuração. Por isso a congregação é chamada a reunir-se para ouvir a palavra de Deus.

4 O sacerdote (Arão) fala à congregação. Em sua fala, Deus se faz presente em meio à congregação. Sua glória manifesta-se sobre a nuvem, em meio ao deserto. A congregação vê, experimenta Deus em seu meio.

5 Agora o profeta proclama a palavra da salvação: haverá, concretamente, carne e pão!

6 E a salvação se faz pão!

3. Meditação

O evangelho do domingo, João 6.24-35, encontra-se no contexto da multiplicação de pães e peixes (Jo 6.1-15). Essa última narrativa termina relatando que as pessoas que haviam presenciado o sinal feito por Jesus querem arrebatá-lo para proclamá-lo rei. Jesus retira-se. A passagem é interrompida pela perícope de João 6.16-21, cujo tema é “Jesus anda sobre o mar”. O v. 22 retoma a primeira narrativa. A multidão segue Jesus até a outra margem do lago. Aparentemente, a intenção de fazê-lo rei continua. Tema de João 6.24-35 é o pão. Um rei milagreiro, capaz de multiplicar o pão, é a melhor solução para o povo. A lembrança do maná no deserto, da salvação feita pão, é imediata. Jesus é capaz de resolver os problemas materiais do povo.

Embora o texto não fale de uma multidão faminta, é perfeitamente imaginável que as pessoas que procuram Jesus por causa de inúmeras necessidades materiais também sintam duramente a ausência de pão. Não me parece que se possa criticá-las por isso. Fome é assunto sério!

A afirmação de Jesus “Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna” (v. 27a) não exclui a necessidade concreta de comida, de pão. “Não só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4) também não afirma que o pão não é necessário. Diz, isto sim, que apenas o pão não basta. É preciso pão e o Pão da Vida. Ambos descem do céu, porém é o segundo, o próprio Jesus, que dá vida ao mundo e é por isso o mais importante.

Seria um equívoco contrapor as duas coisas. Tampouco me parece ser essa a intenção do tema do domingo, ao apresentar os dois textos. E, ao definir a passagem de Êxodo 16 como texto de pregação, está dando ênfase à materialidade da vida.

O cenário de Êxodo 16 é o deserto. Ali a vida está constantemente em risco. Sede e fome são ameaças constantes. Não é à toa que o povo sente saudades das panelas de carne no Egito. É por isso que reclama, murmura. O desespero pela fome fá-lo clamar, como clamara sob a escravidão.

Curiosamente, não há no texto nenhuma reprovação a essa murmuração. Ao contrário, há uma benévola e graciosa disposição de Deus em fazer chover pão do céu. Isso significa que Deus ouve a murmuração do povo da mesma maneira que ouviu o seu clamor no Egito.

Desde criança, aprendi – e suponho que isso tenha sido o caso de muita outra gente de tradição luterana – que o murmurar, o reclamar em relação a Deus seria rebeldia, incapacidade de aceitar a cruz a mim imposta, enfim, pecado. Fui percebendo que o povo no deserto não é o único a murmurar e a clamar na Bíblia. Jeremias (20.7ss) reclama, murmura, protesta. O próprio Jesus clama na cruz: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46; Mc 15.34).

Em ambos os casos – e em tantos outros também –, Deus também ouve, salvando o necessitado, embora isso nem sempre ocorra de imediato.

Contudo, é preciso tomar cuidado. Não é assim que Deus se deixa mover por nossas reclamações e murmurações. Não é assim que se deve e se pode exigir a graça de Deus. Mas é possível confiar nela, viver dela, da infinita e misericordiosa graça de Deus, presente até em meio à cruz.

Jesus não escapou da cruz, apesar de seu grito. Graça não é garantia de sucesso imediato. Tampouco é assim que se possa exigir qualquer coisa de Deus.

Tomada essa precaução, penso que a pregação deveria levar em conta as murmurações de ontem e de hoje.

Na vida, há muitas coisas que nos faltam e nos fazem sofrer. Para além da fome, da sede e de outras privações, há ainda doença e dor, luto e morte. Cada pregadora ou pregador deveria estar atento a dores e sofrimentos de sua comunidade, que certamente serão muitos.

É importante enumerar dores e sofrimentos, diante dos quais murmuramos. Êxodo 16 legitima-nos a murmurar diante de Deus. Por isso é legítimo oportunizar, no culto, um espaço para expressar murmurações.

Contudo, Êxodo 16 também nos motiva à confiança na providência divina. Em meio ao deserto, Ele dá o pão. Em meio às agruras da vida, Ele nos dá a certeza da vida eterna por meio de Jesus Cristo, o Pão da Vida. Ele está no meio de nós!

É importante não apenas falar sobre as murmurações e a certeza da salvação, a material e a futura, mas também celebrar nesse culto a Ceia do Senhor, de maneira tal que a confissão de pecados não se resuma a falar de culpa, mas que dê espaço às murmurações concretas da comunidade. O anúncio da graça acentuaria que a salvação se fez pão, no maná do deserto e no Pão da Vida, Jesus Cristo.

4. Imagens para a prédica

Considerando que, no texto, as murmurações têm como tema o pão, é bom lembrar a explicação da quarta petição do Pai-Nosso no Catecismo Menor de Lutero: “Que significa o pão de cada dia? – Resposta: Tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida, como: comida, bebida, vestes, calçado, casa, lar, campos, gado, dinheiro, bens, consorte piedosa, filhos piedosos, empregados bons, superiores piedosos e fiéis, bom governo, paz, saúde, disciplina, honra, leais amigos, vizinhos fiéis e coisas semelhantes”.

O leque se amplia. Pão representa bem mais do que alimento. Pão representa, enfim, vida plena. E mais, observando o texto do evangelho, que nos fala do Pão da Vida, haveria que acrescentar à explicação de Lutero, logo após o termo “saúde”, também o conceito de “vida eterna”.

Para tornar o tema do culto bem concreto, sugiro colocar no espaço em frente ao altar um ou dois cestos grandes, desses de padaria, cheios de pequenos pães. Os custos serão compensados pela experiência.

Além de servirem para ilustrar a pregação sobre o maná e apontarem para o Pão da Vida, os pães poderiam ser partilhados na eventual celebração da Ceia.

Além disso, seria muito significativo convidar a comunidade a levar pães que sobrassem – e deveriam sobrar – a pedintes de rua, concretizando a graça do maná em meio ao deserto, bem como a dimensão diaconal da comunidade. Tal proposta continua válida, caso se resolva não celebrar a Ceia.

5. Subsídios litúrgicos

Um hino que não deveria faltar nesse culto é HPD 2, 326 (“O povo de Deus”), que tem como tema a caminhada pelo deserto. A terceira estrofe fala explicitamente do assunto de Êxodo 16. Esse hino pode ser cantado no início do culto, acompanhado pela entrada dos cestos com pães, ou antes da pregação.

Como versículo de introito: Apocalipse 21.1-5a.

Leitura bíblica fundamental: João 6.24-35.

Confissão de pecados:

Deveria ser substituída por uma oração de murmuração, na qual fossem apresentados dores e sofrimentos da comunidade. As pessoas deverão ser convidadas a expressar essas murmurações. Para introduzi-las, sugiro a leitura do Salmo 22.1-5.

Anúncio da graça: João 6.35 ou João 6.48-51.

Mantenho a proposta de celebrar nesse culto a Santa Ceia, utilizando os pães contidos nos cestos.

Bibliografia

VOLKMANN, Martin. 11º Domingo após Pentecostes. In: HOEFELMANN, Verner; MÜLLER DA SILVA, João A. (Coords.) Proclamar Libertação, V. 28. São Leopoldo: Sinodal, EST, 2002. p. 276-283.
LINDNER, Clóvis. 7º Domingo após Trindade. In: KILPP, N.; TREIN, H.A. (Coords.) Proclamar Libertação,V. XIX. São Leopoldo: Sinodal, EST, 1988. p. 283-289.
 


Autor(a): Carlos Artur Dreher
Âmbito: IECLB
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 10º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Êxodo / Capitulo: 16 / Versículo Inicial: 2 / Versículo Final: 15
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2011 / Volume: 36
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 25568
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