Jornal Evangélico Luterano

Ano 2016 | número 792

Quinta-feira, 25 de Abril de 2024

Porto Alegre / RS - 14:19

Unidade

Lutero - Reforma: 500 anos

   Quanto custa o que não tem preço?

   A mãe, sentada na sacada, ergue os olhos do livro que está lendo e acarinha o seu filho, que procura pelas minhocas, que, no dia anterior, colocou, com a ajuda do pai, no canteiro de gerânios. Naquele momento, o menino a surpreende:

   - Mamãe, quanto custa um abraço?
   - Não tem preço, meu filho.
   - Mãe?
   - O que é?
   - Quanto custa um cafuné?
   - Não tem preço!
   - E o tempo, mamãe?
   - Ah! O tempo é tão valioso que não tem preço, assim como o abraço e o cafuné.
   O menino franze a testa, como se muitos pensamentos se acumulassem rapidamente por ali.
   - Posso ligar para o vovô?
   - Pode, mas porque, meu fi lho, bateu saudade?
   - Aqui assim (o menino passa a mão no peito) está cheio de vontade de ver o vovô!
   - Vá lá dentro, pegue o celular que está sobre a escrivaninha da mamãe e traga aqui. Aí ligamos para o vovô.
   O menino sai correndo, quase atropelando o gato, que se espreguiça por trás de um vaso, e volta correndo com o celular na mão.
   - Aqui está, mamãe!
   A mãe faz a ligação e passa para o menino.
   - Vô, o senhor está vendendo muita coisa? (O menino fi ca com uma expressão de quem está escutando com atenção algo importante. De vez em      quando, franze a testa e solta um ‘e’, depois ‘humm’!).
   - Vovô, o senhor está ganhando bastante dinheiro? (Mais um tempo de silêncio).
   - Vô, eu não tenho dinheiro, porque gastei as minhas moedas comprando ração para o meu gato, mas eu estou com tanta, mas tanta saudade... A mamãe disse que abraço, cafuné e tempo não têm preço.
   Então, quero pedir um abraço e um monte de cafuné. Quando o senhor pode passar uma tarde inteira de tempo comigo?
   - Eh! Sim! Tá bom! Sim! Huuummm! Está bom! Obrigada! Vou falar com a mamãe.
   - Mamãe, o vovô vem sábado à tarde.

   O menino larga o celular no colo da mãe e vai brincar tranquilo, sem franzir a testa.

   Enquanto escrevo, escuto o movimento da minha sobrinha de 2 anos correndo pelo apartamento, fazendo barulhos que não têm preço, porque são únicos, e, quando ela for embora, sentiremos saudades de ouvi-la repetindo exaustivamente as palavras recém-descobertas, do seu jeito de chegar nos momentos mais inesperados e soltar um ‘Eu te amo!’ ou ‘Quero colo’. Isso não tem preço!

   Estamos acostumados que tudo tem preço! Terminamos nos acostumando a tudo e não devíamos, como disse a Poetisa Marina Colassanti. O cós das calças femininas desceu até onde podia e, agora, subiu tudo de novo! O celular era grande, fi cou pequeno e, agora, parece chique andar com o maior aparelho que couber na mão. Com os fones de ouvidos, foi a mesma coisa. Que padrão de estética seguem os jovens que penduram os fones de ouvido no pescoço como se fossem colares a ostentar a sua semelhança com algum jogador de futebol famoso? O que acontece com aqueles que precisam deixar a marca da sua roupa íntima aparecendo? Não basta usar, precisa mostrar a marca!

   Um Médico, conhecido meu, após um plantão na emergência de um hospital, relata, desanimado, uma cena daquele dia. A menina chega à emergência com fortes dores abdominais. Não consegue comer nada. Há alguns dias, tem crises de vômito toda vez que vai comer algo. Ela tem 13 anos, portanto, um corpo de menina. A mãe logo vai dizendo que ela está gorda e que deve ter comido alguma porcaria. A menina tem uma crise de choro e a ‘cena de novela mexicana’ está criada!

   O Médico chama uma Enfermeira e pede que acompanhe a mãe, que, a contragosto, se retira. Sozinho com a paciente, o Médico consegue ouvir a sua
verdadeira dor, que não era de estômago. A menina, de tanto ouvir que estava gorda e de tanto querer agradar a mãe, que sonha com uma filha modelo de passarela internacional, começou a desenvolver uma rejeição a qualquer alimento.

   Quando esquecemos a nossa essência, de onde viemos e quem somos, precisamos rememorar a nossa filiação divina e essa memória vai nos empoderar, pois, em nós, há um valor que não tem preço.

   O Psicanalista Juan-David Násio escreve em seu livro A dor física que não basta um Clínico receitar remédio para quem se  queixa de uma dor física. É preciso que o indivíduo seja escutado como um todo. Quem sofre de gastrite, por exemplo, sente o estômago doer, mas, para se curar, é preciso curar aquilo que lhe causa dor no estômago – e não é a comida. O que essa mãe estava projetando nessa filha de 13 anos para que esta padecesse tanto? Enquanto o Médico ouve a menina, a Enfermeira ouve a mãe, que, indignada, se explicava: ‘Eu sofri muito quando tinha a idade dela! Não quero que ela sofra, só quero que as roupas lhe caiam bem! Que possa ser admirada em uma passarela, que outras meninas queiram ser iguais a ela!’. 

   Essa história me remeteu ao poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado, Eu, etiqueta, do qual transcrevo uma parte:

Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida. [...]
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

   Coisificamos a vida, colocamos preço no ser humano. Quanto você vale? Toda pessoa tem o seu preço, diz um infeliz ditado popular! O apóstolo Paulo já alertava os moradores de Corinto: Deus comprou vocês por um preço; portanto, não se tornem escravos de seres humanos. Irmãos, cada um deve continuar na presença de Deus assim como era quando Deus o chamou (1Coríntios 7.23-24).

   Somos capazes de, verdadeiramente, fazer frente à ‘precificação’ da vida? Será possível ensinar que o nosso valor não está em ser como mostram os programas de televisão, mas em ser a partir do que acreditamos, baseados em nossa vivência cristã? Para esse desafio, o apóstolo Paulo traz uma palavra contundente na carta aos romanos: não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus  (Romanos 12.2). Vivemos nesse mundo e é nesse mundo que somos cristãos e cristãs, contudo não podemos nem devemos nos conformar. Ao contrário, devemos estar dispostos a, de fato, renovarmos a nossa mente. Quando nos sentirmos confusos e tivermos nos afastado das nossas raízes, já não sabendo quem somos, afinal, podemos confessar a nossa fé com as palavras do Teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, que termina o poema Quem sou eu (escrito enquanto esteve preso, por causa da sua oposição ao regime nazista, na Alemanha) confessando: ‘Posso não saber quem sou, mas tu, ó Deus, o sabes’. Quando esquecemos a nossa essência, de onde viemos e quem somos, precisamos rememorar a nossa filiação divina e essa memória vai nos empoderar, pois, em nós, há um valor que não tem preço.

   Para o Filósofo Immanuel Kant (Dignidade da pessoa Humana e Direitos Fundamentais - Ingo Wolfgang Sarlet), o ser humano nunca pode ser visto como um meio, no sentido de ser visto como o ser-etiqueta, o corpo-cabide-de-passarela, o corpo-que-faz-propaganda, a mulher-propaganda-de-cerveja, a mulher-jaca, a mulher-melancia, o homem-carro, o homem-iate, o homem-poder. O ser humano, para Kant, existe como um fim em si mesmo, não como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade.

   A Filósofa alemã Hannah Arendt (A Condição Humana), defende que o ser humano, independentemente do que faça, é sempre um ser condicionado. Ela, no entanto, completa que jamais esse condicionamento é de modo absoluto. Viktor Frankl (Em busca de sentido), vai na mesma direção ao sustentar que sempre, ainda, haverá, em cada um e cada uma, a vontade de sentido que empodera o indivíduo a fim de significar a vida para além dos condicionamentos. Sobre isso, Martim Lutero escreveu: ‘Se [alguém] encontra seu coração na confiança de que agrada a Deus, então a obra é boa, ainda que fosse tão insignificante como levantar uma palha (WA 6, 206,9).

   Para ‘ser’, em uma sociedade em que o ‘ter’ é o que conta, é preciso coragem, como nos pede o livro do Teólogo Paul Tillich (A coragem de ser). Tillich escreve que essa coragem de ser é o esforço em prol do que é nobre e que isso precisa ter uma posição central na estrutura da nossa alma, estrutura essa que é necessária para se construir uma ponte por sobre a fenda entre a razão e o desejo. Coragem é uma realidade ética que se enraíza em toda extensão da existência humana e na estrutura do nosso ser.

   Não me refiro a uma coragem de saltar das alturas ou de caminhar por uma corda entre dois prédios. É coragem para viver uma vida de tal forma que esse viver seja um ato político, como defende Arendt. Ela assinala que a singularidade de cada pessoa situa a vida como uma condição política e o viver como um fazer político, da mesma forma que a morte e o morrer. Viver é não se furtar em agir para que a vida, e não só a minha e a sua, seja uma existência mais significativa e dessa forma estamos sendo políticos – na medida em que interferimos para transformar. Da mesma maneira, o morrer é sempre um ato político, porque, a partir da morte, a nossa biografi a vai passar a faltar no emaranhado plural da humanidade. (A Condição Humana - Hannah Arendt). É como um pedaço de quebra-cabeça que não está mais no seu conjunto. Podemos nos perguntar: Como queremos que a nossa biografi a seja ‘lida’? Como queremos ser lembrados? Quer dizer, é impossível passar por esse mundo de forma invisível ou imperceptível. Importa saber como, então, queremos passar pela vida.

   O ser humano é uma biografia e isso não tem preço. Ser cristão e cristã é, com certeza, um ato político, na medida em que não podemos deixar de falar sobre a Palavra que verdadeiramente oferece vida e vida em abundância (João 10.10). Isso não tem preço!

   Somos capazes de, verdadeiramente, fazer frente à ‘precificação’ da vida? Será possível ensinar que o nosso valor não está em ser como mostram os programas de televisão, mas em ser a partir do que acreditamos, baseados em nossa vivência cristã?

   Pa. Vera Cristina Weissheimer, Pastora Voluntária na Capelania do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), integra a equipe do Panorama Desenvolvimento Humano de Florianópolis.

 

 

 

 

 

 

 

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