Série Especial Deixo com vocês a minha paz
Ouvistes que foi dito: olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: amai aos vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem (Mt 5.38 e 44).
A inveja, o ódio, a vingança e a violência estão presentes no mundo desde o início da história da humanidade. Nos primeiros capítulos da Bíblia, encontramos a trágica história de Caim e Abel (Gn 4.1-10), a passagem um irmão que mata o próprio irmão por inveja. Assim, desde cedo, foi necessário estabelecer leis para que a convivência e a própria vida fossem preservadas. É a uma dessas leis que Jesus se refere nos versículos acima. Jesus cita a lei mais antiga que se tem conhecimento: ‘olho por olho e dente por dente’. Essa lei se conhece como Lei de Talião e pode ser descrita como ‘Lei da reciprocidade direta’, mencionada no Código de Hamurabi, o código de leis mais antigo que se conhece (2285 a 2242 a.C).
A expressão ‘olho por olho e dente por dente’ aparece na Lei mosaica, fundamentando o direito dos juízes de impor castigos que equivalham ao mal cometido (Ex 21.24, Lv 24.20 e Dt 19.21). Não só a lei judaica, mas também a grega e a romana, entre outras, mantinham este fundamento. Esta era uma lei básica. É importante salientar que ela nunca teve como propósito dar ao indivíduo, como pessoa particular, o direito de vingar-se pessoalmente. Sempre se tratou de uma norma destinada a guiar um juiz na avaliação da pena que deveria aplicar por qualquer ato violento ou injusto.
Esta lei básica é contestada por Jesus (Eu, porém, vos digo...). Nos dias atuais, as palavras do Evangelho podem soar estranhas aos nossos ouvidos. No entanto, a recepção também não foi melhor quando Jesus as pronunciou. Jesus ensina que, para quem vive a partir dos preceitos de Deus, não é olho por olho nem dente por dente. A violência não deve ser respondida com vingança nem com ódio, mas com o amor, a humildade e a mansidão de Cristo. Jesus sempre nos ensinou a amar. Sabemos que o amor não exige reciprocidade. O autêntico amor dá de si sem esperar retorno.
Nesse mundo, em que a vingança e o ódio são normais, é anunciada a possibilidade de uma paz verdadeira. Essa alternativa não foi criada pelo ser humano, mas proclamada e exemplifi cada por Jesus Cristo. |
A proposta de Jesus, amar, é desafiadora para nós. Ela nos obriga a inverter tudo aquilo que consideramos como ‘natural’ e, por isso mesmo, correto. Se alguém é meu inimigo, então devo amá-lo? Como assim?
Vivemos tempos em que esta proposta de Jesus se apresenta contrária a tudo que está sendo defendido como correto. Vemos proliferar o ódio e, como consequência deste, a violência. Como solução, propõe-se a liberação da posse de armas de fogo. Vemos nações poderosas propondo promover a paz por meio de guerras! Em nosso meio, cada vez mais se defende a realização da justiça com as próprias mãos. Essa proposta é questionada por Jesus. Mais do que isso, Jesus rejeita toda e qualquer atitude que atente contra a vida humana. Ele mesmo dá o exemplo, orando por aqueles que o pregaram na cruz (Lc 23.34). Quem se propõe a seguir a Jesus, tem que estar disposto a amar incondicionalmente e a orar por todas as pessoas.
Amar até mesmo aos inimigos não é uma tarefa fácil. Ser cristão e cristã não é fácil. Jesus nunca disse que seria. Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16.24). Jesus propõe claramente a prática da não violência e, para os discípulos, deixou a paz. Portanto, fez questão de frisar: Não a paz que o mundo dá, que é baseada na violência e causa medo e aflição (Jo 14.27).
Jesus vive no tempo da proclamada Pax Romana, uma série de medidas político-administrativas do Império Romano e que manteve as suas províncias dominadas e garantiu o poder de Roma sobre suas conquistas. Essa ‘paz’ era mantida por um violento exército, que não hesitava em matar quem ousasse questionar a autoridade romana. Uma boa ilustração sobre o que foi a ‘pax romana’ nós encontramos na citação de Tácito: ‘[...] mais perigosos do que todos são os romanos [...]. Esses ladrões do mundo, depois de não mais existir nenhum país para ser devastado por eles, revolvem até o próprio mar [...]. Saquear, matar, roubar – isto é o que os romanos falsamente chamam de domínio e ali onde, através de guerra, criam um deserto, isto eles chamam de paz [...]. As casas são transformadas em ruínas, os jovens são recrutados para a construção de estradas. Mulheres, quando conseguem escapar das mãos dos inimigos, são violentadas por aqueles que se dizem amigos e hóspedes. Bens e propriedades transformam-se em impostos. A colheita anual dos campos torna-se tributo em forma de cereais. Sob espancamentos e insultos, nossos corpos e mãos são massacrados na construção de estradas através de fl orestas e pântanos’ (Economia no mundo bíblico: enfoques sociais, históricos e teológicos, de Ivone Reimer (Org.)/2006).
Para dentro deste mundo, em que a vingança e o ódio são normais, é anunciada a possibilidade de uma paz verdadeira. Essa alternativa não foi criada pelo ser humano. Foi proclamada e exemplificada por Jesus Cristo. Quando foi insultado, não respondeu com insultos. Quando sofreu, não ameaçou, mas pôs a sua esperança em Deus, o justo Juiz (1Pe 2.23). Não é mais preciso revolver-se no círculo vicioso da violência e da morte. Jesus proporciona a possibilidade de vida verdadeira. Infelizmente, vemos a humanidade mergulhada em uma onda de ódio, de radicalismo e de rejeição ao bom senso. Às vezes, tenho a impressão que perdemos a nossa humanidade. Parece-me que a vida das pessoas não tem valor. Mata-se um semelhante porque ele torce para o time adversário, por exemplo. É preciso perguntar: Quando foi que esquecemos do Mandamento do amor?
Muitas pessoas esquecem que o amor é incondicional. Assim, as pessoas inimigas ou malfeitoras não devem ser amadas por merecer uma chance. Elas são amadas por causa da nossa relação com Deus. Por Deus ser nosso Pai, o nosso amor não está restrito a fronteiras por nós traçadas. O fator evangélico sobressai aqui, porque, no amor ilimitado, encontramos a verdadeira comunhão com Deus e, por conseguinte, a verdadeira paz.
O amor é incondicional e as pessoas inimigas ou malfeitoras não devem ser amadas por merecer uma chance, mas por causa da nossa relação com Deus. Por Deus ser nosso Pai, o nosso amor não está restrito às nossas fronteiras. |
Cristo nos ensina a não ferir (Mt 26.51- 52), não julgar (Mt 7.2), não matar (Mt 5.21). Quem vive a fé em Jesus, acolhe, perdoa, se compadece, não retribui o mal com o mal, mas se empenha por uma cultura de paz. A fé cristã não me permite defender o uso de armas. Armas são feitas para matar e nós sabemos que o ladrão vem para roubar, matar e destruir, mas Jesus veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10.10).
O Tema da IECLB para 2019 convida a viver e a promover a paz, mas como viver em paz em um mundo tão conturbado e violento? Como viver em paz sabendo que o vizinho viciado possui várias armas e qualquer mal-entendido no estacionamento ou no elevador pode se tornar motivo para usá-las? Como viver em paz quando a violência está presente nos lares? Vemos a violência doméstica aumentar assustadoramente. O número de feminicídios tem batido recorde. Crianças são violentadas, alvos de maus-tratos todos os dias. Como viver em paz diante da ganância que mata sem compaixão? Famílias inteiras vivem a angústia de perder a vida e/ou tudo que conquistaram durante a vida com o rompimento de mais uma barragem de rejeitos de mineração.
Neste contexto, é preciso lembrar que o princípio da não violência não nos induz à omissão, à covardia ou ao silêncio de quem consente com toda forma de violência. A fé não nos permite ficar indiferentes, mas nos conclama ao ‘Combate ao ódio e a tudo o que ele produz. Ódio é o mais feroz inimigo da paz. Jesus o considera equivalente ao homicídio consumado (Mt 5.21s). Quem prega ou dá razões para o ódio é potencialmente um assassino. Se ainda não procedeu à ação, certamente foi por falta de oportunidade’ (Fazer o bem faz bem: uma introdução à ética, de Gottfried Brakemeier/2019).
A prática da não violência parte do princípio que o mal não se vence com o mal, mas na prática do bem e do permanente cultivo de valores, como dignidade humana, respeito a todas as criaturas, igualdade de direitos e justiça! Justiça não é vingança ou mera punição, tampouco ódio e morte. Justiça é o pão para todas as pessoas, a vida respeitada, a educação garantida, a saúde cuidada e a aposentadoria digna para as pessoas trabalhadoras.
‘No atual contexto brasileiro, o desafio permanece: em resposta ao amor de Deus, a IECLB afi rma a sua Missão de promover a justiça, a paz e o amor, sem se conformar com as injustiças, exercendo voz profética. Afi nal, é preciso que o mal do mundo não nos pareça normal’ (Mensagem do XXXI Concílio da IECLB).
A paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.
Pastor Ismar Schiefelbein,
Pastor Sinodal do Sínodo Espírito Santo a Belém