Jornal Evangélico Luterano

Ano 2012 | número 751

Sexta-feira, 29 de Março de 2024

Porto Alegre / RS - 06:29

Unidade

Lutero - Reforma: 500 anos

   Martim Lutero, pressionado a revogar o que tinha escrito, se recusou enquanto não fosse ´convencido por testemunhos da Escritura´. Foi o que ele disse publicamente na Assembleia Nacional, em 1521, na cidade de Speyer, na Alemanha. Ele tinha sido acusado de espalhar heresias, de estar em conflito com o ensino da Igreja, de ter se desviado da verdade cristã. Lutero não se impressionou. Teve a coragem de enfrentar o Papa, o Imperador e todo o mundo, pedindo argumentos bíblicos. Os seus adversários ficaram devendo as provas. Então, quem tem razão - a Igreja ou a Escritura? Foi esta a questão com que Lutero se debateu em sua luta por uma reforma na Igreja.
   Lutero invoca a Bíblia. Ele era Professor de Antigo e Novo Testamento e havia percebido o quanto o discurso e a prática da Igreja estavam em desacordo com o que aí se dizia. A venda das indulgências, por exemplo, fere os princípios do Evangelho. O mesmo vale para o culto aos santos, o celibato obrigatório dos sacerdotes e principalmente para a barganha com obras supostamente meritórias. A graça de Deus é gratuita, ela não pode ser negociada ou comprada. Ela só pode ser recebida pela fé para, então, ser traduzida em vivência. Foi isso o que Lutero aprendeu na Sagrada Escritura e o que o transformou em Reformador. Igreja luterana compartilha dessa convicção. Ela não admite outra instância normativa na Igreja ao lado da Bíblia. É esta a fonte da qual ela bebe e à qual atribui a máxima autoridade. Todo discurso e toda a prática eclesial necessitam de fundamento bíblico.

A referência é sempre Jesus Cristo. É ele quem deve reinar na Igreja. Ele usa a Escritura como o seu privilegiado instrumento. Onde ouvimos a sua voz de maneira mais clara, senão na Bíblia? Por isso vale ´Somente a Escritura´.


   
   Será que a Escritura merece tamanha confiança? Lutero responde que sim. Ela é o documento apostólico por excelência. Não há nenhum outro escrito surgido na Igreja igual a ela. Se quisermos saber algo a respeito de Jesus, sobre a vida da primeira comunidade, sobre a pregação das primeiras testemunhas, nós temos que recorrer à Bíblia. Não existe outra fonte de informação. Por meio dela, temos acesso ao testemunho original do Evangelho. Os apóstolos e os profetas que estão na base da Igreja (Ef 2.20) morreram, mas eles continuam falando por meio dos depoimentos da Sagrada Escritura. Foi essa a herança que deixaram, por isso cabe orientar-se somente por ela. Quem julga necessário fazer acréscimos, quem busca o Evangelho em outros livros, quem alega ter recebido revelações adicionais, diferentes da Bíblia, vai falsificar a mensagem cristã.
   Na opinião de não poucos, este princípio é perigoso, pois a Bíblia é um livro plural. No Novo Testamento, temos quatro Evangelhos e eles não dizem exatamente o mesmo. Também o conteúdo das cartas nem sempre harmoniza. No Antigo Testamento, a variedade é ainda maior. A espiritualidade dos salmos, por exemplo, evidencia grandes variações. Com efeito, a Bíblia compila tradições que tiveram origem em épocas diferentes, lugares diferentes e em autores diferentes. Será que ela pode, nessas condições, servir de norma para a fé? Em que reside exatamente o Evangelho e o código moral dos cristãos? A Bíblia, assim parece, legitima muitas posições. Sempre de novo surgem ´apóstolos´ que, com a Bíblia na mão, propagam ´novas´ verdades e criam mais outra Igreja ao lado das tantas que já existem. Aparentemente, a Bíblia não tem como frear a explosão de  Igrejas e seitas. Todas elas se escoram nos textos sagrados.
   Está claro, pois, que a interpretação da Bíblia necessita de controle. Não se pode admitir que seja lida de acordo com as ideias de cada qual, sem nenhuma disciplina e sem necessidade de prestação de contas. É por isso que existe na Igreja Católica a instituição do Magistério Eclesiástico, encabeçado pelo Papa. É ele que decide, em última instância, sobre o que importa crer e como entender a Bíblia. Em casos de dúvida, a autoridade papal tem a última palavra. Com isso, o Magistério se coloca de fato acima da Sagrada Escritura. Ela já não é a única diretriz em assuntos de fé e conduta. Somam-se a ela as definições conciliares, as declarações da Cúria Romana, as tradições oficialmente aprovadas na Igreja. Assim sendo, o princípio ´somente a Escritura´ cai por terra. Foi o que provocou a inconformidade de Lutero. A Igreja tinha sufocado a voz da Bíblia e conseguido imunidade. Lutero lança a Bíblia contra a Igreja do seu tempo.
   Isto não significa que Lutero aprovasse os abusos da Bíblia. A interpretação precisa de controle, sim. Lutero também o sabe. O texto bíblico pode ser violentado, distorcido, adequado a dúbios interesses humanos. É o que acontece quando os versículos são arrancados do contexto, quando são citadas somente as passagens ´simpáticas´, quando se faz uma leitura apenas superficial. Até mesmo se pode provar que não há Deus. Basta suprimir a primeira parte do Salmo 14.1 onde se lê ser a pessoa insensata quem o afirma. Dependendo do manejo, a Bíblia pode sustentar as piores heresias. Os exemplos são muitos. Doença é castigo para o pecado? Quem concorda, ainda não leu a Bíblia devidamente. O assunto é bem mais complexo. Então, como evitar o uso indevido da Sagrada Escritura?
   A resposta de Lutero é radical. Ele diz que o controle da Bíblia está nela mesma. Ela não precisa de nenhuma instância externa para ser entendida devidamente. Todos os magistérios humanos, inclusive os eclesiásticos, acabam em novamente bitolar a exegese. Isto vale também para as confissões luteranas, a exemplo da Confissão de Augsburgo. Ela é um precioso auxílio na definição do Evangelho. Quem quiser ser luterano não pode desprezá-la. O mesmo se aplica ao Credo Apostólico e aos tantos outros formulados no decorrer da história da Igreja. A fé cristã não é de hoje. Somos membros de uma família, cuja tradição nos compromete. Mesmo assim, as confissões não podem usurpar o lugar da Sagrada Escritura. As Confissões são normas derivadas. A suprema norma permanece sendo a Bíblia.

A graça de Deus é gratuita, ela não pode ser negociada ou comprada. Ela só pode ser recebida pela fé para, então, ser traduzida em vivência. Foi isso o que Lutero aprendeu na Sagrada Escritura e o que o transformou em Reformador. Igreja luterana compartilha dessa convicção.


 
   A Bíblia, pois, dispensa controles externos. Ela se interpreta a si mesma, dizia Lutero. Como acontece isto? Ora, revelando o que para ela é importante. Quem lê a Bíblia com atenção vai rapidamente perceber o propósito que persegue. Ela não pretende informar sobre Matemática, Biologia ou Geografia. A Bíblia não é um livro de ciência. Ela também não quer espalhar ideias fantasiosas sobre forças ocultas ou a respeito do além. A Bíblia não é um livro esotérico. Não! O que ela quer é mostrar o amor de Deus manifesto em Jesus Cristo. A Bíblia está desinteressada de satisfazer curiosidades. O seu propósito é, antes, despertar a fé, provocar a esperança, motivar para a prática do amor. O Deus da Bíblia é o Deus que salva. Isto desde a Criação, desde o êxodo de Israel do Egito e, sobretudo, desde a vinda de Jesus Cristo, a encarnação do Verbo.
   Portanto, o que se deve procurar na Bíblia é o Evangelho. É este o seu centro, a sua causa, o seu conteúdo por excelência. Está aí o controle da leitura correta. Toda interpretação bíblica tem no Evangelho o seu referencial obrigatório. Lutero dizia que devemos buscar na Bíblia ´o que promove a Cristo´, ou seja, o que dele dá testemunho, o que fala da sua obra, o que constrói a fé, por isso já não basta citar algumas passagens bíblicas como prova de qualidade evangélica. Igreja luterana quer mais. Ela exige evidências de que a interpretação esteja em conformidade com os propósitos da Sagrada Escritura, cuja expressão mais clara está em Jesus Cristo.
   Por ser assim, importa distinguir entre a letra da Sagrada Escritura e o seu espírito. Nem sempre o teor verbal da Bíblia está em sintonia com o Evangelho. Esse, por exemplo, afirma a igualdade de homem e mulher perante Deus. Então, por que barrar o acesso da mulher ao Ministério? Será suficiente alegar uma passagem como a de 1Co 14.34, no qual o apóstolo Paulo diz que as mulheres devem manter-se caladas nas reuniões da comunidade? Não havia este mesmo apóstolo dito que, em Cristo, não há homem nem mulher (Gl 3.28)? Às vezes o Espírito da Escritura requer a crítica à sua letra.
   Como luteranos, insistimos em uma interpretação responsabilizada. Nem tudo o que está na Bíblia tem o mesmo grau de relevância. Há coisas que são periféricas e mesmo problemáticas. A boa exegese vai ajudar a fazer as necessárias distinções e a descobrir o tesouro no campo (Mt 13.44s). Vai exercer assim o controle que a Sagrada Escritura precisa como defesa contra a arbitrariedade dos seus intérpretes. A referência é sempre Jesus Cristo. É ele quem deve reinar na Igreja. Ele usa a Escritura como o seu privilegiado instrumento. Onde ouvimos a sua voz de maneira mais clara, senão na Bíblia? Por isso vale ´Somente a Escritura´.

P. Dr. Dr. h.c. Gottfried Brakemeier, autor de vários livros e artigos em revistas nacionais e internacionais, estudou Teologia no Brasil e na Alemanha, em 1964 foi ordenado Pastor da IECLB, doutorou-se na área do Novo Testamento, em Göttingen, na Alemanha. De 1968 a 1984, foi Professor na Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo/RS, exerceu a Presidência da IECLB de 1985 a 1994, a Presidência do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) de 1986 a 1990 e a Presidência da Federação Luterana Mundial (FLM) de 1990 a 1997, voltando à docência na Faculdades EST em 1995 e aposentando-se em 2002
 

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