Jornal Evangélico Luterano

Ano 2014 | número 772

Quarta-feira, 17 de Abril de 2024

Porto Alegre / RS - 23:05

Unidade

Lutero - Reforma: 500 anos

   Faz parte da confessionalidade luterana a participação de toda a Comunidade no culto - não apenas assistindo ou escutando, mas fazendo parte. Isso acontece na audição, mas também na participação da Ceia, nos gestos, nas posturas, no canto comunitário, entre outros. O canto comunitário acontece em vários momentos do culto e em diferentes modalidades: cantamos hinos, salmos, corinhos, canções e cantos litúrgicos. Há muitas discussões entre os conceitos de cânticos, hinos e Salmos (conforme Colossenses 3.16), mas iremos tratar especialmente dos hinos em uma próxima oportunidade. Aqui, queremos nos ater aos cantos litúrgicos. Para que servem? Qual é o seu conteúdo? Eles são liturgia ou são acessórios? 

   Os cantos litúrgicos têm função diferente dos hinos, não se sobrepondo aos mesmos. São parte da liturgia, sendo usados basicamente de duas formas: os cantos que são o próprio rito ou os que acompanham uma ação que ocorre no culto. No primeiro grupo, podemos incluir a confissão de pecados, o Kyrie, o Santo, o Gloria in Excelsis. Entre os que acompanham o desenrolar do rito, situam-se, por exemplo, o canto de comunhão (distribuição da Ceia) ou do ofertório. Em outras palavras, podemos dizer que, com os cantos litúrgicos, nós cantamos (fazemos) as diferentes partes da liturgia. 

   A liturgia, na sua forma cantada, é salutar para a vida comunitária, na medida em que o canto comunitário pode ser considerado a voz do povo na liturgia, por isso, ao cantar a liturgia em conjunto, o povo de Deus como um todo se manifesta como povo sacerdotal. É a Comunidade como participante plena do culto, em diferentes ações. Isso porque ações litúrgicas não podem ser ações individualizadas ou privadas, mas celebrações da Igreja. Por serem geralmente constituídos por textos e melodias breves, os cantos litúrgicos são facilmente memorizáveis, o que garante plena participação comunitária. 

   Enquanto existe música sobre a fé, que serve a diferentes momentos da vida cristã e comunitária, podemos dizer que cantos litúrgicos existem para o culto. Ali está o seu lugar, amalgamados com a liturgia, tecidos junto com ela, por isso o canto comunitário adequado coaduna palavras e música, de forma coerente com o momento (parte) da liturgia onde se insere. Entretanto, a Comunidade segue sendo o critério para aquilo que é possível ou que não deve ser usado (além das questões éticas) - essa é a compreensão evangélica de culto. Os cantos litúrgicos são meio de expressão da Comunidade e, assim como toda a liturgia, deverão levar em conta a Comunidade - a sua capacidade de compreensão e a execução musical, por exemplo. Esse enfoque evita que se coloque a Comunidade a serviço da liturgia, bem como os enfoques individualistas, que, vez por outra, surgem na linguagem e execução do canto (dito) comunitário.

Na medida em que cantamos como se cantava no passado ou como se crê que se cantará no futuro, podemos nos compreender como parte da história do povo de Deus, em unidade e continuidade - mesmo que os nossos cantos litúrgicos expressem, na sua construção musical, a nossa cultura e identidade musical.

   Por vezes, o 'cantar a liturgia' é erroneamente associado a um engessamento do culto ou a um desvio do culto, ocorrido no Período Medieval. De fato, como evangélico-luteranos, precisamos sempre nos perguntar se uma prática trazida pela tradição promove ou atrapalha o Evangelho. Da mesma maneira, é do nosso jeito evangélico-luterano perguntar se rejeitar a tradição e criar o nosso próprio jeito é salutar para a vida da Igreja. De acordo com Lathrop, 'a abordagem luterana da liturgia afirma o paradoxo de uma tradição mantida de forma inabalável junto com uma crítica evangélica igualmente inabalável'. A liturgia evangélico-luterana expressa bem os elementos de conservação e crítica, em relação ao novo, em relação à tradição e em relação às próprias práticas.

   Os cantos litúrgicos podem ser previstos e planejados para diferentes momentos do culto. De forma bastante genérica, podem ser incluídos na categoria das orações - ou seja, o destinatário é Deus. Dessa forma, se poderia dizer que expressam, basicamente, gratidão, súplica/intercessões e louvor/ações de graças, mas não deixam de ser, também, testemunhos litúrgicos da vida eclesial, já que, por meio deles, os fiéis se edificam e encorajam mutuamente (conforme Colossenses 3.16 e Efésios 5.19): são uma forma necessariamente comunitária de alegria pascal, porque favorecem a mútua edificação. Ainda podem ser confissões de fé e anúncios, de acordo com o dito de Agostinho, grande ins-pirador de Lutero no que diz respeito ao apreço ao canto comunitário: queres ver em que eu creio, venha à Igreja ouvir o que canto.

A liturgia, na sua forma cantada, é salutar para a vida comunitária, na medida em que o canto comunitário pode ser considerado a voz do povo na liturgia, por isso, ao cantar a liturgia em conjunto, o povo de Deus como um todo se manifesta como povo sacerdotal.

   Pode-se dizer, então, que três dimensões estão contempladas nos cantos litúrgicos de forma indissociável e até sobreposta: uma dimensão doxológica (litúrgica), que fala diretamente a Deus, uma de anúncio (querigmática), que fala a outras pessoas (essas duas dimensões são frequentes nos Salmos, que ora se dirigem a Deus, ora, às outras pessoas), e uma função diaconal, que não deveria ser perdida de vista, por isso a simplificação de uso corrente de que a música se reduz a alegria e prazer é errônea: ela serve às funções de clamor e de súplica, bem como de consolo. Também ajuda a pensar na relação estabelecida por Lutero entre cantar e falar: a fé tem como consequência o canto, mas cantar é também testemunho a outras pessoas.

   Percorrer o caminho que diferentes partes (cantadas) da liturgia fizeram, no correr da história do povo de Deus, pode nos ajudar na compreensão da unidade com a Igreja única, de todos os tempos e lugares, e com o canto dos anjos, o grande louvor universal, conforme descrito no Apocalipse de João. No seu culto, a Igreja tem parte no culto celestial. Como bem expressa Lathrop: a liturgia celestial dos anjos (Deuteronômio 7.10), com seu louvor unânime de Deus (Isaías 6.3), torna-se, assim, modelo normativo do culto terreno da Igreja, ou seja, os cantos comunitários que utilizamos nos ligam ao passado, à história, à peregrinação do povo de Deus e à nossa esperança em relação ao futuro. Na medida em que cantamos como se cantava no passado ou como se crê que se cantará no futuro, podemos nos compreender como parte da história do povo de Deus, em unidade e continuidade mesmo que os nossos cantos litúrgicos expressem, na sua construção musical, a nossa cultura e identidade musical. 

   Na Missa do Período Medieval que Lutero vivenciou os cânticos tinham conteúdo essencialmente bíblico. Praticamente tudo o que se cantava no contexto litúrgico eram trechos bíblicos literais ou textos teológicos com evidente referência às Escrituras. O ritmo desses cantos litúrgicos era livre, conduzido pelos textos. Eram monódicos (ou seja, a uma voz, somente) compostos sobre os textos litúrgicos latinos. Alguns desses textos já eram utilizados na Igreja do primeiro século da Era Cristã, inclusive porque encontravam bases ainda mais antigas, no Antigo Testamento. Por outro lado, gradativamente a comunidade passou a estar mais passiva nas missas, deixando de participar do canto, o que, na Reforma, enfim, também se 'reforma'. Lutero traz a ideia de que o canto e a palavra falada estão em um mesmo patamar e de que, com a música, se tem algo a dizer (Singen und Sagen), por isso há uma predominância de musicalização de textos bíblicos ao lado dos tradicionais textos que já pertenciam à missa (cuja estrutura prevê básica e tradicionalmente Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei) e dos cantos eclesiásticos. O canto recebeu uma valorização litúrgica especial em Lutero, ao assumir os elementos do proprium e do ordinarium, o que garantia grande variedade de canto comunitário.

   Nas últimas décadas, tem renascido a composição de cantos litúrgicos a ser usados em diferentes partes do culto. Musical-mente, são usados os mais diferentes recursos disponíveis na nossa época. Os textos utilizados, no entanto, remontam à tradição da Igreja e aos textos bíblicos. Expressões como Aleluia, Hosana e Amém são trazidas diretamente do judaísmo. A palavra Aleluia aparece 24 vezes no Antigo Testamento e quatro vezes no Novo Testamento, no Apocalipse de João. O Sanctus encontra referência em Isaías 6.2 e 3, bem como no Apocalipse 4.8. A expressão Maranatha (Vem, Senhor Jesus) está presente em 1Coríntios 16.22 e Apocalipse 22.20. Amém é a última palavra da Bíblia (Apocalipse 22.21). O Gloria Patri (Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo) já é usado por Hipólito e Orígenes (ca. 230) e ambos utilizaram fórmulas semelhantes de louvor à Trindade. O Agnus Dei (Cordeiro de Deus - João 1.29), foi introduzido, aproximada-mente, no ano 700 d.C. O uso do Kyrie Eleison (Senhor, tem piedade. Cristo, tem piedade. Senhor, tem piedade) remonta ao século IV. Gloria in excelsis é o canto dos anjos, de Lucas 2.14. Reescritos, em termos musicais, ou mantidas as tradições, inclusive musicais, o canto litúrgico é uma das formas mais efetivas de participação da Comunidade no culto. Pensemos nisso! 

 

 

Mus. Dra. Soraya Heinrich Eberle, Bacharel em Regência Coral pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, é Professora na Faculdades EST e no Colégio Pastor Dohms, em Porto Alegre/RS, e Coordenadora de Música da IECLB 

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