Jornal Evangélico Luterano

Ano 2014 | número 774

Quarta-feira, 24 de Abril de 2024

Porto Alegre / RS - 19:02

Unidade

Lutero - Reforma: 500 anos

   Deus é cheio de graça, benevolência e amor, dons que está dispos-to a conceder a seus filhos e suas filhas. Música nasce desse amor e dessa graça, tendo como principal função o louvor e a proclamação doxológica — assim compreendia Lutero. A palavra pregada e proclamada pelos profetas, no Antigo Testamento, continua sendo pregada de várias maneiras, sendo a música uma delas.

   A música possui em si um caráter comunicativo forte, justamente por ir além da palavra: tanto no potencial de expressão que oferece à Comunidade e a cada pessoa, como na capacidade de alcançar o ser humano onde as palavras não chegam. Constitui uma relevante forma de linguagem não verbal.

   Falar e cantar são indistintos para Lutero. Nos hinos, potencializamos a ação da palavra, porque a aliamos à música. Dessa forma, ao cantarmos, como Comunidade reunida, estamos proclamando a Palavra de Deus que está no hino, ao mesmo tempo em que a ouvimos e recebemos. Para Lutero, a música é denominada de viva vox evangelii — a voz viva do Evangelho. Assim sendo, o texto é fundamental, mas a música a ele aliada o é da mesma forma.


   A relação entre música e Teologia encontra-se justamente na Palavra, onde ambas se unem para proclamar os feitos de Deus a todo o mundo. O canto pode ser considerado a plenitude da Palavra. A música comunitária sempre se apresenta como canto (voz) e pressupõe a presença de um texto. O culto cristão tem na Palavra a sua centralidade: a própria revelação se apoia na Palavra de Deus e é a fonte de todas as ações de graças, louvor e súplicas. Todos os hinos são um eco da própria revelação de Deus.

   A importância da palavra no âmbito da fé não é assunto novo. O legado visível de Deus para o seu povo é a Palavra escrita e a própria revelação de Deus conosco acontece pela palavra: o Verbo encarnado (logos).

   Lidar com palavras no culto, na prédica, na liturgia ou na música, sempre envolve Palavra de Deus e palavra-resposta humana. Para o P. Dr. Mauro de Souza, Doutor em Homilética, 'o papel de quem prega a partir do texto bíblico é transformar tinta novamente em sangue', entendendo que na Bíblia há vida (sangue) transformada em tinta, por isso mesmo é que se reveste de especial importância o como se transmite essa mensagem, de forma a facilitar a comunicação.

   A música no culto precisa estar livre de interpretações particulares, pois está fundada sobre o logos. Não há espaço para aquilo que edifica somente a um indivíduo, embora cada pessoa possa ser tocada de forma diferenciada. É por isso que o uso da música para conduzir a Palavra necessita de zelo, o que envolve conhecimento e coerência. 

   Quais os aspectos a observar para a escolha e composição do repertório, a partir da perspectiva aqui exposta?

Quando usamos o critério 'beleza', pensamos em subjetividade, como se não fosse possível objetividade na avaliação de uma obra musical. No entanto, é possível estabelecer parâmetros objetivos para a avaliação de uma obra artística. Uma boa composição faz convergirem texto, elementos musicais e Evangelho. O viver estético está ligado ao nosso cotidiano, mas também é um exercício de esperança, a qual, por sua vez, se traduz em imaginação que leva à ação, estando ligada à percepção do momento histórico e ao refazer da história.

   Assim, a música precisa ser bela, porque contextualizada e porque portadora da esperança da transformação. (Cri)ativa, música de qualidade, bem escrita. De que forma a melodia 'carrega' o texto? As questões musicais ajudam a dizer e sublinham aquela palavra contida no texto ou dificultam a sua transmissão? Podemos pensar nos comuns erros de prosódia (deslocamento das sílabas tônicas das palavras, quando não condizem com o tempo forte da música), que tantas vezes atrapalham a compreensão do texto. Questões musicais podem dificultar muito a transmissão da mensagem, se a música não 'combina' com a temática ou se seguem as simples fórmulas composicionais do mercado. Meio e conteúdo estão entrelaçados na música, a coerência entre ambos acontece naturalmente. Conforme o P. Mauro de Souza, na música, 'o meio (o ritmo, a melodia) é o seu próprio conteúdo e a letra precisa estar de acordo com a melodia e demais elementos musicais. Boa música é naturalmente coerente. Como veículo de transmissão de uma mensagem, ela não se contradiz'. 


   Do repertório que se vai utilizar no culto, também se requer exatidão e clareza teológica. No tempo da Reforma, a memoriza-ção da música foi importante para a assimilação do conteúdo teológico, por isso era necessária a clareza no texto, de forma que o povo pudesse entender e apreender. Citando novamente o P. Mauro de Souza: 'ao lado da prédica, estava a música no movimento da Reforma. Há hinos que contam toda a história da salvação em Jesus Cristo, compostos em um tempo em que as pessoas não tinham os textos bíblicos para ler e não guardavam tudo o que ouviam na pregação. A música foi usada na transmissão de conteúdos teológicos importantes para o movi-mento reformatório. Lutero pregou com todos os meios que esta-vam à sua disposição'. A tendência contemporânea é uma unilate-ralidade das temáticas de louvor e adoração e uma tendência à teologia da experiência, particular, privada.

Ao cantarmos como Comunidade reunida, estamos proclamando a Palavra de Deus que está no hino, ao mesmo tempo em que a ouvimos e recebemos: trata-se da viva voz do Evangelho.

Sendo a música linguagem e viva voz do Evangelho, reflita-mos também sobre as consequências, para uma Comunidade de fé, da alteração radical da linguagem musical. As consequências para a comunicação do Evangelho seriam as mesmas de uma pregação em idioma estrangeiro. À semelhança dos símbolos, que precisam ser compreendidos por toda a Comunidade a fim de justificar o seu uso, também a linguagem musical o deve ser, pois, do contrário, a comunicação não se estabelece e a função deixa de existir.

Não é qualquer repertório que é adequado para o uso no culto, já que a música sacra evangélica emerge de uma mescla de tendências teológicas em que nem sempre é possível perceber, em um primeiro momento, quais são as Teologias escondidas, por isso não podemos abrir mão da possibilidade de análise e diálogo teológico dos textos, por meio dos quais a Comunidade aprende e apreende uma determinada Teologia, um determinado jeito de ser Igreja.

   A linguagem usada é extremamente importante. Os nossos hinos tão queridos e, geralmente, de uma riqueza teológica imen-sa, são um dos grandes tesouros evangélico-luteranos. Entretan-to, toda a música acontece dentro de um contexto social e, na nossa época, torna-se mais complexa a tarefa de fazer-se entendi-do na nossa forma de culto. O P. Dr. Dr. h.c. Gottfried Brakemeier salienta que o luteranismo exige grande conhecimento teológico das pessoas e não somente dos Ministros, mas da Comunidade também. O que fazer? Correr o risco de perder a identidade musical, importando modelos de outras tradições, por vezes mais simplórios? O que há na nossa identidade que possa servir para a contemporaneidade? Há uma estética — ligada à palavra — que privilegia a audição.  O P. Brakemeier, ao se referir à Igreja da Palavra, diz: 'Também a estética luterana passa tradicionalmente pelos ouvidos. O luteranismo destacou-se na música sacra e no canto comunitário, que são, muito à sua maneira, portadores do Evangelho'. Portanto, na música sacra, tem alg

o para ser ouvido: o Evangelho. Há uma Teologia que pode se fazer audível. Precisamos é buscar caminhos para dizer e cantar esta mesma Teologia em uma linguagem compreensível e adequada para a contempo-raneidade.

   Música precisa conduzir para a liberdade e não para a manipulação. Não é ético usar a música como meio de manipulação, humilhação e domínio sobre outras pessoas. Como voz do Evangelho, tanto a prédica quanto a música precisam ajudar as pessoas a caminhar e a refletir a caminho da liberdade e da autonomia codependente. Nesse sentido, para que a música seja a proclamação da Palavra, há que ser profética para ser coerente. Ação e reflexão andam juntas no caminho para a liberdade, que é liberdade da ação massiva, mas também da ação individualista, daquela que nos torna indistintos dos outros, mas também daquela que nos enclausura em nós mesmos e é liberdade para conhecer, compreender e decidir.

   Para manter a coerência com os passos do Reformador, a música da Igreja precisa conhecer e dar a conhecer o seu passado e fazer-se entender no contexto atual. De tudo que há disponível, deve extrair o que ajuda na transmissão da Teologia que prezamos, porque a música precisa apontar para além de si, para além dos Musicistas, para além da cultura: ela aponta para a glória de Deus. É ambicioso como fato, mas necessário como visão! 

O culto cristão tem na Palavra a sua centralidade: a própria revelação se apoia na Palavra de Deus e é a fonte de todas as ações de graças, louvor e súplicas. Todos os hinos são um eco da própria revelação de Deus.

Mus. Dra. Soraya Heinrich Eberle

 

 

Mus. Dra. Soraya Heinrich Eberle, Bacharel em Regência Coral pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Mestre e Doutora em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, é Professora na Faculdades EST e no Colégio Pastor Dohms, em Porto Alegre/RS, e Coordenadora de Música da IECLB

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