João 7.37-39

Auxílio Homilético

31/05/1987

Prédica: João 7.37-39
Autor: Wilfried Groll
Data Litúrgica: Domingo Exaudi
Data da Pregação: 31/05/1987
Proclamar Libertação - Volume: XII

l - Considerações exegéticas

1. Texto e contexto

As reflexões a seguir se baseiam no texto de Almeida, embora esta tradução apresente certos problemas em relação ao texto grego. Pois de acordo com este também poderíamos pontuar os vv. 37s de maneira diferente e ler então: Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crer em mim. A afirmação seguinte: Como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva (v. 38) então se referiria a Jesus e não aos fiéis. Do seu interior mantém bem esmaecido o significado de dele.

Dogmaticamente é inquestionável que Jesus constitui o ponto de partida dos rios de água viva, mas dentro da linha de pensamento de João também podemos afirmar que tais rios emanam dos fiéis. Pois em João 4.14 temos: ... a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna. O versículo 38, no entanto, contém ainda outro problema, visto que não achamos a citação mencionada em lugar nenhum nas Escrituras conhecidas. Talvez então a referência à Escritura abranja simplesmente, de maneira genérica, todas as passagens que encontramos no Antigo Testamento a respeito da água concebida como dádiva salvífica.

Os títulos que Almeida escolheu para João 7, imediatamente identificam o contexto em que se encontra a passagem bíblica escolhida para nossa prédica. São palavras que Jesus proferiu por ocasião da festa dos tabernáculos. Quando participa da festa, já paira no horizonte a expectativa de sua morte. Primeiro Jesus afirma que não irá a Jerusalém para a festa, porque a hora de sua morte ainda não chegou (Jo 7.8). Por fim acaba indo, mas não publicamente (7.10). Mas nomeio da festa, de repente, se apresenta em público, ensinando no templo (Jo 7.14,28). E no último dia da festa brada frente à multidão as palavras de nosso texto.

João 7.37 indica precisamente quando aconteceu este pronunciamento: no último dia, o grande dia da festa. E pelo contexto do evangelho sabemos que, a esta altura dos acontecimentos, há muito tempo os judeus se tinham decidido pela morte de Jesus (5.18). A este fato, aliás, Jesus se refere expressamente em 7.19. E segundo 7.25, já é público e notório em Jerusalém que Jesus é procurado para ser morto. Realmente, os guardas dos sacerdotes e fariseus tinham recebido ordens neste sentido, mas não é ainda desta vez que põem as mãos nele, porque ficam profundamente impressionados com seu discurso (7.45). Assim, Jesus não é detido nem executado durante a festa, apesar de arriscar-se ao aparecer em público.

2. Análise do trecho

V. 37: A festa dos tabernáculos constitui o pano de fundo para a aparição e o pronunciamento público de Jesus. Até o exílio era comemorada sempre no final do ano após a colheita (Êx 23.16). Depois do exílio passou a ser festejada entre os dias 15 a 21 de julho (Ez 45.25) e foi ampliada em mais um dia da tora (Lv 23.34 ss). O grande dia da festa em João 7.37 provavelmente é o sétimo e não o oitavo dia, posteriormente acrescido à festa. Levava o nome de o grande hosana. Acreditava-se que neste dia ocorreria o juízo final e que neste mesmo dia Deus determinava todos os anos os dias de chuva do próximo inverno.

Os tabernáculos que deram nome à festa, provavelmente no princípio não passavam de choupanas em que os judeus moravam durante a colheita e onde festejavam após o trabalho. Depois da centralização do culto em Jerusalém, a festa dos tabernáculos se transformou numa das três grandes festas de peregrinação, quando então o povo confluía para o templo de Jerusalém. Também aí viviam em choças construídas com ramos, que agora associavam a uma lembrança salvífica, qual seja, que eu fiz habitar os filhos de Israel em tendas, quando os tirei da terra do Egito (Lv 23.43). Ainda segundo Josefo, a festa dos tabernáculos representava a festa maior e mais sagrada entre os judeus. Era uma festa onde se celebrava a alegria e onde se bebia o mosto da vindima do ano. Era a festa das libações. E na segunda noite circundavam em grande procissão, com tochas nas mãos, as cisternas de onde buscavam a água para o ritual das libações. Por sete dias se ofertava água no sacrifício da manhã no altar de holocaustos. Embora ninguém bebesse desta água, relacionava-se Isaías 12.3 com esta cerimônia: Vós com alegria tirareis água das fontes da salvação. Assim a oferta matinal de água mantinha viva a expectativa escatológica da salvação, segundo a qual, nos últimos dias, brotaria a fonte da água viva dentro do templo, abastecendo todo o mundo (Ez 47.1-12) e removendo o pecado e a impureza (Zc 13.1). O júbilo festivo explicava-se com o derramamento do Espírito Santo sobre os fiéis (veja Bultmann e Die Bibel und ihre Welt).

A aparição pública de Jesus no dia final desta festa tem sentido profético: No lugar da oferta de água característica para a festa dos tabernáculos, que era interpretada como representação simbólica da abundância de água nos tempos escatológicos e como antecipação do recebimento escatológico do Espírito, surge Jesus como o Doador da água viva, da água do Espírito (Bultmann, p. 230). Pois a fala de Jesus contém uma crítica profética violenta à festa, à medida que ele apresenta sua pessoa sobrepujando e substituindo-a (cf. 4.21-24). Que Jesus questiona a festa já se evidencia no momento em que se dirige àqueles que estão sedentos, como se houvesse uma situação de carestia, justamente quando Israel por sete dias seguidos se havia alegrado perante o Senhor (Lv 23.40). Mas Jesus contrapõe e sobrepõe a sua própria pessoa a este ritual solene.

O v. 38 interpreta a aproximação de Jesus e o ato de beber dos sedentos como manifestação de fé. Àquele que crê em Jesus se promete algo que ultrapassa de longe o simples saciar da sede. Quem estava sedento se transformou em alguém que tem condições de oferecer água aos outros: Do seu interior fluirão rios da água viva. Este tema de rios de água viva atravessa a Bíblia desde o rio do Éden que se repartia (Gn 2.10) até ao rio da água da vida que encontramos em Apocalipse 22.1. Mas é em João 7.38 que este mesmo tema assume um enfoque radicalmente antropológico: Dos homens que crêem em Jesus fluem rios de água viva. Mesmo que nesta versão o tema em parte perca em clareza, continua ainda compreensível seu conteúdo simbólico: o crente a quem Jesus dá água para beber torna-se, ele próprio, manancial de rios de água viva (cf. Jo 4.10). A fé nos liga àquele que dispõe de maneira criativa e livre sobre a vida (Jo 5.26; 10.17s) e guarda em si mesmo a vida (Jo 1.4): graças a este relacionamento podem emanar rios de água do fiel. O fiel não só tem condições de ceder aos outros tal qual uma cisterna cede um bem que possui em si mesmo, mas pode compartilhar com os outros algo imensamente maior, porque está imbuído da força que provém da origem da vida. Assim a dádiva salvífica de Jesus se reproduz no mundo, de maneira múltipla, através dos fiéis.

O v. 39 afirma que se trata de um acontecimento futuro, que se realizará através do derramamento do Espírito Santo, que os crentes receberão após a glorificação de Jesus. Com isso a nossa atenção se desloca da reunião festiva para a cruz, onde Jesus precisa completar ainda a sua obra. Sua exaltação na cruz e junto ao Pai representa a sua glorificação e como tal constitui o pré-requisito para a encarnação do Espírito nos seus discípulos. Assumirão o seu ministério (Jo 17.17; 20.21 s) e estarão autorizados a continuar suas obras, sim, até farão obras maiores do que ele fez (Jo 14.12). O Espírito ajusta a práxis dos discípulos à norma que o próprio Jesus terreno estabeleceu e concretizou quando deu a sua vida por nós: assim possibilita que nos doemos mutuamente em amor fraternal (Jo 15.12s; 1 Jo 3.16) e exerçamos um ministério cristão que corresponda ao exemplo vivo de Jesus (Jo 13.1ss). Através da referência codificada ao destino de Jesus, a promessa dada aos crentes de que deles emanarão rios da água viva adquire seu sentido preciso dentro da teologia da cruz.

II - Sugestões para a prédica

A cena da aparição de Jesus tem uma carga dramática tão intensa que nos leva a pintá-la com cores fortes. Porém, se por um lado a descrição situacional não deve descambar para uma dissertação histórico-religiosa, por outro lado, deve se manter bastante fiel aos dados históricos concretos, a fim de destacar nitidamente o caráter profético-messiânico da aparição de Jesus. A finalidade homilética desta descrição é apontar opções de que dispomos quando Jesus nos convida a crer em sua pessoa. E o primeiro tópico da prédica poderia ser:

1. Como Jesus interrompe o suprimento religioso

1a (veja v. 37a): Jesus não se adapta à situação, mas subverte a cerimônia solene. Não se integra na reunião festiva, mas se levanta e se expõe à fúria de seus adversários. Como é um agitador notório, caçado pelas autoridades, seu comparecimento na festa representa um fator de inquietação e perturbação para o ambiente festivo. E seu clamor profético o isola da comunidade, que está cantando hinos que celebram a alegria.

1b (veja v. 37b): Jesus não aceita simplesmente, mas questiona a mensagem da liturgia solene. A liturgia da festa dos tabernáculos tenciona articular a gratidão pela dádiva da água (libação matinal), garantir o suprimento de água no novo ano (Deus determina os dias de chuva do ano vindouro) e no futuro (procissão até as cisternas do templo). E a festa constitui motivo para tomar do novo mosto, recém saído do lagar. Que Jesus procura por sedentos justamente no ponto alto da festa é estúpido, tolo e inoportuno em vistas de tal liturgia, já que ninguém carece de nada neste momento. Jesus busca sedentos onde oficialmente não deveria haver nenhum sedento.

1c (veja v. 38): Jesus se opõe ao sistema quando declara que não mais funciona o sistema de satisfação das necessidades religiosas que o templo representa, ultrapassado que está pela sua pessoa. A fonte salvífica, que conforme a expectativa cúltica deveria brotar nos tempos escatológicos junto ao altar do templo (Ez 47 e Jl 3.18), segundo Jesus já nascerá agora naquele que crê: Do seu in-terior fluirão rios de água viva. A concepção radicalmente antropológica da fonte salvífica, que aponta o homem como seu ponto de partida, derruba a reivindicação e a esperança de que isso aconteça no templo em Jerusalém. Pois Jesus promete a toda pessoa que nele crê, que lhe abrirá uma fonte viva, que se alimentará da origem de toda vida, do próprio Deus. Seu sinal é que tal fonte, no seu vigor vivificante, promove, faz florescer e fecunda a vida ao seu redor.

Neste momento poderíamos, na minha opinião, reforçar a imagem dos rios de água. Destacaria os seguintes aspectos: Os rios dão-nos acesso à água, mas não criam a água. A fonte representa o começo do rio, mas não o início da água. - Os rios têm uma corrente visível e outra invisível. A última fecunda a terra, porque penetra nela subterraneamente. Dali retiramos depois a água potável. - Os rios caracterizam a vida da população de toda uma região. Atraem as pessoas às suas margens.

2. Num segundo passo, o pregador poderia tentar concretizar esta vida a serviço dos outros através de exemplos e qualificar os rios de água. Sugiro duas concretizações onde uma forma de auto-proteção da vida se contrapõe a uma práxis que se coloca a serviço da vida. Através desta contraposição pretende-se reproduzir a tensão que aparece quando Jesus fala da sede e da água no contexto do culto no templo.

2a: No âmbito legal para mim a reforma agrária representa um exemplo claro de como se aproveitou a legislação vigente para garantir os direitos dos latifundiários às custas dos direitos mais elementares dos sem-terra. Os sem-terra vivem dentro da mesma ordem legal que os proprietários de terra, mas ali se destacam por sua sede por justiça. Portanto, a palavra que encontramos em Amos 5.24: Antes corra o juízo como as águas parece mais adequada para figurar sobre o acampamento na fazenda Annoni do que sobre o Palácio da Justiça em Brasília onde se encontra inscrito. Numa ação cuidadosamente planejada e corajosa os sem-terra ocuparam um pedaço de terra que estava legalmente congelado e nada produzia. Com isso criaram para si um novo espaço vital e desencadearam uma onda de esperança entre os outros sem-terra.

2b: No âmbito da propaganda política há todo um ritual de promessas. Assim a televisão por semanas anunciou um amplo programa do governo que distribuiria um litro de leite por dia gratuitamente entre crianças carentes: O Brasil, terra onde correm rios de leite e mel! - Criou-se toda uma expectativa de que milhões de crianças pudessem saciar a sua fome e assim sobreviver. Mas depois esta propaganda sumiu da televisão e nada aconteceu de concreto em escala maior. -O rio de crianças carentes que aflora justamente entre os pobres no Brasil, entrementes continua a fluir ininterruptamente. Do ponto de vista racional, tanto os pobres como os propagandistas do governo assinaram um cheque sem fundos a ser cobrado pelo futuro. Mas enquanto os propagandistas recuam de maneira irresponsável e, no confronto com a realidade, suas promessas se revelam utópicas, os pobres assumem a sua esperança. Aceitam a vida e a morte de muitos de seus filhos sem desacreditar do amor. Enquanto as mães pobres aceitam o sofrimento de perder tantos filhos, mostram-se realistas, mas esperançosas, carregando a vida para dentro do futuro.

Num terceiro passo podemos associar e identificar a dádiva dos rios de água, vista como característica vital dos fiéis, com a dádiva do Espírito no versículo 39. Nesta concepção pneumatológica se torna claro que devemos compreender a promessa dos rios de água não com base no antigo culto de proteção à vida, mas a partir de Cristo e da doação de sua vida. Pois quem é Cristo sabemos somente por completo no momento em que é exaltado na cruz e junto ao Pai. Na sua glória, o Cristo exaltado aproxima de si os seus, primeiro para junto de sua cruz e depois para junto de si mesmo. E através do Espírito permite aos discípulos que levem uma vida fraterna, onde dão a vida pelo outro e assumem um ministério que segue o exemplo que ele mesmo nos deu.

Para esta prédica encontro em Apocalipse 22.1 uma imagem que expressa integralmente as relações joaninas do Jesus terreno, exaltado e glorificado: com a glorificação de Cristo, o Cordeiro sacrificado (cf. o mesmo tema em Jo 19.32-37) se coloca no centro do mundo. O sacrifício da vida de Jesus em benefício dos homens constitui o critério que comprova o domínio do mundo por Deus: Então me mostrou o rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro. Do trono de Deus, que ao mesmo tempo é o trono do Cordeiro sacrificado, jorra o rio da água viva de que partilham, por intermédio do Espírito de Deus e Jesus, todos aqueles que crêem em Jesus.

IIl - Subsídios litúrgicos

1. Confissão de culpa: Deus todo-poderoso, Pai misericordioso! Tu nos concedes a vida e a manténs das mais diversas maneiras e queres conservá-la até a vida eterna. Confessamos que não te respeitamos o suficiente como nosso Criador, mas nos preocupamos muito em sobrevivermos simplesmente. Preocupamo-nos demais, como se tu não existisses. Confessamos-te nossa culpa, que carecemos de confiança. E te pedimos que renoves a nossa vida e nossa fé em ti. Amém.

2. Coleta: Senhor, nosso Deus! Tu compartilhas o teu poder com o nosso Irmão Jesus. Não queres ser um Deus distante dos homens e não pretendes governar de maneira desumana. Ajuda-nos para que possamos corresponder à tua humanidade. Dá-nos o teu Espírito para que te compreendamos. Amém.

3. Assuntos para Intercessão na oração final: Oremos por todos que servem à vida, para que Deus os fortaleça na sua fé, para que ajam segundo o Espírito de Jesus Cristo: pelos sem-terra, para que vençam na sua luta; pelos políticos, para que tenham coragem suficiente para executar uma reforma agrária que tire os sem-terra da penúria; pelos que trabalham na área das comunicações de massa, para que falem a verdade e não sirvam ao espírito da mentira; pelas mães que dão à luz a mais filhos do que podem criar, para que não esmoreçam no seu amor a eles; por todos que trabalham honestamente, para que não sejam explorados nem abusados, mas seu serviço venha em benefício da vida; pela nossa igreja, para que dê nos seus ministérios um testemunho do Espírito de Cristo.

IV - Bibliografia

- BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch-Exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 17. ed. 2a parte. Göttingen, 1962.
- Feste und Feiertage. In: CORNFELD, G. & BOTTERWECK, G. J. ed. Die Bibel und ihre Welt. Eine Enzyklopädie. Munique, 1972.
- MESTERS, C. Seis dias nos porões da humanidade. Petrópolis, 1982.


Autor(a): Wilfried Groll
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 37 / Versículo Final: 39
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1986 / Volume: 12
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17862
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