As três primeiras petições do Pai-Nosso

Auxílio Homilético

31/07/2015

Prédica: Mateus 6.9-10
Leituras: Isaías 6.1-7 e Mateus 11.2-6
Autor: Gottfried Brakemeier
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX

 

1. Preliminares

Converter uma oração, ou parte dela, num texto para a pregação não é tão incomum como possa parecer. Basta lembrar os salmos, muitos dos quais são invocações de Deus, preces, ações de graça, confissões, lamentações ou manifestações semelhantes. Constam com regularidade nos lecionários da igreja. Pregar sobre orações tem longa história na cristandade. Também no Novo Testamento, temos textos litúrgicos previstos para esse fim. Penso entre outros na oração sacerdotal de Jesus no Evangelho de João (Jo 17). A oração a Deus pode ser perfeitamente anúncio do evangelho. Na verdade, não há como separar. A fala com Deus é e deve ser transparente para a fala sobre Deus.

Assim também quando se trata do “Pai-Nosso”. Ela é a principal oração da igreja cristã e um modelo de oração universal. Jesus Cristo a introduz com as palavras: “Portanto, vós orareis assim...” (Mt 6.9) O “Pai-Nosso” estabelece um padrão. Sempre de novo se tem evidenciado como uma “oração completa”, merecendo respeito também por adeptos de outras religiões. Aqui não falta nada. Tudo de que o ser humano necessita para a sua salvação é mencionado e trazido em prece diante de Deus. Isso em palavras concisas e precisas. Essa oração por si só teria imortalizado Jesus de Nazaré. É dever de todo cristão sabê-la de cor e dirigir-se a Deus com exatamente esses termos.

O “Pai-Nosso” é um dos grandes patrimônios ecumênicos. Não é propriedade de nenhuma denominação em particular. Ele une a cristandade. Devido à importância que tem, o “Pai-Nosso” integra os catecismos das igrejas. Martim Lutero acolheu-o tanto em seu Catecismo Menor como no Maior, dando-lhe magistral explicação. Voltou a referir-se a esse tesouro da fé cristã em outros escritos, tentando familiarizar o povo cristão com seu conteúdo e incentivar a prática. Seja respeitado, porém, que Jesus proíbe o palavrório repetitivo e a transformação do “Pai-Nosso” em cansativa ladainha (cf. Mt 6.7). “E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos. Não vos assemelheis a esses.” Eis o alerta. Nosso Mestre e Senhor quer a oração consciente, não a reproduzida mecanicamente.

Por isso mesmo importa reletir o texto e ouvi-lo como testemunho. Vale a pena dar atenção a Lutero e aperceber-se do auxílio que nos dá nesse tocante. Por que dirigir-se a Deus em oração? Qual o proveito disso? E como fazê-lo condignamente? Ainal, que é que estamos pedindo quando invocamos Deus nas palavras do “Pai-Nosso”?

2. Os bens supremos

Na conceituação de Lutero, as primeiras três petições referem-se aos “bens supremos”, pelos quais podemos pedir. Pois não há bens maiores do que a santificação de Deus, a vinda de seu Reino e o cumprimento de sua vontade. Essas petições distinguem-se das quatro seguintes, nas quais “chegamos às necessidades referentes ao nosso cotidiano...” (cf. “O Pai-Nosso”, comentários a Mateus 6.5-15. Obras Selecionadas, v. 5, p. 124). Elas colocam em destaque os direitos de Deus para somente depois enfocar as preocupações humanas. Trata-se, pois, de dois grupos de petições, distintos um do outro. No primeiro está em jogo a causa divina, no segundo a do ser humano. Para Lutero, cabe prioridade à primeira, razão pela qual lhe atribui a qualidade de “bens supremos”. Será correto pensar assim? Porventura podemos declarar o pão de cada dia e o perdão de nossas dívi- das “bens secundários”?

Os anseios comuns do ser humano evidentemente são outros. Um levantamento das preferências certamente indicaria paz, saúde, prosperidade, segurança, amor, felicidade. É o que todo mundo quer. Enquanto isso, a santiicação do nome de Deus, a realização de sua vontade e a vinda de seu reino são desejos distantes, abstratos, alheios às lides diárias do cidadão. Eles fazem parte de nossa religiosidade por tradição, não por convicção. Também a recitação do “Pai-Nosso”, pois, está no perigo de se tornar rotina, sem relevância imediata para as pessoas. Em muitos casos, periga reduzir-se a mero exercício piedoso, vazio, às vezes até mesmo com a conotação de uma obra meritória. Lutero enxerga nisso uma trágica perversão.

Pois o “Pai-Nosso” não pede nada para Deus. Lutero é enfático ao sublinhar que Deus é santo também sem a nossa prece. Basta lembrar os termos do Catecismo Menor: “O nome de Deus é santo por si mesmo”. Assim já o lemos no texto do profeta Isaías. Lamentavelmente, não é esse o caso no uso que fazemos desse nome. Entre nós, o nome de Deus é por demais vezes profanado. Em seu Catecismo Maior, Lutero arrola vários exemplos, entre eles o de espalhar doutrina falsa. O ser humano desacredita o Senhor do universo ao perverter o evangelho e criar imagens distorcidas de Deus. Acima de tudo, porém, desonramos Deus mediante uma conduta que fere os mandamentos divinos. Tanto o nosso falar como o nosso agir devem estar em conformidade com os propósitos de Deus. É assim que vamos santiicar o nome do Senhor e é isso o que pedimos ao orar o “Pai-Nosso”.

O mesmo vale para a vinda de seu Reino. “O reino de Deus vem por si mesmo sem a nossa oração. Mas pedimos nessa oração que venha também a nós” (Catecismo Menor). O ser humano não tem como acelerar a vinda do reino de Deus; ele não o pode construir nem produzir. Isso é obra exclusiva de Deus. Mas nós temos a desgraçada possibilidade de nos excluir desse Reino e de impedir que se instale em nosso meio. Isso acontece quando lhe negamos a fé e desconfiamos de sua palavra; quando rejeitamos Jesus Cristo, através de quem Deus nos liberta de diabo, pecado e morte (Catecismo Maior); quando optamos por outros senhores e lhes prestamos culto. A despeito de nossa resistência, porém, o reino de Deus vem. Isso acontece de duas maneiras. Uma vez através da palavra e da fé, outra pela revelação deinitiva no im dos tempos, em glória e poder. Aliás, convém acrescentar os sinais mencionados por Jesus em sua resposta a João Batista, conforme lemos no Evangelho de Mateus (11.2-6). Não só a fé, também o amor, ou seja, a obra diaconal, é transparente para o reinar gracioso de Deus. O reino de Deus aguardado pelos iéis do futuro já agora se antecipa em sinais de renovação e salvação.

A mesma lógica está em evidência na terceira prece. Lutero explica: “A boa e misericordiosa vontade de Deus é feita sem a nossa oração. Mas nós pedimos nessa oração que ela seja feita também entre nós” (Catecismo Menor). Há muito neste mundo que se opõe à vontade de Deus, a começar por nós mesmos, constantemente tentados a implantar a nossa (!) vontade. “Seja feita a minha vontade, assim na terra como no céu.” É assim que se pensa e é isso o que se deseja. Então uma vontade colide com a outra, e ambas disputam a hegemonia. Nascem os conlitos. O ser humano pretende subjugar seus semelhantes, impor-lhes sua vontade e exercer poder. Ele quer fazer valer os seus interesses, não os de Deus. Dessa maneira, o reino de Deus deve ceder espaço para dar lugar a muitos reinos particulares, concorrentes um com o outro. Somente o respeito à vontade de Deus poderá disciplinar essa luta feroz e garantir a paz. Nós pedimos nessa prece do “Pai-Nosso” que a vontade de Deus seja feita por nós e por todo o mundo, “assim na terra como no céu”.

3. Os direitos de Deus e o bem do ser humano

Quem tem ouvidos para ouvir terá percebido que as primeiras três petições do “Pai-Nosso” não pretendem “salvar Deus”, e sim o ser humano. A santificação do nome de Deus é a condição da paz na terra (cf. Lc 2.11), da felicidade humana e do bem-estar social. Pois, onde prevalece o desrespeito a Deus, a desgraça instala-se. Não estava tão errado aquele sujeito que quis colocar em praça pública uma placa com os Dez Mandamentos. Não matar, não furtar, não dar falso testemunho – ah, se isso fosse obedecido, o paraíso estaria próximo. Mas o ser humano não se importa com a vontade divina. Ele desonra o nome do Criador, confunde o seu reino particular com o de Deus, tiraniza seus semelhantes. Os supremos bens, pelos quais pedimos no Pai-Nosso, traduzem-se em bens humanos. Lutero enfatiza que Deus não precisa de nossa oração para ser Deus. Mas temos mil e uma razões para pedir que ele se torne Deus também para nós e tenha atendidos seus direitos.

No pluralismo religioso da atualidade, faz-se necessário insistir no amor como critério da vontade de Deus. Nem tudo o que por aí se apregoa como pro- pósito divino de fato é. O que fere o mandamento do amor seguramente não tem Deus por autor. A ação desumana é incompatível com a vontade divina e não corresponde a seu reino. Isso signiica que o “Pai-Nosso” não permite ser arran- cado do contexto geral da pregação de Jesus. Nós não pedimos pela chegada de qualquer reino de Deus, e sim por aquele que se manifesta em graça, amor, paz e perdão dos pecados, assim como Jesus o exempliicou em palavra e ação. Não preconizamos a santiicação do nome de qualquer Deus, e sim daquele a quem Jesus invoca como pai e que por isso veio a ser também o “Pai Nosso”. Esse Deus ama até mesmo os seus inimigos. Jesus ensina-nos a um só tempo orar e amar.

A igreja cristã demorou em acolher o reclamo dos direitos humanos. Achou que devesse priorizar os direitos divinos e esqueceu a causa humana. Ora, não é possível separar uma coisa da outra. Os direitos humanos estão embutidos nos direitos de Deus e vice-versa. O “Pai-Nosso” assim o ensina. E Lutero com sua explicação ajuda a redescobri-lo. O ser humano não pode honrar Deus e desonrar a criatura, nem pode passar ao largo do sofrimento de Lázaro. Quem julga poder conjugar religiosidade com tortura e assassinato adora um outro deus, não nosso “Pai que está nos céus”. Hoje, a maioria das igrejas é protagonista na luta pelos direitos humanos, graças a Deus. Passaram por salutar processo de aprendizagem. Os direitos humanos certamente não são “direitos cristãos”. Eles têm validade universal. E, no entanto, deitam profundas raízes na tradição bíblica. O “Pai-Nosso” é disso um comprovante.

4. A caminho da prédica

Em vez de imagens para a prédica, permito-me fazer “perguntas homiléticas”, motivadoras para a pregação.

* Se Deus nos prometesse cumprir três desejos, o que iríamos pedir? É esse o tema de um conto de fada. Infelizmente, a história terminou mal. O sujeito que recebeu tal privilégio não soube pedir devidamente. Desperdiçou a chance preferindo “bens perecíveis” aos de real valor. Qual a ajuda que o “Pai-Nosso” dá-nos nesse tocante?

* O mundo está cheio de conflitos tanto nacionais como internacionais. A violência espalha medo e horror. Não raro é justiicada com argumento religioso. O que falta para acabar com esse flagelo? Deus aprova o fraticídio? Qual é a vontade de Deus a ser feita?

* Se tudo acontece mesmo sem as nossas preces, por que dirigir-se a Deus em oração? Rezar o Pai-Nosso faz sentido?

5. Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados:

Senhor, veja os crimes cometidos em teu nome. Veja a desgraça de um mundo que não se importa contigo. Veja uma sociedade que zomba de tua santidade. Também nós, por demais vezes, ficamos em débito contigo, desonrando o teu nome e jogando-o na lama. Contribuímos à nossa maneira para a falta de fé no mundo. Nós te pedimos, ensina-nos a santificar o teu nome, a cada dia de novo e do jeito que é devido a pessoas que se dirigem a ti com a invocação “Pai Nosso”.

Queiras perdoar o nosso pecado e conceder a chance de uma nova caminhada como ilhos e ilhas tuas. Tem compaixão de nós, Senhor.

Oração do dia:

Santo Deus! A vinda do teu reino é a nossa esperança. Pois onde tu chegas a dominar, as pessoas serão libertadas do jugo de outros poderes. Nem mais a morte poderá amedrontá-las. Vem e acaba com o nosso desânimo. Dá-nos coragem e fé. Dá ao mundo um novo espírito, pronto a se engajar em favor da paz, em favor da preservação do meio ambiente, em favor da justiça social. Queremos ver os sinais do teu reino manifestos em justiça, paz e alegria. Habilita-nos a ser cooperadores em tua obra para que o mundo volte a acreditar em dias melhores. Nós insistimos, Senhor: Venha o teu reino. Amém!

Intercessão:

Nosso Deus, Deus nosso! Trazemos à tua presença o sofrimento neste mundo. Não podemos senão solidarizar-nos com o clamor da criatura maltratada, seja por violência, doença, injustiça, seja por qualquer outro mal. Sê amparo e consolo em horas de dor e de alição. Intercedemos em favor de pessoas solitárias, abatidas por perda de familiares, amigos ou outros entes queridos. E onde parecem faltar perspectivas de futuro, abre novas chances, mostrando novos caminhos. Acompanha os moribundos, não abandones quem adentra o vale da sombra da morte, renova a certeza de que nada há de nos separar do teu amor, que está em Jesus Cristo. Pedimos em favor da tua igreja. Dá que seja cumpridora da tua misericordiosa vontade e ajuda a sermos os primeiros a nos colocar a serviço da mesma. Queremos que a tua vontade seja feita assim na terra como no céu.

Bibliografia

Os Catecismos de Lutero e seus comentários sobre o “Pai-Nosso” em: Martim Lutero: Obras Selecionadas, v. 5, São Leopoldo/Porto Alegre, 1994, p. 116s.


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Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Luteranos em Contexto
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 9 / Versículo Final: 10
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2014 / Volume: 39
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 34224
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Há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há boas ações a fazer e, sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar.
Martim Lutero
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